"Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar."
(Trem azul, música de Lô Borges e Ronaldo Bastos)
Apesar de o Partido Comunista Brasileiro ter sido contrário à luta armada como forma de combater a ditadura, o endurecimento do regime militar levou vários militantes a contrariar a posição do principal partido de esquerda brasileira e a pegar em armas para enfrentar o avanço da linha dura. Um dos primeiros a romper com a determinação do PCB foi Carlos Marighella, velho militante de esquerda que participara da Intentona Comunista de 1935. Em 1967, aos 56 anos, ele fundou a ALN (Ação Libertadora Nacional) e partiu para a luta armada. "Expropriou" vários bancos e, na ação mais espetacular, tomou uma estação da rádio Nacional, em agosto de 1968, lendo um "manifesto revolucionário".
Carteira de filiação de Carlos Marighella ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), 1945
Inspirados pelo exemplo de Carlos Marighella, pela Revolução Cubana e pelo slogan dos revolucionários de todo o mundo - "criar um, dois, três, mil Vietnãs" -, centenas de jovens militantes (muitos deles estudantes de classe média) aderiram à guerrilha urbana nos dois últimos anos da década de 1960. Houve inúmeras dissidências internas, divergências táticas e ideológicas e posições ensandecidas.
Em fins de 1969, a morte de Marighella se tornara questão de honra para os grupos encarregados da repressão. Após a tortura de dois frades dominicanos que mantinham ligação com o "terrorista", os homens do delegado Sérgio Paranhos Fleury, liderados por ele mesmo, surpreenderam Marighella numa rua de um bairro chique de São Paulo, na noite de 4 de novembro de 1969. Antes que pudesse reagir, Marighella - autor de vários livros sobre guerrilha publicados em todo o mundo - foi crivado de balas. Segundo a versão oficial, ele morreu ao tentar "resistir à prisão".
A morte de Marighella não foi suficiente para sufocar a guerrilha, que, com o sequestro de vários diplomatas, adquiriria repercussão nacional e internacional. É uma lei da física que se aplica à história: toda ação gera reação igual e em sentido contrário. Se o endurecimento do regime resultou na eclosão da guerrilha - com o surgimento de várias organizações, como ANL, VPR, MR-8, VAR-Palmares -, o início da "guerra suja" levaria o governo, especialmente depois da posse de Médici, a radicalizar ainda mais a repressão.
Nesse contexto, surgiram primeiro a Operação Bandeirantes (OBAN) e depois os DOI-CODIs. Criada em julho de 1969, a OBAN reuniu todos os órgãos que combatiam a luta armada e foi financiada por empresários [...]. Mais tarde, o Exército passou a agir por meio dos Destacamentos de Operações e Informações (DOIs) e Centro de Operações de Defesa Interna (CODIs), órgãos coordenados pelo Centro de Informações do Exército (CIE). Na prática, essas casas de tortura acabariam se tornando um poder paralelo que mais tarde desafiaria o próprio governo.
Embora não fosse militar, ninguém simbolizou melhor esse período negro da história do Brasil do que o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Fleury entrou para o DOPS, com 17 anos e logo ingressou na Ronda Noturna Especial (Ronde), notabilizando-se como um ferrenho caçador de bandidos que andava acompanhado por um cão policial.
São dessa época as acusações de que Fleury fazia parte do Esquadrão da Morte, grupo de extermínio montado dentro da polícia. A partir de 1968, convocado para a luta contra a "subversão", ele prendeu, torturou e, em alguns casos, matou muitos "terroristas". Foi condecorado várias vezes. Levado a julgamento, nunca foi punido, embora houvesse provas de seus crimes. Contrário à anistia, que o beneficiou, Fleury morreu em circunstâncias bastante misteriosas em 1979.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 376-7.