"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos
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segunda-feira, 11 de abril de 2016

O Estado monárquico e a cultura popular

Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia, Portinari

A monarquia absoluta era a grande promotora de festas públicas por ocasião do aniversário do governante, de casamentos ou nascimentos na família real, de celebração de eventos políticos. Esses festejos incluíam geralmente luminárias, fogos de artifício, cavalhadas, corridas de touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropas. Durante o período em que Portugal era a sede da monarquia competia aos governos de cada capitania incentivar essas celebrações. Depois de a Corte se ter transferido para o Brasil e ficado sediada no Rio de Janeiro ficou a cargo do intendente da Polícia organizar tais festas públicas. No tempo de Paulo Fernandes Viana ocorreram festejos por ocasião do casamento da princesa D. Leopoldina, mulher do Príncipe Real D. Pedro. Como escrevia o intendente, "era um dever da polícia entrar nestes objectos, não só pela utilidade que se tira em trazer o povo alegre e entretido, como provendo ao mesmo tempo o amor e respeito dos vassalos para com o soberano e sua real dinastia".

[...]

Podemos avaliar o peso destas festas na sociedade colonial pelo cuidado em elaborar relatos dos seus vários momentos e também em publicar tais descrições em folhetos, ou nas páginas das gazetas do Rio de Janeiro e Baía. Lembremos, entre outras, a "Relação das festas que se fizeram no Rio de Janeiro, quando o Príncipe Regente N. S. e toda a sua real família chegaram pela primeira vez àquela capital. Ajuntando-se algumas particularidades igualmente curiosas, e que diziam respeito ao mesmo objecto", publicada pela impressão Régia do Rio de Janeiro em 1810.

Nesta relação, o narrador, sob forma de carta, conta que a cidade celebrou com nove dias de luminárias a chegada de S. A. R., tendo já havido antes outros seis dias de luminárias quando chegara a princesa viúva. Este elemento essencial do festejo público era mais complexo do que se poderia supor. Não bastava iluminar as casas e edifícios mais importantes da cidade; era necessário ainda criar ornamentos adequados, arquitecturas efêmeras logo destruídas quando a festa acabava.

[...]

Nas festas públicas todos os grupos étnicos participavam, senão como actores, pelo menos como espectadores. Resta saber contudo se, no espaço urbano ou rural, havia lugar para a festa própria de cada etnia.

Deixar ou não os negros fazer os seus batuques e as suas danças dependia da maior ou menor flexibilidade dos governadores nas vilas e centros urbanos e dos senhores nas suas fazendas e engenhos. Essas actividades de lazer da gente de cor (das quais por vezes participavam os próprios brancos), por provocarem ajuntamentos perigosos, eram mal vistas pela população branca em épocas de crise e encaradas como demonstrações de uma sexualidade desenfreada pelos representantes da Igreja.

Batuque, Rugendas

Em 1779, na Capitania de Pernambuco, foi denunciada ao Santo Ofício a demasiada condescendência do então governador com os divertimentos dos negros: "Alguns governadores proibiram estas danças, e outras, que se fazem na terra, pelos naturais chamadas foffa, ou batuque entre homens, e mulheres que consiste em representar um acto torpe de fornicação, acompanhada de instrumentos, estrépitos de pés, e mãos, com ditos inhonestos e para maior desgraça nos tempos presentes com ditos blasfêmicos, como 'Oh meu Deus, ora vamos para o Céu'". Estes gestos e palavras constituíam "incentivos para desonestidade ainda nos mais tementes a Deus, quanto mais nos miseráveis pecadores".


Negros dançando fandango (jongo) no Campo de Santana, Rio de Janeiro, Augustus Earle

Também no início do séc. XIX, na Baía, Luís dos Santos Vilhena condenava a excessiva tolerância com as diversões dos negros: "Não parece ser de muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente canções gentílicas, falando línguas diversas, e isto com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza, ainda mais aos mais afeitos, na ponderação de consequências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Baía".


Negros tocando cabaça e pandeiro, Johan Nieuhof

O que perpassa nestes textos é a rejeição da cultura negra e a sua condenação, tendo como justificativa a "desonestidade" das suas danças ou a "barbaridade" dos sons produzidos pelos seus instrumentos. Além disso, sendo os cantares em línguas africanas, o branco não as podia entender e portanto temia-as. A estranheza perante o diferente levava ao medo, acentuado este quadro, em 1814, um levante de negros na Baía levou os brancos a exigir medidas repressivas mais severas do que aquelas que tinham sido tomadas pelo governador, conde dos Arcos. Este, se por um lado proibira totalmente "as danças que os negros costumam fazer ao som de instrumentos estrepitosos, e desentoados nas ruas e largos desta cidade", por outro não impedira que os escravos se juntassem nos dois largos da Graça e do Barbalho, podendo aí dançar "até o toque das Avé-Marias". Esta permissão levava em conta o facto de que "muitos senhores reconhecem a necessidade, e vantagem de diminuir os horrores de cativeiro, permitindo que seus escravos se divirtam, e que de dias em dias se esqueçam por algumas horas do seu triste estado".

Estas medidas tolerantes do governador consternaram alguns brancos assustados com as mortes recentemente ocorridas e com as casas incendiadas. Respondendo em parte a uma frase do governador na sua ordem do dia ("em todas as cidades policiadas do mundo se permitem divertimentos públicos proporcionados até às últimas classes da nação"), diziam não se dever permitir aos negros "divertimentos tão profanos em dias de descanso, e dedicados ao culto do verdadeiro Deus" quando muitos brancos, como os soldados e caixeiros, não tinham domingos nem dias santos, "aplicados sempre nos serviços" ou em guardas e rondas.

Todos os males então ocorridos provinham não só dos batuques mas também de se ter permitido aos negros "andarem com vestimentas de rei, coroando-se com espetáculos, e aparatos, fazendo uns aos outros tais, e quais homenagens e ajuntamentos com caixas de guerra amotinando a cidade".

Passado o susto com o levante dos negros, as diversões destes continuaram a ter lugar nos espaços públicos das principais cidades.

NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Vida privada e quotidiano no Brasil. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 274-5, 278-80.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Novo Mundo, o Paraíso Terrestre

Mapa da América, 1561, do cartógrafo Sebastian Munster

O Novo Mundo. Lugar onde se encontraria o Paraíso Terrestre. Terra de riquezas incalculáveis e cidades com telhados de ouro. Lugar de liberdade habitado pelo "bom selvagem". Campo virgem para serem lançadas as verdades evangélicas e para ampliar o mundo cristão. Lugar onde os projetos de enriquecimento e de enobrecimento podiam ser realizados. Esses eram os sonhos que povoaram o pensamento de descobridores, conquistadores e colonos que vieram para a América.

E os indígenas americanos? Qual o sentido que deram para a chegada de seres tão estranhos? Poderiam ser aliados importantes contra os inimigos tradicionais? Eram os inimigos que deviam ser combatidos, expulsos, devorados? Seriam os deuses há muito anunciados pelas profecias e presságios? Cada povo indígena entendeu essa chegada inusitada de acordo com a sua cultura.

Para os historiadores, que olham esse evento já de certa distância, a chegada dos europeus ao continente americano marcou o início de uma nova era. Milhões de seres foram exterminados e escravizados. Povos inteiros deixaram de existir. Onde só havia a floresta, surgiram imensas plantações. O solo foi rasgado e perfurado para arrancar ouro, prata e diamantes. A Europa acumulou riquezas como nunca havia ocorrido antes.

PEDRO, Antonio. LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 62.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Entre a cruz (religião) e a espada (guerra): a conquista da América pelos europeus

Funeral de Atahualpa, Luis Montero

DOCUMENTO 1
A cruz realizou um trabalho complementar à espada. Um conjunto de circunstâncias de ordem religiosa entre algumas nações indígenas facilitou a tarefa dos dominadores, já que tanto no México como no Peru uma série de profecias e sinais asseguravam a chegada iminente de novos deuses. E os europeus, manipulando o imaginário destes povos, não tiveram dúvidas em se apresentar como tais. O domínio do sagrado sobre o profano se materializou até nas construções das igrejas católicas, ao se aproveitar algumas pirâmides e templos como alicerces para a edificação de suas catedrais. [...]

Juan de Zumáraga, primeiro arcebispo do México, se orgulhava, em uma carta de 1547, de que seus sacerdotes haviam destruído até então mais de 500 templos indígenas e queimado cerca de 2 mil ídolos. Ele próprio ajudou a incinerar os arquivos existentes em Texcoco. O mesmo fez o bispo de Yacatán, Diego de Landa, ao atirar ao fogo purificador os manuscritos maias - único povo da América pré-colombiana que havia criado uma escrita -, fazendo com que se destruíssem os principais documentos históricos e literários. [RAMPINELLI, Waldir José. A falácia do V Centenário. In: ________. OURIQUES, Nildo Domingos (Org.). Os 500 anos: a conquista interminável. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 30-31.]

A tortura de Cuauhtémoc, Leandro Izaguirre

DOCUMENTO 2
O Almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta ilha Hispaniola, um milhão de índios e índias [...] dos quais, e dos quais nasceram desde então, não creio que estejam vivos, no presente ano de 1535, 500, incluindo tanto crianças como adultos, que sejam naturais, legítimos e da raça dos primeiros índios [...]. Alguns fizeram esses índios trabalhar excessivamente. Outros não lhes deram nada para comer como bem lhes convinha. Além disso, as pessoas desta região são naturalmente inúteis, corruptas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, sem constância e firmeza [...]. Vários índios, por prazer e passatempo, deixaram-se morrer com veneno para não trabalhar. Outros se enforcaram pelas próprias mãos. E quanto aos outros, tais doenças os atingiram que em pouco tempo morreram [...]. Quanto a mim, eu acreditaria que Nosso Senhor permitiu, devido aos grandes, enormes e abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas, que fossem eliminadas e banidas da superfície terrestre [...]. [OVIEDO, Gonzalo Fernandes de. In: ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 76.]

Cortez e seus soldados lutando contra os astecas em Tenochtitlán, Emanuel Leutze

DOCUMENTO 3
O relato desse primeiro encontro com Atahualpa foi feito por diversas testemunhas oculares [...]. Por meio de seu testemunho, a cena aparece para nós, hoje, como um confronto entre duas visões incompatíveis do mundo: de um lado, a de um soberano para quem a própria natureza do poder que encarna proíbe a comunicação direta com seus súditos e o recurso a mediadores; do outro, a de dois hidalgos espanhóis, Soto e Hernando Pizarro, para os quais os reis são interlocutores diretos a despeito de sua majestade. Quebrando sistematicamente as barreiras rituais que os separam do Inca, apagando os códigos de polidez e de hierarquia, os conquistadores vão marcar uma primeira vitória sobre um homem fechado em sua dignidade solar. Pois, mais do que as armas, são os gestos e as palavras que vão solapar a solenidade do Filho do Deus Sol, anunciando o fim de império do qual o Inca era a chave-mestra. [...] [BERNAND, Carmem; GRUZINSKY, Serge. História do Novo Mundo: da descoberta à conquista, uma experiência europeia (1492-1550). São Paulo: Edusp, 1997. p. 499-500.]

Entrada dos espanhóis em Guadalajara, Jalisco. Forças tlalcaxtecas acompanham os espanhóis liderados por Cristóbal de Olid, 1522. Escriba asteca desconhecido.

DOCUMENTO 4
A atitude de Colombo para com os índios decorre da percepção que tem deles. Podemos distinguir, nesta última, duas componentes, que continuarão presentes até o século seguinte e, praticamente, até os nossos dias, em todo o colonizador diante do colonizado. Estas duas atitudes já tinham sido observadas na relação de Colombo com a língua do outro. Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres completamente humanos com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os índios inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu como o universo; na convicção de que o mundo é um. [TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 51.]

A batalha de Otumba, Artista desconhecido

DOCUMENTO 5
Essa trilogia - doenças, desunião dos indígenas e o aço espanhol - responde por boa parte do resultado da Conquista. Basta remover um de seus elementos para que a probabilidade de fracasso das expedições lideradas por Cortés, Pizarro e outros fique muito alta [...].

Um quarto fator também desempenhou um papel importante: a cultura bélica. Por exemplo, os astecas foram prejudicados por certas convenções de batalha ignoradas pelos hispânicos. Os métodos de guerra astecas salientavam a observação de cerimônias que antecediam as batalhas - que eliminavam a possibilidade de ataques de surpresa - e a captura de inimigos para posterior execução ritual, em vez de matá-los no ato [...]. Por fim, a Conquista espanhola só pode ser plenamente compreendida se situada no contexto histórico mais amplo da expansão ultramarina. Essa história mais ampla não fala de uma superioridade espanhola, ou mesmo da Europa Ocidental, mas aborda, ao contrário, um complexo fenômeno da história mundial que transcende as peculiaridades da Conquista espanhola das Américas [...]. [RESTALL, Mattew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 240-242.]

A captura de Atahualpa, Juan Lepiani


DOCUMENTO 6
[...] Vieram os Dzules* que transformaram tudo. Eles ensinaram o terror, eles secaram as flores, sugando até ferir a flor dos outros para poderem fazer sobreviver a própria... Não havia entre eles nem grande sabedoria, nem palavras, nem ensinamentos. Os Dzules não vieram senão para mutilar o sol! E os filhos de seus filhos permaneceram entre nós, que deles não recebemos senão amargura. [ANÔNIMO. Chilam Balam de Chumayel. In: GENOROP, Paul. A civilização maia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 103.]

* Conquistadores espanhóis.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Presença estrangeira no Antigo Egito

Joseph, Lawrence-Alma Tadema

Os faraós sempre apresentaram o Egito como uma terra inexpugnável, numa espécie de mistificação que tinha a ver com o poderio militar e com a autoridade religiosa de que eles gozavam. À integridade do território, eles procuravam garantir castigando exemplarmente aqueles que tentavam violá-la. Mas, a realidade era bem diferente. O Egito foi sempre um país poroso, cuja prosperidade atraía seus vizinhos famélicos. No Alto Egito, os planaltos desérticos eram cortados em todas as direções por pequenos cursos d’água que conduziam ao vale do Nilo.

No Baixo Egito, os líbios haviam se acostumado a se espalhar pelo delta. A leste, as zonas pantanosas eram assombradas por populações marginais, e o “caminho de Hórus” ligava o Egito à Palestina. Paradoxalmente, foi o lado do Mediterrâneo que permaneceu o menos atraente para os visitantes.

Em tais condições, houve permanentemente uma presença no seio da civilização do Vale do Nilo, sob diferentes formas e em constante interinfluência.

Se as invasões provocaram traumas, o Egito se acomodou mais ou menos às infiltrações, às imigrações involuntárias ou provocadas, simplesmente porque o país sofria de uma falta crônica de mão-de-obra.

Ao contrário do Egito contemporâneo, de demografia explosiva, sua população era pouco numerosa – e os faraós insistiam em ser construtores infatigáveis. Eles com freqüência eram obrigados a recrutar estrangeiros já instalados no Egito, ou trazidos à força para o país. O episódio bíblico das doze tribos de hebreus encaminhadas para a construção de uma cidade repousa portanto sobre a realidade.

Os estrangeiros não estavam destinados apenas para a fabricação de tijolos, ou para serem chicoteados na construção dos grandes monumentos faraônicos. Eles podiam, por sua competência, atingir as mais altas funções. Assim, um semita foi vizir sob Amenófis III. Um outro supervisionou a construção do templo funerário de Ramsés II. A história de José tem portanto um pano de fundo autêntico. Os egípcios toleravam os particularismos das comunidades estrangeiras. Pelo menos até um certo limite. Se os judeus de Elefantina viram-se às voltas com a hostilidade dos habitantes, não foi por causa de uma pulsão racista, mas sim porque eles pretendiam sacrificar um cordeiro em uma cidade cuja divindade mais importante era um... carneiro!


Pascal Vernus. Estrangeiros construíram o Egito. In: Revista História Viva. Grandes temas, nº 46. p. 67.

NOTA: O texto "Presença estrangeira no Antigo Egito" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Novo mundo, novos termos

1492 mudou o mundo. Diferentes interpretações e conceitos tentam explicar as origens e os motivos dessa mudança. Mas cada um deles corresponde a diferentes posições ideológicas e pontos de vista dos estudiosos que se debruçam sobre a questão. O que parecia claro a todos é que tamanha transformação não podia ser atribuída apenas ao avanço da técnica ou ser mero reflexo da expansão comercial e marítima e da conquista de mercados, próprias da revolução comercial que se instalou na Europa no final da Idade Média.


Assim, após a constatação da existência de um mundo novo, repleto de surpresas, diferenças e similitudes, era preciso entender historicamente aquele fato. Como classificar esse acontecimento que abalou as formas de pensar do homem quinhentista?

Os conceitos de "descobrimento" e "achamento" têm o mesmo significado e se referem a algo previamente conhecido. Assim, o descobrimento do Novo Mundo, em 1492, não consistiu num fato absolutamente novo, pois já se sabia que havia terras ao ocidente da Europa e que em qualquer momento poderiam ser encontradas. Esse conceito difere de "descoberta", que significa descobrir algo desconhecido anteriormente, que não se conhecia ou se imaginava conhecer.

De fato, informações sobre ilhas ou regiões situadas no oceano ocidental eram de conhecimento dos homens da Idade Média, por meio de mitos e relatos dos povos antigos, como o de Estrabão (64 a.C.), de Plínio, o Velho (23 d.C.) e de Platão (428 a.C.), além da mítica Atlântida, retomada pelo Pseudo-Aristóteles (Livro das Maravilhas) e por Diodoro da Sicília (século I). Arqueólogos e outros pesquisadores procuram evidências da presença na América de cartagineses, fenícios e gregos, entre outros povos. Expedições marítimas relatavam a existência de terras a oeste da Europa, mas foi a expedição de 1492 que confirmou a existência de um Novo Mundo.

Para alguns historiadores, considerar o encontro como um fenômeno de conquista e dominação é subestimar a cultura do "outro". No entanto, considerar um encontro de civilizações também suscita dúvidas, já que o "outro" foi pego de surpresa, vítima da complexidade tecnológica trazida pelos europeus e dos deuses que o abandonaram diante do estrangeiro branco e barbudo, vítima também das discórdias e fragmentações internas, dos ódios e disputas de seus pares.

Por outro lado, considerar o acaso e aceitar que as terras foram achadas é uma forma de pensar mecanicista e simplista. Isso porque houve muito empenho em encontrar riquezas, mapas foram traçados, astrolábios, bússolas e toda a cartografia foram utilizados para descobrir riquezas e engrandecer os países europeus, a Espanha e Portugal.

O conceito de "encontro" é encobridor porque se estabelece ocultando a dominação do mundo europeu sobre o mundo do índio americano. Também não pode ser um encontro de duas culturas, em que o mundo do outro é subjugado e excluído, onde predomina o etnocentrismo, a superioridade da cristandade sobre as religiões indígenas e total desprezo pelos ritos, deuses, mitos e crenças dos nativos.


O massacre de Cholula, Félix Parra

No México, desde 1984, historiadores debatem o conceito de encontro e apresentaram o conceito de "encobrimento", por um lado, e a necessidade de desagravo ao índio, por outro. Durante a comemoração do V Centenário do Encontro de Dois Mundos, em 1992, o historiador Miguel Leon Portilla lançou o conceito "Encontro de Duas Culturas", e Felipe Gonzalez, durante as festividades dos 500 anos da América, falou em festejar o descobrimento como um encontro. Era mais uma posição política, em função da integração europeia e da abertura da Espanha à América Latina.

Já o conceito "invenção" foi proposto por Edmundo O' Gorman, que considerou que Cristóvão Colombo estava convencido de ter chegado à Ásia e constatado naquelas terras algo conhecido anteriormente, mas ainda não explorado. Por isso, chamou os habitantes de "seres asiáticos". Colombo morreu desconhecendo que havia encontrado um novo continente. Para o autor, "invenção" indicava que a América não foi descoberta ou achada, mas inventada à imagem e semelhança da Europa. Também o reconhecimento dos habitantes como seres asiáticos é uma invenção que só existiu na imaginação dos grandes navegantes e contribuiu para o desaparecimento do outro. O "índio" americano apenas deu vida a este ser inventado.

O conceito de conquista é adotado como prática de dominação. Trata-se de uma concepção jurídico-militar. O conquistador é o primeiro homem moderno ativo, prático, que impõe sua individualidade violenta a outras pessoas, ao outro.

Assim, as ideias de descobrimento, achamento, invenção e conquista dominam a historiografia sobre as formas como o Velho e o Novo Mundo se complementaram no sistema planeta-mundo.

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos. Novo mundo, novos termos. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, nº 84, setembro 2012. p. 36-37.

NOTA: O texto "Novo mundo, novos termos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Viajantes gregos: Heródoto

O sistema grego inevitavelmente abarcava vários pontos de vista. Mesmo dentro da Grécia havia uma variedade. Os líderes atenienses com frequência criticavam os espartanos por darem muita liberdade às mulheres. Os gregos também comerciavam muito com regiões do Mediterrâneo e Mar Negro, o que os expunha a muitas culturas diferentes. Em geral, formas alternativas de agir e fazer eram acolhidas com um misto de zombaria - os gregos chamavam outros povos de "bárbaros" - e tolerância. Não havia a postura de acolher o novo como sendo útil aos próprios costumes. Ao mesmo tempo, considerável ignorância do mundo externo e complacência sobre os padrões gregos, somadas a algumas tensões no que diz respeito às mulheres, podiam se combinar para que os relacionamentos homem-mulher em outras sociedades fossem vistos com exageros curiosos.


O historiador grego Heródoto

Ἡροδότου Ἁλικαρνησσέος ἱστορίης ἀπόδεξις ἥδε, ὡς μήτε τὰ γενόμενα ἐξ ἀνθρώπων τῷ χρόνῳ ἐξίτηλα γένηται, μήτε ἔργα μεγάλα τε καὶ θωμαστά, τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι ἀποδεχθέντα.
Heródoto 1.1

Tradução: Este é o relato das investigações efetuadas por Heródoto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens não se percam com o tempo e nem as grandes e admiráveis obras dos helenos e dos bárbaros fiquem sem glória.

Heródoto, o primeiro historiador grego autor de relato de viagens, nasceu por volta de 484 a.e.c. Estudou em Atenas e viajou por grande parte do Império Persa, isto é, por quase todo o Oriente Médio, assim como Egito e partes vizinhas do norte da África, incluindo a Líbia. Também viajou para o norte do Danúbio na Europa e para o Mar Negro. Nessas viagens, muito extensas para a época, ele coletou histórias sobre sociedades, algumas sem chegar a entender direito. Escreveu sobre o mundo que descobriu em sua obra História, que focalizou livremente as guerras entre Grécia e Pérsia, ocorridas entre 499 e 479 a.e.c.

Heródoto era um observador cuidadoso, ávido para separar o fato da ficção. Era também muito interessado e tolerante para com os costumes que diferiam de sua Grécia natal. No entanto, aceitou e reproduziu inúmeras distorções. Foi ingênuo no que diz respeito a animais bizarros e incorporou sem críticas histórias de sociedades em que as pessoas teriam o hábito de comer os pais idosos. Além do mais, acatou variações dramáticas no tratamento das mulheres.

Ao descrever o povo lídio, por exemplo, afirmou que

As filhas de todas as famílias de classe baixa da Lídia são prostitutas para que possam acumular um dote que lhes permita casar, e elas arrumam seus próprios casamentos... Afora essa prática de terem suas filhas trabalhando como prostitutas, os costumes na Lídia não são diferentes dos da Grécia.

Como observador tolerante e encantado com a variedade da vida humana, Heródoto aceitou uma implausível generalização, focada em hábitos sexuais extremados. No caso dos agartisianos, do norte do Mar Negro, ele afirma que

qualquer mulher está disponível para qualquer homem para fazer sexo, para assegurar que os homens são todos irmãos e que eles estão em termos amigáveis uns com os outros, uma vez que são todos parentes. Em outros aspectos, seu tipo de vida é semelhante ao dos trácios [um grupo do norte da Grécia].

Descrevendo os líbios, do norte da África, diz que "Outro costume raro deles é que quando suas mulheres jovens estão para se casarem, postam-se perante o rei e as que lhe agradarem são defloradas por ele." De outro grupo líbio, escreveu:

É costume que cada homem tenha certo número de esposas, mas [...] qualquer mulher está acessível para qualquer homem para sexo; um pessoal postado em frente de uma casa indica que está havendo uma relação sexual lá dentro. Quando um homem nasmoniano se casa, primeiro é costume a noiva ter sexo com todos os convidados, um depois do outro em sua noite de núpcias; cada homem que tem sexo com ela lhe dá um presente que trouxe de casa.

Outras histórias destacam mais a violência do que sexo. Uma tribo influenciada pelos gregos morando no Egito, os ausees,

celebram o festival em homenagem a Atena [uma deusa grega] uma vez por ano quando as moças solteiras da tribo dividem-se em dois grupos e lutam entre si com pedras e paus; as mulheres dizem que essa é a maneira pela qual pagam as dívidas de seus ancestrais para os deuses... Elas dizem que as mulheres que morrem nessas disputas não eram verdadeiramente virgens. Antes de deixarem-nas lutar, elas se unem para vestir a mais bela da geração seguinte de moças com um elmo coríntio e uma armadura grega.

Aqui, se é verdade, havia um fascinante caso de sincretismo, com a parafernália grega emprestada para um ritual que não era de forma alguma grego. Heródoto termina esse texto novamente com sexo.

Eles tinham relações sexuais com mulheres de forma promíscua; em vez de viverem em casais, sua vida sexual é a de verdadeiros animais. Quando o bebê de uma mulher cresce, na altura do terceiro mês, todos os homens se reúnem e a criança passa a ser filho do homem com o qual mais se parece.

Heródoto dedicou considerável atenção às amazonas, grupo de mulheres guerreiras que em geral agiam sem os homens, e supostamente viveram na Ásia Central. Aqui, ele elaborou uma crença já disseminada na Grécia. Os gregos afirmavam ter lutado contra as amazonas, que viciosamente matavam todos os homens que podiam. Num relato em que as amazonas se misturavam com outros povos para pelo menos se casarem e se reproduzirem, uma garota amazona tinha de matar um homem antes de se casar. Outra história via as amazonas se misturarem com outra tribo chamada scitianos cujos homens conseguiram ter relações com as guerreiras. Os scitianos convidaram as amazonas para viver em sua terra, mas as amazonas responderam:

Será para nós impossível viver com suas mulheres, porque nossas práticas são completamente diferentes das de vocês. Não aprendemos trabalhos de mulheres. Nós lançamos flechas, manejamos dardos, montamos cavalos - coisas com que suas mulheres não sabem lidar. Elas só ficam em seus lugares e fazem trabalhos de mulheres; elas nunca vão caçar ou a qualquer outro lugar.

E os jovens concordaram, e daí em diante as mulheres passaram a guerrear e a caçar com seus maridos, "usando as mesmas vestimentas dos homens".

Várias questões relativas a gênero emergem desse relato de viagem. Em primeiro lugar, Heródoto com frequência considera os comportamentos das mulheres muito mais estranhos do que qualquer coisa que tenha encontrado, provavelmente uma decorrência natural de vir de uma organização fortemente patriarcal que tornava fácil rotular e exagerar as diferenças. Em segundo lugar, ele raramente condena - e nisso é como outros observadores mais tarde na história mundial, ávido por acolher e embelezar a variedade humana. Pela mesma razão, contudo, não considera nada digno de admiração: não viu nada que os gregos pudessem incorporar para aprimorar os relacionamentos entre homens e mulheres. Outros povos sim poderiam copiar os gregos. Ele nota que os persas, por exemplo, emprestaram o hábito dos homens de ter sexo com garotos jovens. Os próprios gregos, no entanto, não tinham nada para aprimorar.

Por fim, existe o óbvio fascínio com sexo e violência. Embora não fosse uma sociedade repressiva, a Grécia desencorajava a promiscuidade; nesse contexto, não seria surpreendente que um homem aceitasse ingenuamente histórias de estrangeiros devassos. Certamente, isso era um tema comum nos relatos de viajantes: um uso dos "outros" para estimular fantasias sexuais e/ou despertar desdém moral em casa. As preocupações com mulheres agressivas misturaram um elemento de realidade com alguns medos mais amplos. À medida que os gregos foram tendo contato com grupos nômades, viram-se diante de povos que davam às mulheres papéis maiores do que eles próprios - inclusive papéis de luta. Isso é perfeitamente registrado nos relatos sobre povos do norte do Mar Negro, mas aconteceram exageros, como testemunha a credulidade sobre as amazonas. A ideia de mulheres mais liberais era intrigante, mas também assustadora, ao mesmo tempo que contrastava com a obediência e domesticidade requeridas na terra natal. Aqui, o exagero reflete tensões e ansiedades, advertindo que qualquer relaxamento nos controles patriarcais levaria ao caos. Viagens, nesse sentido, geravam tanto percepções sobre assuntos domésticos como sobre os comportamentos estrangeiros - mas a tendência era de preservar o que tinham, não de utilizar contatos como fonte de inovação.

STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2012. p. 50-54.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

El Diablo es indio

The Moose Chase, George de Forest Brush

Los conquistadores confirmaron que Satán, expulsado de Europa, habia encontrado refugio en las islas y las orillas del mar Caribe, besadas por su boca llameante.

Allí habitaban seres bestiales que llamaban juego al pecado carnal y lo practicaban sin horario ni contrato, ignoraban los diez mandamientos y los siete sacramentos y los siete pecados capitales, andaban en cueros y tenian la costumbre de comerse entre si.

La conquista de América fue una larga y dura tarea de exorcismo. Tan arraigado estaba el Maligno en estas tierras, que cuando parecia que los indios se arrodilaban devotamente ante la Virgen, estaban en realidad adorando a la serpiente que ella aplastaba bajo el pie; y cuando bessaban la Cruz estaban celebrando el encuentro de la lluvia con la tierra.

Los conquistadores cumplieron la misión de devolver a Dios el oro, la plata y las otras muchas riquezas que el Diablo habia usurpado. No fue fácil recuperar el botin. Menos mal que, de vez en cuando, recibian alguna ayudita de allá arriba. Cuando el dueño del Inferno preparó de los españoles hacia el Cerro Rico de Potosí, un arcángel bajó de las alturas y le propinó tremenda paliza.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.118-119.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

El Diablo es gitano

Dança cigana no jardim de Alcázar, Alfred Dehodencq

Hitler creia que la plaga gitana era uma amenaza, y no estaba solo.

Desde hace siglos, muchos han credo y siguen creyendo que esta raza de origen oscuro y oscuro color lleva el crimen en la sangre: siempre malditos, vagamundos sin más casa que el camino, violadores de doncellas y cerraduras, manos brujas para la baraja y el cuchillo.

En una sola noche de agosto de 1944, dos mil ochocientos noventa y siete gitanos, mujeres, niños, hombres, se hicieron humo en las câmaras de gas de Auschwitz.

Una cuarta parte de los gitanos de Europa fue aniquilada en esos años.

Por ellos, ¿ quién preguntó?

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.118.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

El Diablo es homosexual

O banho turco, Charles Demuth

En la Europa del Renacimiento, el fuego era el destino que merecian los hijos del inferno, que del fuego venian. Inglaterra castigaba con muerte horrorosa e quienes hubiesen tenido relaciones sexuales con animales, judios e personas de su mismo sexo.

Salvo en los reinos de los aztecas y de los incas, los homosexuales eran libres en América. El conquistador Vasco Nuñez de Balboa arrojó a los perros hambrientos a los indios que practicaban esta anormalidad con toda normalidad. Él creia que la homosexualidad era contagiosa. Cinco siglos después, escuché decir lo mismo al arzobispo de Montevideo.

El historiador Richard Nixon sabia que este vicio era fatal para la Civilización:

¿ Ustedes saben lo que pasó con los griegos? La homosexualidad los destrujó! Seguro. Aristóteles era homo. Todos los sabemos. Y también Sócrates. ¿ Y ustedes saben lo que pasó con los romanos? Los últimos seis emperadores eran maricones…

El civilizador Adolf Hitler habia tomado drásticas medidas para salvar a Alemania de este peligro. Los degenerados cukpables de aberrante delito contra la naturaleza fueron obligados a portar un triângulo rosado. ¿ Cuántos murieron en los campos de concentración? Nunca se supo.

En el año 2001, el gobierno alemán resolvió rectificar la exclusión de los homosexuales entre las víctimas del Holocausto. Más de medio siglo demoró en corregir la omisión.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.117-118.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

El Diablo es extranjero

Imigração, Fabrício Dom

El culpómetro indica que el immigrante viene a robamos el empleo y el peligrosimetro lo señala con luz roja.

Si es pobre, joven y no es blanco, el intruso, el que vino de afuera, está condenado a primera vista por indigencia, inclinación al caos o portación de piel. Y en cualquer caso, si no es pobre, ni joven, ni oscuro, de todos modos merece la malvenida, porque llega dispuesto a trabajar el doble a cambio de la mitad.

El pánico a la pérdida del empleo es uno de los miedos más poderosos entre todos los miedos que nos gobiernan en estos tiempos del miedo, y el immigrante está situado siempre a mano a la hora de acusar a los responsables del desempleo, la caida del salario, la inseguridad pública y otras terribles desgracias.

Antes, Europa derramaba sobre el sur del mundo soldados, presos y campesinos muertos de hambre. Esos protagonistas de las aventuras coloniales han pasado a la historia como agentes viajeros de Dios. Era de Civilización lanzada al rescate de la barbarie.

Ahoram el viaje ocurre al revés. Los que llegan, o intentan llegar, desde el sur al nortem son protagonistas de las desventuras coloniales, que pasarán a la historia como mensajeros del Diablo. Es la barbarie lanzada al asalto de la Civilización.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.116-117.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

El Diablo es pobre

Pena - as tristezas de um homem velho, Théodore Géricault

En las ciudades de nuestro tiempo, immensas cárceles que encierram a los prisioneros del miedo, las fortalezas dicen  ser casas y las armaduras simulan ser trajes.

Estado de sitio. No se distraiga, no baje la guardia, no se confie. Los amos del mundo dan la voz de alarma. Ellos, que impunemente violan la naturaleza, secuestran países, roban salarios y assesinan gentios, nos advierten: cuidado. Los peligrosos acechan, agazapados en los suburbios miserables, mordiendo envidias, tragando rencores.

Los pobres: los pelagatos, los muertos de las guerras, los presos de las cárceres, los brazos disponibles, los brazos desechables.

El hambre, que mata callando, mata a los callados. Los expertos, los pobrólogos, habian por ellos, Nos cuentan en qué no trabajanm qué no comen, cuánto no pesan, cuánto no miden, qué no tienen, qué no piensan, qué no votan, en qué no creen.

Sólo nos falta saber por qué los pobres son pobres. ¿ Será porque su hambre nos alimenta y su desnudez nos viste?

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 116.

domingo, 20 de outubro de 2013

El Diablo es mujer

Mulheres protestando, Di Cavalcanti

El libro “Malleus Maleficarum”, también llamado “El martillo de las brujas”, recomendaba el más despiadado exorcismo contra el demonio que lleva tetas y pelo largo.

Dos inquisidores alemanes, Heinrich Kramer y Jacob Sprenger, escribieron, por encargo del papa Inocencio VIII, este fundamento jurídico y teológico de los tribunales de la Santa Inquisición.

Los autores demostraban que las brujas, harén de Satán, representaban a las mujeres en estado natural, porque toda brujeria proviene de la lujuria carnal, que en las mujeres es insaciable. Y advertían que esos seres de aspecto bello, contacto fétido y mortal compañía encantaban a los hombres y los atraían, silbidos de serpiente, colas de escorpión, para aniquilarios.

Este tratado de criminologia aconsejaba someter a tormento a todas las sospechosas de brujeria, Si confesaban, merecian el fuego. Se no confesaban, también, porque sólo una bruja, fortalecida por su amante el Diablo en los aquelarres, podia resistir semejante suplicio sin soltar la lengua.

El papa Honorio III habia sentenciado:

- Las mujeres no deben hablar. Sus labios llevan el estigma de Eva, que perdió a los hombres.

Ocho siglos después, la Iglesia Católica les sigue negando el púlpito.

El mismo pánico hace que los fundamentalistas musulmanes les mutilen el sexo y les tapen la cara.

Y al alivio por el peligro conjurado mueve a los judios muy ortodoxos a empezar el dia susumando:

- Gracias, Señor, por no haberme hecho mujer.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.115-116

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

El Diablo es negro

Crianças negras, Emmanuel Zamor

Como la noche, como el pecado, el negro es enemigo de la luz y de la inocencia.

En su célebre libro de viajes, Marco Polo evocó a los habitantes de Zanzibar: Tenian boca muy grande, labios muy gruesos y nariz como de mono. Iban desnudos y eran totalmente negros, de modo que quien los viere en cualquier otra región del mundo creeria que eran diablos.

Tres siglos después, en España, Lucifer, pintado de negro, entrada en carro de fuego a los corrales de comedias y a los tablados de las ferias. Santa Teresa nunca pudo sacárselo de encima. Una vez se le paró al lado, y era un negrillo muy abominable. Y otra vez ella vio que le salia una gran llama roja del cuerpo negro, cuando se sentó encima de su libro de oraciones y le queimó los rezos.

En América, que habla importado millones de esclavos, se sabia que era Satán quien sonaba tambores en las plantaciones, llamando a la desobediencia, y metia música y memeos y tembladeras en los cuerpos de sua hijos nacidos para pecar. Y hasta Martin Fierro, gaucho pobre y castigado, se sentia bien comparándose con los negros, que estaban más jodidos que él:

- A éstos los hizo el Diablo – decia – para tizón del inferno.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.114-115

El Diablo es judío

Gassing, David Olère

Hitler no inventó nada. Desde hace dos mil años, los judíos son los imperdonables asesinos de Jesús y los culpables de todas las culpas.

¿Cómo? ¿Qué Jesús era judío? ¿Y judíos eran también los doce apóstoles y los cuatro evangelistas? ¿Cómo dice? No puede ser. Las verdades reveladas están más aliá de la duda: en las sinagogas el Diablo dicta clase, y los judíos se dedican desde siempre a profanar hostias, a envenenar aguas benditas, a provocar bancarrotas y a sembrar pestes.

Inglaterra los expulsó, sin dejar ni uno, en el año 1290, pero eso no impidió que Marlowe y Shakespeare, que quizá no habian visto un judío en su vida, crearan personajes obedientes a la caricatura del parásito chupasangre y el avaro usurero.

Acusados de servir al Maligno, estos malditos anduvieron los siglos de expulsión en expulsión y de matanza en matanza. Después de Inglaterra, fueron sucesivamente echados de Francia, Austria, España, Portugal y numerosas ciudades suizas, alemanas y italianas. En España habian vivido durante trece siglos. Se llevaron las llaves de sus casas. Hay quienes las tienen todavía.

La colosal carnicería organizada por Hitler culminó una larga historia.

La caza de judíos ha sido siempre un deporte europeo.

Ahora los palestinos, que jamás lo practicaron, pagan la cuenta.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.114.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

El Diablo es musulmán

Derviches, Jean-León Jérôme

Ya el Dante sabia que Mahoma era terrorista, Por algo to ubicó em uno de los circulos del Inferno, condenado a pena de taladro perpetuo: Lo vi rajado, celebro el poeta en “La divina comedia”, desde la barba hasta la parte inferior del vientre...

Mas de un Papa habia comprobado que las hordas musulmanas, que atormentaban a la Cristiandad, no estaban formadas por seres de carne y hueso, sino que eran um gran ejército de demônios que más crecia cuanto más sufria los golpes de las lanzas, las espadas y los arcabuces.

Allá el año 1564, el demonólogo Johann Wier habia contado los diablos que estaban trabajando em la tierra, a tiempo completo, por la perdición de las almas cristianas. Habia siete miliones cuatrocientos nueve mil ciento veintisiete, que actuaban divididos em setenta y nueve legiones.

Muchas águas hirvientes han pasado, desde aquel censo, bajo los puentes del inferno. ¿Cuántos suman, hoy dia, los enviados del reino de las tinieblas? Las artes de teatro dificultan el conteo. Estos engañeros  siguen usando turbantes, para ocultar sus cuernos, y largas túnicas tapan sus dolas de dragón, sus alas de murciélago y la bomba que llevan bajo el brazo.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 113-114.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Brasil como nação

Em meados do século XIX, a capital do Império viu surgir uma nova moda cultural: a de procurar vestígios de antigas civilizações, que teriam existido no interior do país antes da chegada de Cabral. Tais incursões, promovidas pelo prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ou, mais sucintamente, IHGB, não eram organizadas por lunáticos, mas sim por renomados intelectuais da época, que contavam, inclusive, com o apoio do governo imperial. A primeira delas, realizada em 1839, teve dimensões modestas, destinando-se a buscar vestígios arqueológicos nas imediações do Rio de Janeiro, onde se acreditava existirem, na Pedra da Gávea - sintomaticamente denominada Esfinge -, escritas rupestres de autoria de antigos fenícios.

Embora essas suspeitas não se tenham confirmado, a esperança de novas e espetaculares descobertas não desapareceu. Tanto foi assim que, em 1840, era dado início aos preparativos de uma arrojada incursão ao sertão baiano, com o objetivo de confirmar informações, que circulavam desde o século XVIII, a respeito das ruínas de uma cidade antiga, supostamente existente nas remotas matas do Cincorá. Como seria de esperar, essa expedição, apesar de ter durado vários anos, não obteve sucesso.

Nem tudo porém, era fracasso. Alguns empreendimentos científicos, embora não vinculados diretamente ao IHGB, resultaram em descobertas surpreendentes. Isso ocorreu, por exemplo, em Lagoa Santa, Minas Gerais, onde o cientista dinamarquês Peter Lund identificou, na década de 1840, fósseis humanos pré-históricos, confirmando as expectativas sobre a existência de um antiquíssimo povoamento do território brasileiro.

Animados com essas descobertas, os membros do IHGB reiniciaram as explorações arqueológicas, identificando, em várias partes do território brasileiro, sambaquis - uma espécie de depósito de lixo pré-histórico. Alguns desses depósitos alcançavam dimensões gigantescas e, no entender da época, bem que podiam esconder em seu interior construções monumentais. Foi isso pelo menos o que imaginou o erudito Francisco Freire Allemáo, que, também na década de 1849, tendo por base informações de um grande sambaqui, escreveu monografia a respeito de uma suposta "pirâmide", localizada no Campo Ourique, no Maranhão.

Paralelamente a essa arqueologia fantástica, desenvolveu-se na capital do Império uma linguística igualmente fantástica, onde aquele que é considerado o fundador da historiografia brasileira, Francisco Varnhagen, procurou demonstrar, através da comparação de vocábulos indígenas com os de antigas civilizações, a origem euro-asiática dos povos tupi-guaranis. Com base nesse conjunto de indícios especulou-se a respeito da origem dos índios do Brasil, quase sempre afirmando que eram "povos decaídos", ou seja, descendentes de altas civilizações mediterrâneas, como as dos egípcios ou dos fenícios, que haviam regredido ao estado de selvageria. O próprio imperador, D. Pedro II, não se furtou ao debate, escrevendo, na década de 1850, aos diretores do IHGB, para que procurassem responder o mais rapidamente possível:

Quais são os vestígios que possam provar uma civilização anterior aos portugueses?

E, mais ainda, em um rompante de etnólogo amador, o imperador sugeriu uma nova questão, interrogando:

Existiram ou não as Amazonas no Brasil?

Aos olhos do leitor atual, esse insólito empreendimento científico pode parecer uma piada. Na época, porém, o tema era levado a sério. Para compreendermos a razão disso, devemos ter em mente que as buscas arqueológicas oitocentistas eram uma espécie de "ponta de iceberg" de outra questão fundamental da época: o da identidade nacional brasileira.

E essa será a questão de que trataremos a seguir.

[...] logo após 1822 surgiram movimentos que questionavam o projeto político imperial "carioca", reivindicando o federalismo ou a independência de suas respectivas regiões. A luta contra esses movimentos demandou extraordinários recursos humanos e financeiros. Sua evolução também esteve longe de ser linear. Em 1831, a abdicação de D. Pedro I ao trono significou uma vitória das forças descentralizadoras, havendo até mesmo o que se convencionou chamar de "experiência republicana", tendo em vista a eleição direta de "regentes", espécie de "presidentes" da época, como foi o caso de Diogo Feijó.

No entanto a abdicação não diminuiu o impacto separatista. Pelo contrário, o período que se estende até 1848 foi caracterizado pelo avanço desse segmento. A elite imperial não só ordenou o massacre dos rebeldes das províncias, como também procurou criar instituições que viabilizassem o projeto monárquico. Os intelectuais vinculados a esse projeto investiram, por sua vez, no combate aos movimentos separatistas, mostrando que os "brasileiros" constituíam uma nacionalidade com características próprias. Em outras palavras, para ser viável, o Império deveria não só se impor através da força, como também por meio de boas instituições e de uma identidade coletiva que justificasse a razão de ser da nação que estava se formando.

Para felicidade destes intelectuais, a última questão, também enfrentada por boa parte dos países europeus, em processo de unificação, facultava-lhes assim um conjunto bastante rico de discussões a respeito da construção nacional. A instituição que centralizou tais debates foi o já referido Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Fundado em 1838, o IHGB reunia historiadores, romancistas, poetas, administradores públicos e políticos, em torno da investigação a respeito do caráter nacional brasileiro. Em certo sentido, a estrutura dessa instituição, pelo menos a ser projetada, reproduzia o modelo centralizados imperial. Assim, enquanto na Corte localizava-se a sede, nas províncias havia os respectivos institutos regionais. Esses, por sua vez, deveriam enviar documentos e relatos regionais para a capital, que trataria de escrever a "história do Brasil".

Nas discussões que se seguiram imediatamente à fundação do IHGB, a versão do que seria o elemento central da história nacional, ironicamente, foi definida por um estrangeiro. Segundo o esquema proposto por Karl von Martius, naturalista alemão, a história do Brasil resultaria da fusão de três raças: branca, negra e índia. Com certeza, nos dias de hoje tal definição não seria levada a sério, pois sabemos que a história não é um subproduto das "raças". Além disso, do ponto de vista cultural, os mencionados três grupos não formavam unidades homogêneas, nem muito menos mantiveram relações igualitárias no Novo Mundo, como a noção de "fusão" sugere. Na época, porém, a tese de Martius estava em dia com os mais avançados debates científicos, que, através da análise das diferentes misturas entre anglo-saxões, francos, normandos, celtas e romanos, tentavam explicar as diferentes nacionalidades europeias. Talvez a extraordinária repercussão da interpretação adotada pelo IHGB resulte desse pretenso rigor, que encantou não só historiadores, mas também romancistas e poetas.

A "teoria" das três raças se fundindo e formando a nacionalidade apresentava ainda dois atrativos suplementares. Em primeiro lugar, mostrava que os brasileiros eram diferentes dos portugueses, sendo legítimas, portanto, as aspirações de 1822. Em segundo lugar, tal interpretação procurava esvaziar a legitimidade dos movimentos separatistas, unificando, em uma mesma categoria nacional, o conjunto de habitantes dispersos pelas várias regiões do Império, contribuindo, assim, para a formação de uma identidade brasileira diferenciada da do antigo colonizador.


Mameluca e Cafusa na visão de Karl von Martius, naturalista alemão que defendia a ideia de que a história do Brasil resultaria da fusão de três raças: a branca, a negra e a indígena.

Porém, o sentimento de ser "diferente", em relação aos antigos metropolitanos, era abordado pelos intelectuais de maneira contraditória. É bom se ter sempre em mente que, tal qual o imperador, boa parte da elite monárquica descendia de portugueses. Como se não bastasse isso, romper totalmente com o passado metropolitano significava romper com os laços europeus, laços que, segundo o ponto de vista de muitos, coloriam o passado brasileiro com tintas de civilização.

No mencionado texto elaborado por Martius, que durante décadas serviu de guia a respeito de "como se deve escrever a história do Brasil", o tema do contato das três "raças" é explorado de maneira exemplar. Nele, a contribuição portuguesa para formação da nacionalidade brasileira é associada a instituições políticas, econômicas e religiosas, em outras palavras, às formas de vida civilizadas. Já a contribuição dos negros é apresentada de maneira contraditória, havendo sucintas alusões aos conhecimentos dos africanos em relação à natureza e, ao mesmo tempo, a seus preconceitos e superstições.

Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade positivamente diferente da de Portugal não seria propriamente a presença africana [...] mas sim a indígena. Em relação a esse segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar uma "contribuição", mas sim indicar que eles eram "ruínas de povos", ou seja, descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o Novo Mundo e entrado em decadência, regredindo ao estado de selvageria. Ora, essa sutil nuança em relação aos outros dois povos formadores da nacionalidade brasileira tinha importantes implicações. Se refletirmos um pouco, perceberemos que Martius transferiu para o futuro a definição do que seria a "contribuição" indígena; dependendo dos rumos tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos [...] essa contribuição poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses.

Cabe lembrar ainda que, por essa época, os principais centros econômicos do Império contavam com uma população indígena residual. Tal situação abria margem para a análise desse grupo enquanto elemento já incorporado à sociedade brasileira. Haveria, assim, na química simbólica da nacionalidade brasileira, um misterioso ingrediente, que, quando estudado com o devido cuidado, poderia revelar um passado monumental, rival mesmo do europeu.

[...]

Para os intelectuais vinculados a esse debate, a descoberta de vestígios de uma ou de várias complexas sociedades no território brasileiro era uma questão de tempo. Tal crença, por sua vez, resolvia, por assim dizer, um dilema que a muitos assustava: se os portugueses eram a única fonte de comportamento civilizado da nossa índole nacional, quais seriam, ao longo do tempo, os resultados do rompimento com a metrópole? Haveria um retrocesso? Assumir uma identidade não-branca, no mínimo, abalaria a auto-estima dos súditos da nova nação. Afinal, quais seriam as razões para os brasileiros se orgulharem de serem brasileiros?

Ora, é justamente nesse ponto que a apropriação de uma tradição indígena, baseada na existência de uma fantasiosa e ancestral "alta cultura", desempenhou um papel central na química da nacionalidade. Aos "índios" podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao "negro", permitindo-lhes rivalizar com os brancos. Sob a ótica do pequeno grupo de intelectuais que, na época, refletiam a respeito da identidade nacional brasileira, os primeiros habitantes do Brasil passaram a ser vistos como portadores de valores que até mesmo os portugueses da Época Moderna, marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais, haviam perdido. Para os autores que adotaram esse tipo de concepção, o mundo indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura do mundo antigo, valores que não existiam mais nas sociedades contemporâneas. A tradição indígena, ou a invenção dessa tradição, fornecia, por assim dizer, os ingredientes que faltavam para fazer do "brasileiro" um ser diferente do português, mas nem por isso inferior.

Boa parte da literatura brasileira do século XIX, como as clássicas obras produzidas por Gonçalves Dias e José de Alencar, estende raízes nesse intricado debate. A cada "ossinho" encontrado nas cavernas, a cada desenho rupestre identificado, a cada novo rumor de cidades perdidas nas selvas, cresciam as expectativas a respeito da descoberta de altas civilizações indígenas que teriam existido no território brasileiro. Essas expectativas, por sua vez, devido às características da vida intelectual no Império, conquistaram um público bem mais amplo do que o restrito grupo de sócios do IHGB. Por essa época, havia, no Brasil, muito pouca especialização da atividade intelectual. Um mesmo indivíduo podia, ao mesmo tempo, ser magistrado, jornalista, romancista, poeta, historiador, arqueólogo, naturalista, transitando, assim, em diversas áreas de conhecimento.

Para compreendermos as consequências dessa situação, é necessário sublinhar que, nas primeiras décadas do século XIX, observamos no Brasil o florescimento do romantismo. Em linhas gerais, os românticos caracterizavam-se pelo ecletismo filosófico, propondo mesmo criar um meio termo entre ciência e religião; estranha combinação que, pelo menos entre alguns autores da época, desdobrava-se em uma aproximação da ciência com a literatura e a poesia. O romantismo também fazia oposição à ideia de que as sociedades tinham a mesma origem, evoluindo da mesma maneira, ou ainda de que a história humana fosse guiada por algum objetivo, como aquele relativo à busca do progresso ou da liberdade. Ao contrário das teorias evolucionistas do século XVIII, os românticos não classificavam as nações como atrasadas, mas sim como diferentes entre si.

Ao considerar a nacionalidade algo a ser "descoberto", o romantismo em muito contribuía para a superação intelectual da experiência colonial. Daí, inclusive, a busca do passado indígena. Justamente por não se saber ao certo a origem dos "índios", as descobertas arqueológicas que estavam para ser feitas poderiam sugerir novas formas de entender e de valorizar a identidade nacional brasileira. Uma vez estipulados esses procedimentos, cabia aos intelectuais aprofundar os estudos e criar meios pedagógicos de sua divulgação. Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro. O leitor, caso queira isso confirmado, deve folhear os antigos números da Revista do IHGB, visitar museus que conservam quadros de Victor Meireles, ouvir O Guarani de Carlos Gomes, ou então correr à estante e abrir, em uma página qualquer, algum romance indianista de José de Alencar.

DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da história do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 208-215.