"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

El Diablo es indio

The Moose Chase, George de Forest Brush

Los conquistadores confirmaron que Satán, expulsado de Europa, habia encontrado refugio en las islas y las orillas del mar Caribe, besadas por su boca llameante.

Allí habitaban seres bestiales que llamaban juego al pecado carnal y lo practicaban sin horario ni contrato, ignoraban los diez mandamientos y los siete sacramentos y los siete pecados capitales, andaban en cueros y tenian la costumbre de comerse entre si.

La conquista de América fue una larga y dura tarea de exorcismo. Tan arraigado estaba el Maligno en estas tierras, que cuando parecia que los indios se arrodilaban devotamente ante la Virgen, estaban en realidad adorando a la serpiente que ella aplastaba bajo el pie; y cuando bessaban la Cruz estaban celebrando el encuentro de la lluvia con la tierra.

Los conquistadores cumplieron la misión de devolver a Dios el oro, la plata y las otras muchas riquezas que el Diablo habia usurpado. No fue fácil recuperar el botin. Menos mal que, de vez en cuando, recibian alguna ayudita de allá arriba. Cuando el dueño del Inferno preparó de los españoles hacia el Cerro Rico de Potosí, un arcángel bajó de las alturas y le propinó tremenda paliza.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.118-119.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

El Diablo es gitano

Dança cigana no jardim de Alcázar, Alfred Dehodencq

Hitler creia que la plaga gitana era uma amenaza, y no estaba solo.

Desde hace siglos, muchos han credo y siguen creyendo que esta raza de origen oscuro y oscuro color lleva el crimen en la sangre: siempre malditos, vagamundos sin más casa que el camino, violadores de doncellas y cerraduras, manos brujas para la baraja y el cuchillo.

En una sola noche de agosto de 1944, dos mil ochocientos noventa y siete gitanos, mujeres, niños, hombres, se hicieron humo en las câmaras de gas de Auschwitz.

Una cuarta parte de los gitanos de Europa fue aniquilada en esos años.

Por ellos, ¿ quién preguntó?

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.118.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

El Diablo es homosexual

O banho turco, Charles Demuth

En la Europa del Renacimiento, el fuego era el destino que merecian los hijos del inferno, que del fuego venian. Inglaterra castigaba con muerte horrorosa e quienes hubiesen tenido relaciones sexuales con animales, judios e personas de su mismo sexo.

Salvo en los reinos de los aztecas y de los incas, los homosexuales eran libres en América. El conquistador Vasco Nuñez de Balboa arrojó a los perros hambrientos a los indios que practicaban esta anormalidad con toda normalidad. Él creia que la homosexualidad era contagiosa. Cinco siglos después, escuché decir lo mismo al arzobispo de Montevideo.

El historiador Richard Nixon sabia que este vicio era fatal para la Civilización:

¿ Ustedes saben lo que pasó con los griegos? La homosexualidad los destrujó! Seguro. Aristóteles era homo. Todos los sabemos. Y también Sócrates. ¿ Y ustedes saben lo que pasó con los romanos? Los últimos seis emperadores eran maricones…

El civilizador Adolf Hitler habia tomado drásticas medidas para salvar a Alemania de este peligro. Los degenerados cukpables de aberrante delito contra la naturaleza fueron obligados a portar un triângulo rosado. ¿ Cuántos murieron en los campos de concentración? Nunca se supo.

En el año 2001, el gobierno alemán resolvió rectificar la exclusión de los homosexuales entre las víctimas del Holocausto. Más de medio siglo demoró en corregir la omisión.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.117-118.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Volúpia e paixão no Império Romano

Tais incoerências e limitações inexplicáveis, que são de todos os séculos, encontram-se em outro prazer: o amor. Se há uma parte da vida greco-romana falseada pela lenda, é essa; acreditamos erroneamente que a Antiguidade foi o paraíso da não repressão, não tendo ainda o cristianismo colocado o verme do pecado no fruto proibido. Na verdade o paganismo foi paralisado por interdições. A lenda da sensualidade pagã tem como origem contrassensos tradicionais: o famoso relato da devassidão do imperador Heliogábalo não passa de um embuste de letrados, autores de um falso tardio, a Historia Augusta; é uma página cujo humor se situa entre Bouvard e Pécuchet e Alfred Jarry; não consideremos Ubu um verdadeiro imperador. A lenda provém ainda da inépcia das próprias proibições; "nas palavras o latim afronta a honestidade", precisamente: para essas almas cândidas bastava pronunciar um "palavrão" para causar o impacto do exagero e, pelo constrangimento, provocar gargalhadas. Ousadias de colegiais.

Sátiro e Ninfa. 
Mosaico da Casa del Fauno, Pompéia

Como se reconhecia um autêntico libertino? Pela violação de três proibições: fazer amor antes do cair da noite (amar durante o dia devia continuar sendo privilégio dos recém-casados logo após as núpcias); fazer amor sem criar penumbra (os poetas eróticos tomavam como testemunha a lâmpada que brilhara sobre seus prazeres); fazer amor com uma parceira que ele havia despojado de todas as vestes (só as mulheres perdidas amavam sem sutiã, e nas pinturas dos bordéis de Pompeia as prostitutas conservavam esse último véu). A libertinagem se permite até carícias, desde que sejam feitas com a mão esquerda, ignorada pela direita. Um homem honesto só teria oportunidade de vislumbrar a nudez da amada se a lua passasse na hora certa pela janela aberta. Cochichava-se que tiranos libertinos — Heliogábalo, Nero, Calígula, Domiciano — violaram outras interdições; fizeram amor com damas casadas, virgens de boa família, adolescentes de nascimento livre, vestais, a própria irmã. 


Casal na cama. 
Afresco da casa de Lupanar, Pompéia.

Esse puritanismo também constituía uma escravidão. A atitude emblemática do amante não é levar a amada pela mão, pela cintura ou, como na Idade Média, com o braço ao redor do pescoço, mas de rolar sobre essa serva como sobre um divã; são costumes de serralho. Pode-se confessar também um ligeiro sadismo: bater nessa escrava na cama sob pretexto de se fazer obedecer. A parceira está a serviço do prazer de seu senhor e vai ao ponto de realizar todo o trabalho; se "cavalga" o amante imóvel é para servi-lo.


Parte do famoso mural mostrando várias posições sexuais. 
Afresco na Terma Suburbana, Pompéia.

Tal escravagismo constitui um machismo: possuir e não ser possuído; os jovens se desafiavam num estilo fálico. Ser ativo era ser macho, qualquer que fosse o sexo do parceiro passivo; havia, pois, duas infâmias supremas: o macho que leva a fraqueza servil a ponto de colocar a boca a serviço do prazer de uma mulher e o homem livre que não se respeita e leva a passividade (impudicitia) ao ponto de se deixar possuir. A pederastia, sabemos, constituía um pecado menor, desde que fosse a relação ativa de um homem livre com um escravo ou um homem de baixa condição; as pessoas divertiam-se com isso no teatro e vangloriavam-se disso na alta sociedade. Como qualquer indivíduo pode ter prazer sensual com o próprio sexo, a tolerância antiga levou a pederastia a difundir-se bastante e superficialmente: muitos homens com vocação heterossexual tinham assim um prazer epidérmico com os meninos; também se repetia proverbialmente que os meninos proporcionam um prazer tranquilo que não agita a alma, enquanto a paixão por uma mulher mergulha o homem livre em dolorosa escravidão.


Cena de amor no Nilo. 
Afresco do Triclinium de verão da casa de Ephebus, Pompéia.

Escravagismo machista e recusa à escravidão passional: fronteiras do amor romano. Os excessos amorosos coletivos atribuídos a certos tiranos eram a exploração do escravagismo e têm a falsa ousadia de uma encenação sádica. Nero, tirano fraco mais que cruel, organizava em seu serralho a própria passividade; Tibério organizava as complacências obrigadas de seus pequenos escravos, e Messalina punha em cena sua servilidade, imitando o privilégio masculino de medir a força pelo número de penetrações. Era menos exceder as interdições que falsear os termos das proibições e também planejar o próprio prazer, o que é de uma fraqueza insuportável; pois, como o álcool e todos os prazeres, a volúpia é perigosa para a energia viril e não se deve abusar dela; a gastronomia não prepara para uso moderado os prazeres da mesa.


Afresco de Priapus. 
Casa dos Vetti, Pompéia.

A paixão amorosa é ainda mais temível, pois torna um homem livre escravo de uma mulher, ele a chamará "senhora" e, como uma serva, lhe estenderá o espelho ou a sombrinha. A paixão amorosa não era, como para os modernos, um refúgio da imaginação individual, no qual os amantes têm a impressão de estar logrando alguém porque se afastam da sociedade. Roma recusou a tradição de amor cortês das paixões efébicas gregas, pois nisso via uma exaltação da paixão pura, nos dois sentidos do adjetivo (os gregos fingiam crer que o amor por um efebo de nascimento livre era platônico). Quando um romano se apaixonava loucamente, seus amigos e ele mesmo consideravam ou que perdera a cabeça por uma mulherzinha devido a um excesso de sensualidade, ou que moralmente caíra em escravidão; e, dócil como bom escravo, nosso enamorado oferecia-se a sua senhora para morrer, se ela assim lhe ordenasse. Tais excessos tinham a negra magnificência da vergonha, e nem os poetas eróticos ousavam enaltecê-los abertamente; levavam o leitor a desejá-los cantando-os com uma engraçada inversão da normalidade, um paradoxo humorístico.

Afresco de Pompéia. 
Casa de Vênus, século I d.C.

Na Antiguidade a exaltação petrarquiana da paixão teria escandalizado, se não tivesse feito sorrir. Os romanos ignoram essa exaltação medieval do objeto amado, tão sublime que deve permanecer inacessível; ignoram também esse subjetivismo que é o gosto moderno da experiência, em que, num mundo mantido a distância, escolhe-se viver alguma coisa para saber que efeito provoca, e não porque seu valor objetivo ou o dever obrigam a isso; ignoram até o verdadeiro paganismo, o da Renascença, suas graças, seus belos momentos. A complacência, a terna inclinação aos prazeres dos sentidos, que se tornam delícias da alma, não são antigas. As cenas báquicas antigas nada tem da audácia senhorial de Jules Romain no palácio do Tê em Mântua. Os romanos conheciam apenas uma variedade de individualismo, que confirmava a regra parecendo negá-la: o paradoxo do indolente enérgico; citavam com secreto prazer os casos de senadores cuja vida privada era de uma indolência detestável, mas que davam provas da maior energia em sua atividade pública: assim Cipião, Sila, César, Petrônio e até Catilina. Esse paradoxo constituía um segredo entre iniciados que dava à elite senatorial ares reais e a suspeita de estar acima das leis comuns interpretadas ao pé da letra, confirmando-as em seu verdadeiro espírito; o indolente enérgico era reprovável, mas lisonjeiro.


Eis os romanos tranquilizados; de fato, seu individualismo não se chamava experiência vivida, autocomplacência ou devoção privada, mas tranquilização. 

VEYNE, Paul. (Org.). História da vida privada 1: do Império Romano ao ano 1000. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 184-187.

domingo, 27 de outubro de 2013

Os banquetes romanos

O muro é penhor de civilidade; o banquete é cerimônia de civilidade. Assim que se vê em suas terras, em seu caro retiro, Horácio convida uma amiga para jantar, sem dúvida uma liberta, cantora ou atriz conhecida. Pois o banquete, para todos os usos, é a circunstância em que o homem privado desfruta do que ele de fato é e o mostra veridicamente a seus pares. O banquete tinha tanta importância quanto a vida dos salões no século XVIII e mesmo quanto a corte no Ancien Regime. Os imperadores não tinham corte; viviam em seu "palácio" na colina do Palatino, à maneira dos nobres de Roma em suas mansões. Cercados de escravos e libertos (tanto que o palácio abrigava os diferentes serviços ministeriais); mas, caída a noite, jantavam com seus convidados, que eram senadores ou simples cidadãos cuja companhia apreciavam. Acabavam-se as honras "públicas" e o "governo" do patrimônio: à noite o homem privado desabrochava no banquete; até os pobres (hoi penêtes) — ou seja, nove décimos da população — tinham suas noites de festim. O homem privado esquecia tudo durante o banquete, menos sua eventual "profissão"; um indivíduo que fez voto de consagrar a vida à busca da sabedoria não festejava da mesma forma que o profano vulgo, e sim como filósofo. 


Cena de banquete: Escravos servem seus amos. 
Artista desconhecido. Afresco romano, Pompéia.

O banquete constituía uma arte. A etiqueta parece ter sido menos elaborada e rigorosa que a nossa. Em compensação, jantava-se com clientes e amigos de toda posição, tanto que a ordem de precedência era rigorosamente observada na distribuição dos leitos ao redor da mesa onde ficavam os pratos. Não havia verdadeiro festim sem leito, mesmo entre os pobres: só se comia sentado nas refeições comuns (nas casas simples a mãe de família, de pé, servia o pai à mesa). A comida nos pareceria ora oriental, ora medieval. Contém muitos temperos e molhos complicados. A carne é fervida antes de cozinhar ou assar — tanto que perde o sangue — e adoçada. A gama dos sabores favoritos situa-se no agridoce. Para beber, poderíamos escolher entre um vinho com gosto de marsala e um resinado, como hoje em dia na Grécia, todos cortados com água. "Reforça a dose", ordena a um escanção um poeta erótico de coração partido. Pois a melhor parte do jantar, a mais longa, é aquela em que se bebe; durante a primeira metade do jantar nada se faz senão comer sem beber; a segunda parte, em que se bebe sem comer, constitui o banquete propriamente dito (comissatio). É mais que um festim: uma pequena festa, onde cada qual deve manter seu personagem. Em sinal de festa, os convivas portam chapéus de flores ou "coroas" e usam perfume, quer dizer, estão untados de óleo perfumado (desconhecendo-se o álcool, o óleo era o solvente dos perfumes): os banquetes eram suntuosos e brilhantes, assim como as noites de amor. 


Cena de banquete (detalhe). 
Artista desconhecido. Afresco romano, Casa dos Amantes, Pompéia.

O banquete era muito mais que um banquete, e esperavam--se considerações gerais, temas elevados, recapitulações de atos pessoais; se o dono da casa tem um filósofo doméstico ou um preceptor dos filhos, ordena-lhe que tome a palavra; os interlúdios musicais (com danças e cantos), executados por profissionais contratados para a ocasião, podem dar mais vida à festa. O banquete constitui uma manifestação social equivalente ao prazer de beber — ou até maior — e por isso inspirou um gênero literário, o do "banquete", em que os homens de cultura, filósofos ou eruditos (grammatici), abordam temas elevados. Quando a sala de festim oferece desse modo um espetáculo mais de salão que de refeitório, o ideal do banquete se realiza e a confusão com um festejo popular já não é possível. "Beber" designava então os prazeres da mundanalidade, da cultura, e às vezes os encantos da amizade; pensadores e poetas também podiam filosofar sobre o vinho.


Dois cozinheiros preparando carne.
Artista desconhecido. Fragmento de afresco romano.

O povo conhecia com menos ostentação o prazer de estar junto; havia a taberna e os "colégios", ou confrarias. Como hoje em dia num país muçulmano, as pessoas encontravam seus semelhantes antes no barbeiro, nas termas e na taberna. Em Pompéia as tabernas (cauponae) são muito numerosas; ali se encontravam viajantes de passagem, se aquecem as refeições (nem todos os pobres têm fogão em casa) e cortejam-se as taberneiras enfeitadas com joias rutilantes; os desafios amorosos são inscritos nas paredes. Essas práticas populares não eram de bom-tom, e um notável perdia a reputação se o viam jantando numa taberna; não era sério viver na rua (citava-se um filósofo de antanho tão desregrado que nunca saía sem dinheiro: queria poder comprar todo prazer que lhe aparecesse). O poder imperial moveu uma guerrinha de quatro séculos às tabernas para impedir que servissem também de restaurante (thermopolium), pois era mais moral comer na própria casa.

VEYNE, Paul. (Org.) História da vida privada 1: do Império Romano ao ano 1000. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 170-173.

sábado, 26 de outubro de 2013

A cidade medieval

Carcassone

A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela por portas e nela se caminha por ruas infernais que, felizmente, desembocam em praças paradisíacas. Ela é guarnecida de torres, torres das igrejas, das casas dos ricos e da muralha que a cerca. Lugar de cobiça, a cidade aspira à segurança. Seus habitantes fecham suas casas à chave, cuidadosamente, e o roubo é severamente reprimido. A cidade, bela e rica, é também fonte de idealização: a de uma convivência harmoniosa entre as classes. A misericórdia e a caridade se impõem como deveres que se exercem nos asilos, essas casas de pobres. [...] Mas os doentes, como os leprosos que não podem mais trabalhar, causam medo, e essas estruturas de abrigo não demoram a tornar-se estruturas de aprisionamento, de exclusão.

LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Unesp, 1998. p. 71.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Os retratos do Fayum

A Europeia. Esta jovem egípcia, com a garganta coberta por uma surpreendente rede de ouro fechada por um grande broche verde, e com seus imensos olhos negros que se desviam, exprime a melancolia de ter tão cedo deixado o mundo dos vivos. Antinoupolis, reinado de Adriano.

No oásis de Fayum, não muito longe da cidade do Cairo, são descobertos, no século XIX, túmulos datados da época da dominação romana (a partir do século I), contendo sarcófagos muito bem conservados, graças à secura do ar. A originalidade desses sarcófagos é que eles trazem o retrato do defunto, pintado com encáustica ou têmpera, sobre uma tabuleta de madeira ou uma tela de linho. Foram encontrados mais de 600, notáveis por sua qualidade artística e sua variedade. Alguns retratos foram executados por artistas populares, sem habilidade para respeitar as proporções do rosto, outros são assinados por pintores famosos. A partir de quatro cores básicas, branco, amarelo, vermelho e preto, o artista se empenha em transmitir a textura da carne, o brilho dos grandes olhos sombrios, a delicadeza dos traços, a expressão original de cada homem, mulher ou criança. A Europeia, da cor de pêssego; a Jovem com joias, penteada com tranças e anéis brilhantes; Aline, de rosto cheio; a bela Zenóbia de rosto harmonioso e olhar pensativo; os dois irmãos representados lado a lado num tondo (formato circular de pintura), conservam todo o seu frescor. A técnica de certas pinturas anuncia os ícones bizantinos ou as obras de pintores tão diferentes como Vermeer, Velásquez, Greco, Modigliani, Matisse ou Picasso.

Retrato dos dois irmãos

Retrato de um menino

Efebos sensuais, militares barbudos, encantadoras jovens, mulheres orgulhosas por exibir suas joias, matronas cansadas, crianças desaparecidas demasiado cedo, toda a sociedade do Egito romano é ressuscitada graças a essa surpreendente galeria de retratos, única em seu gênero, associando a prática egípcia do sarcófago à arte romana do retrato.

SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 3: das bacanais à Ravena. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 282-283.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Aparecimento da escritura na América Central

Os maias aperfeiçoaram ao máximo a escrita. Não são, contudo, seus inventores. Outras civilizações deixaram, antes deles, testemunhos da existência de textos elaborados, monumentos datados. Alguns indícios dispersos, o desenho de uma pata ou de uma cabeça de pássaro, não permitem atribuir à civilização olmeca (1500-400 a.C.) a concepção de um sistema codificado. O monumento 1 de El Portón, de cerca de 400 a.C., traz uma breve inscrição. Fora da área maia, em Oaxaca, glifos foram encontrados em monumentos que remontariam a 500 a.C. Trata-se de nomes próprios, como “Um Terremoto” do monumento 3 de San José Magote, talvez topônimos.

É em 31 a.C. que se pode, com a estela C de Três Zapotes, provar a existência de uma contagem do tempo, que implica cálculos complexos e um registro escrito. Outros textos, nos sítios maias de El Baúl, de Kaminaljuyú ou de Takalik Abaj, e na estatueta de Tuxtla, comprovam essas decifrações, mesmo se as datas são muitas vezes mais tardias (37).

Glifos maias, Palenque.

A prova definitiva remonta à descoberta, em 1986, da estela de La Mojarra: um texto de mais de cem glifos, acompanhado de datas (143-156), relata a epopeia de um senhor da guerra representado no monumento. A análise epigráfica permitiu aos especialistas decifrar a inscrição em língua mixezoque, língua falada por um povo cuja influência se estendia pela costa do Pacífico a Guatemala, no antigo território olmeca, e ao coração do país maia. O dinamismo dessa civilização ainda mal conhecida contribuiu para a formação da civilização maia. A estela de La Mojarra confere uma coerência às decifrações dos outros monumentos.

A instauração de uma escrita codificada é, portanto, estabelecida nos séculos II e I antes de Cristo, com talvez vários pontos de origem, Oaxaca e o território mixezoque. Mas esse é o resultado de um longo processo, cujos antecedentes cabe aos especialistas descobrir.


SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 3: das bacanais à Ravena. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 250.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A revolta dos Macabeus


Sob o reinado do rei Selêucida Antíoco IV (175-164 a.C.), surge na Judeia um movimento de helenização que procura dar fim à “marginalização” dos judeus, que aplicam estritamente sua lei, a Torá. Essa tentativa é realizada por dois grandes sacerdotes que acumulam autoridade religiosa e responsabilidades políticas. Nomeado sumo sacerdote em 175 a.C., Jasão promulga uma reforma fundando um ginásio em Jerusalém; visa talvez transformar a cidade em centro urbano grego, com o nome de Antióquia.

A pouca resistência que a reforma encontra, incita Menelau a depor Jasão em 172 a.C., para tomar seu lugar e promover um helenismo ainda mais radical, entregando-se ao mesmo tempo a uma verdadeira pilhagem dos recursos do Templo. Menelau provoca assim uma revolta popular, motivada por razões religiosas, mas também pela intensidade insuportável das cobranças fiscais. Em resposta aos motins e aos assassinatos que perturbam Jerusalém, Antíoco IV vem restabelecer a ordem de maneira brutal: suas tropas se entregam a verdadeiros massacres e o tesouro do templo é pilhado. Mais grave ainda, no outono de 168 a.C., o rei promulga um “édito de perseguição” que proíbe toda prática do judaísmo e institui cultos “pagãos” na Judeia: Zeus olímpico substitui assim Javé no templo de Jerusalém.

Uma parte do povo foge então de Jerusalém e encontra chefes militares na família dos Asmoneus, mais conhecidos com o nome de Macabeus (do hebraico maqqaba, “martelo”): sob a direção de Matatias, em seguida de seu filho Judas, ajudado por seus quatro irmãos, de 167 a 165 a.C., um exército de 6 mil a 10 mil homens multiplica os ataques contra as tropas selêucidas, mas também se voltam contra aqueles judeus que se submetem muito facilmente ao édito real. A guerra dos Macabeus termina com a tomada de Jerusalém e uma nova consagração do Templo, que é devolvido ao culto tradicional em dezembro de 165 a.C.

Os Macabeus não dispõem, contudo, de forças suficientes para expulsar definitivamente a guarnição da cidadela selêucida de Jerusalém. A morte de Antíoco IV lhes permite entabular negociações. Obtém a abolição do édito, de perseguição e a eliminação do sumo sacerdote Menelau, mas não podem impedir a nomeação de um novo sumo sacerdote filo-helênico. Um estado de guerra abafado se difunde então pelo país. Judas Macabeu desaparece em 160 a.C. e seu irmão Jônatas toma o comando das tropas dos Macabeus.

É somente em 152 a.C., favorecidos pela crise dinástica que opõe dois candidatos selêucidas, que os Macabeus finalmente triunfam: Jônatas é nomeado oficialmente sumo sacerdote e recebe uma série de garantias que conduzem praticamente à instauração de um Estado judaico independente. Mas é entre seus partidários que encontra novos adversários, porque sua família não é habilitada para exercer o pontificado. E, enquanto se instaura o Estado asmoneu, alguns dos mais rigorosos defensores da aplicação da Tora, os hassidim, se exilam voluntariamente para as margens do mar Morto e ali fundam a comunidade dos essênios.


SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 3: das bacanais à Ravena. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 240.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

El Diablo es extranjero

Imigração, Fabrício Dom

El culpómetro indica que el immigrante viene a robamos el empleo y el peligrosimetro lo señala con luz roja.

Si es pobre, joven y no es blanco, el intruso, el que vino de afuera, está condenado a primera vista por indigencia, inclinación al caos o portación de piel. Y en cualquer caso, si no es pobre, ni joven, ni oscuro, de todos modos merece la malvenida, porque llega dispuesto a trabajar el doble a cambio de la mitad.

El pánico a la pérdida del empleo es uno de los miedos más poderosos entre todos los miedos que nos gobiernan en estos tiempos del miedo, y el immigrante está situado siempre a mano a la hora de acusar a los responsables del desempleo, la caida del salario, la inseguridad pública y otras terribles desgracias.

Antes, Europa derramaba sobre el sur del mundo soldados, presos y campesinos muertos de hambre. Esos protagonistas de las aventuras coloniales han pasado a la historia como agentes viajeros de Dios. Era de Civilización lanzada al rescate de la barbarie.

Ahoram el viaje ocurre al revés. Los que llegan, o intentan llegar, desde el sur al nortem son protagonistas de las desventuras coloniales, que pasarán a la historia como mensajeros del Diablo. Es la barbarie lanzada al asalto de la Civilización.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.116-117.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

El Diablo es pobre

Pena - as tristezas de um homem velho, Théodore Géricault

En las ciudades de nuestro tiempo, immensas cárceles que encierram a los prisioneros del miedo, las fortalezas dicen  ser casas y las armaduras simulan ser trajes.

Estado de sitio. No se distraiga, no baje la guardia, no se confie. Los amos del mundo dan la voz de alarma. Ellos, que impunemente violan la naturaleza, secuestran países, roban salarios y assesinan gentios, nos advierten: cuidado. Los peligrosos acechan, agazapados en los suburbios miserables, mordiendo envidias, tragando rencores.

Los pobres: los pelagatos, los muertos de las guerras, los presos de las cárceres, los brazos disponibles, los brazos desechables.

El hambre, que mata callando, mata a los callados. Los expertos, los pobrólogos, habian por ellos, Nos cuentan en qué no trabajanm qué no comen, cuánto no pesan, cuánto no miden, qué no tienen, qué no piensan, qué no votan, en qué no creen.

Sólo nos falta saber por qué los pobres son pobres. ¿ Será porque su hambre nos alimenta y su desnudez nos viste?

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 116.

domingo, 20 de outubro de 2013

El Diablo es mujer

Mulheres protestando, Di Cavalcanti

El libro “Malleus Maleficarum”, también llamado “El martillo de las brujas”, recomendaba el más despiadado exorcismo contra el demonio que lleva tetas y pelo largo.

Dos inquisidores alemanes, Heinrich Kramer y Jacob Sprenger, escribieron, por encargo del papa Inocencio VIII, este fundamento jurídico y teológico de los tribunales de la Santa Inquisición.

Los autores demostraban que las brujas, harén de Satán, representaban a las mujeres en estado natural, porque toda brujeria proviene de la lujuria carnal, que en las mujeres es insaciable. Y advertían que esos seres de aspecto bello, contacto fétido y mortal compañía encantaban a los hombres y los atraían, silbidos de serpiente, colas de escorpión, para aniquilarios.

Este tratado de criminologia aconsejaba someter a tormento a todas las sospechosas de brujeria, Si confesaban, merecian el fuego. Se no confesaban, también, porque sólo una bruja, fortalecida por su amante el Diablo en los aquelarres, podia resistir semejante suplicio sin soltar la lengua.

El papa Honorio III habia sentenciado:

- Las mujeres no deben hablar. Sus labios llevan el estigma de Eva, que perdió a los hombres.

Ocho siglos después, la Iglesia Católica les sigue negando el púlpito.

El mismo pánico hace que los fundamentalistas musulmanes les mutilen el sexo y les tapen la cara.

Y al alivio por el peligro conjurado mueve a los judios muy ortodoxos a empezar el dia susumando:

- Gracias, Señor, por no haberme hecho mujer.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.115-116

sábado, 19 de outubro de 2013

Estigmatizados e perseguidos pelos nazistas: ciganos, judeus, homossexuais, eslavos, comunistas...

Os condenados, Felix Nussbaum
 

Os ciganos, outro alvo do nazismo, por serem vistos como constituintes de uma raça bastarda, de marginais e parasitas, também foram estigmatizados, levando na roupa um triângulo negro com o objetivo de se fazerem reconhecidos. Em 1939 havia em torno de 750 mil ciganos na Europa; cerca de 260 mil deles foram exterminados durante a guerra. [...]

A implantação do processo de aborto e esterilização permitiu que os médicos ficassem mais acostumados a intervir no corpo humano, mas nem por isso as mortes eram menos comuns. Depois de experimentos químicos e com o uso de raios X, os métodos abortivos foram aprimorados; criou-se, por exemplo, a injeção uterina, que diminuía os riscos de hemorragia e evitava outras complicações. Experiências dessa natureza eram feitas em mulheres judias e ciganas até que fossem devidamente testados os mecanismos de contracepção e de eugenia. [...]

Fileiras de cadáveres no campo de concentração de Nordhausende, Alemanha, 1945

Para uma visão de mundo que considera o diferente uma anomalia, não era difícil classificar o homossexual como culpado e dispensar-lhe o mesmo tratamento dado aos outros grupos perseguidos. [...] Em 1940, Himmler radicalizaria seu discurso: "É preciso abater esta peste pela morte". Os homossexuais eram obrigados a usar um triângulo rosa que os distinguia, classificava, isolava, estigmatizava, tornando-os presa fácil do racismo que crescia a cada dia.

Os eslavos, por sua vez, também eram vistos como subumanos pelos nazistas. Entre eles, os poloneses sofreram particularmente. As elites foram neutralizadas; a população, subjugada. Na verdade, durante todo o século XIX, a Polônia permaneceu dividida entre as grandes potências da região (Áustria, Rússia e Prússia), o que muito deve ter colaborado para a formação de um conceito depreciativo desse povo por parte dos nazistas. Provavelmente a fragilidade tão à mostra desse país muito contribuiu para que os nazistas, cujo pensamento considera as mudanças e os acasos da história como incompetência de sujeitos sociais incapazes de serem vencedores, formassem um conceito extremamente negativo dos poloneses. Hitler e seus seguidores tinham uma repulsa doentia pelo que consideravam fraqueza nas pessoas, grupos ou povos - "fraqueza" que, na realidade, é apenas sinal de vida. [...]

Os soviéticos sofriam duplo preconceito, por serem eslavos e por serem comunistas. Em relação a eles também o objetivo era a destruição completa. A invasão da União Soviética pela Alemanha, em junho de 1941, reforçou a arrogância dos alemães, e o massacre impetrado a civis e militares deu-lhes a ilusão de que o objetivo seria atingido. Entre 1941 e 1945, 60% dos 5 milhões e 700 mil prisioneiros de guerra soviéticos foram mortos pelos alemães. [...]

Os campos de concentração e extermínio, locais onde se eliminavam os que eram considerados dissonantes do todo homogêneo e coerente imaginado pelos nazistas, foram a materialização perfeita da visão de mundo totalitária. Ali a humanidade seria depurada, e a produção da morte em massa possibilitaria a emergência de uma nova raça, idêntica a si mesma, ou seja, mais "pura" e pronta para o domínio universal. Nos campos estava condensada a essência do regime nazista.

CAPELATO, Maria Helena; D'ALESSIO, Márcia Mansor. Nazismo: política, cultura e holocausto. São Paulo: Atual, 2004. p. 32, 92-95. (Coleção Discutindo a história)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O século da História e da Filosofia

Os europeus, que vivem grandes transformações no campo da economia, da ciência, da política, procuram dominar o passado para saber de onde eles vêm e para aonde vão. A análise dos documentos, o modo de contar a história, os esforços para explicá-la, a criação de sociedades acadêmicas e de revistas especializadas fazem da história uma das grandes preocupações da Europa do século XIX. A pesquisa e a reflexão históricas desenvolvem-se muitas vezes tendo como objeto a nação. Por exemplo, dois importantes nomes demonstram isso na França: Jules Michelet, importante escritor e militante democrata que acolhe no Collège de France o grande poeta polonês exilado, Adam Mickiewicz, e escreve uma grande História da França; e  Ernest Lavisse que também publica, de 1900 a 1912, a obra História da França, mais nacionalista, que atingirá um grande público, particularmente nas escolas.

O conhecimento da história é muito importante para os europeus e para a construção da Europa. É preciso conhecer o passado para saber como preparar o futuro, desenvolver as boas tradições da Europa, evitar que os erros e os crimes recomecem. Também é preciso evitar que se manipule a história forjando mitos nacionalistas. A História não deve ser um fardo a ser carregado ou uma má conselheira que legitima a violência. Com o tempo ela deve trazer a verdade, servir ao progresso.

No campo da Filosofia - que, pelas mesmas razões, procura compreender o que é o homem, a sociedade, a história -, há uma influência especial do pensamento alemão, de Immanuel Kant a Friedrich Hegel.

Continua existindo, na arte, na literatura, ou a influência de um país, ou a difusão de movimentos em toda a Europa. No final do século XIX, é o romance russo que está na moda com dois nomes importantes, Leon Tolstoi e Fiódor Dostoiévski. [...]

Art Nouveau: Salomé, Alfons Mucha

Na arte, é o triunfo da pintura impressionista [...] do inglês William Turner, dos franceses Édouard Manet, Claude Monet, Edgard Degas, Auguste Renoir [...] Depois é o estilo Modern Style ou Art Nouveau, e, no início do século XX, o cubismo (o francês Braque, o espanhol Pablo Picasso), o surrealismo... 

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 132-134.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A política e a economia sob os soberanos Lágidas

Em 305 a.C., por ocasião de sua conquista do Egito, Alexandre, o Grande, tinha colocado à testa de sua nova província Ptolomeu, filho de Lagos. Procedente da nobreza macedônia, Ptolomeu assume o título grego de basileus (rei). Seu poder é reconhecido pelos sacerdotes egípcios. Comanda então o exército, administra a Justiça e honra as divindades. A administração central é instalada em Alexandria, enquanto novas divisões administrativas são criadas (notadamente as nomes), a fim de estabelecer os serviços e o controle fiscal... Entre os funcionários, o dioceta tem um papel essencial: supervisiona as engrenagens da economia e é responsável pela exploração das “terras reais” e pelos rendimentos do Tesouro.

Sob os Lágidas, o sistema monetário, criado pelos comerciantes do antigo emporion (entreposto) grego de Naucratis e por muito tempo ignorado pelos egípcios, se estende a todo o Egito. Os gregos instauram os bancos do Estado que coexistem com bancos privados. No mesmo momento, Alexandria se afirma como um pólo econômico excepcional no Mediterrâneo e se torna a cidade dos naucleros, espécie de transitários que garantem o comércio marítimo internacional.

Estela de uma mulher.
Foto: Shakko

A economia rural é transformada, inovações permitem aumentar a superfície cultivável. As colheitas permanecem ligadas ao ritmo das cheias do Nilo e da rede de canais de irrigação. As áreas cultiváveis são objeto de uma atenção especial e de uma política voluntarista na região do Fayum. O regime das terras é complexo. A “terra sagrada” permanece propriedade inalienável dos templos. Diodoro da Sicília, na época romana, a avalia em um terço da superfície cultivada. Os reis controlam, no entanto, as propriedades fundiárias, os rebanhos dos templos, pois todo arrendamento das “terras sagradas” depende do poder central. Cultiva-se o trigo, a videira, árvores frutíferas e se cria especialmente ovinos e às vezes bovinos. As cidades e as aldeias abrigam atividades artesanais, tecidos, tinturaria, ourivesaria, cerâmica e vidraria de qualidade.

SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 2: da Babilônia ao exército enterrado chinês. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 210-211.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os reinos combatentes (479-221 a.C.)

O período dito dos “reinos combatentes” estende-se aproximadamente da morte de Confúcio (479 a.C.) à fundação do Império, em 221 a.C. É uma época de aceleração da história: as transformações políticas, econômicas e sociais dos séculos VIII-VI foram concluídas. O território chinês, ainda nominalmente sob a autoridade do rei da dinastia dos Zhu, é dividido em vários principados que se entregam a guerras mortíferas, segundo alianças e reversões incessantes, terminando com a vitória fulgurante do reino de Qin, que reunificará o território.

A guerra se transforma: é mais longa, mais “profissional”, realizada por exércitos de soldados de infantaria anônimos enviados ao matadouro e com armas de ferro mais sofisticadas. É dessa época que data a estratégia militar chinesa e o famoso tratado, a Arte da guerra. Nos principados, os soberanos já se cercam de conselheiros, antepassados dos letrados do Império. É o momento das reformas administrativas políticas, econômicas (generalização do distrito, do imposto, do serviço militar) e dos grandes trabalhos de valorização do território, embora novas mentalidades apareçam, voltadas para a eficácia ou até mesmo para o cinismo.

Um dos personagens-chave dos reinos combatentes é o rico mercador, que detém um papel político junto aos príncipes. A guerra estimula, com efeito, a economia: a produção agrícola, nervo da guerra, mas também a indústria mineira e a metalurgia. As cidades, os contratos, as moedas se desenvolvem.

Bronze, século III

 A essas transformações corresponde uma efervescência intelectual intensa: a grande liberdade de expressão favorece a eclosão de múltiplas correntes de pensamento, que estão na origem da cultura chinesa, e cujos partidários se enfrentam por meio de escritos interpostos ou por meio da retórica. Os reinos combatentes ainda não revelaram todos os seus segredos: continua-se hoje a fazer descobertas arqueológicas sensacionais que confirmam que a China da época era a um só tempo avançada e multicultural.


SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 2: da Babilônia ao exército enterrado chinês. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 186.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A cultura Paracas

Paracas, cujo nome significa literalmente “chuva de areia”, designa uma cultura pré-hispânica que se desenvolve na península de Paracas e na costa desértica do sul do peru entre os séculos VIII a.C. e o século I d.C.

Vivendo da agricultura e praticando a irrigação, os habitantes residem em pequenas aldeias e centros residenciais de épocas muito variadas. Entre 700 e 500 a.C., a sociedade Paracas é fortemente ligada à cultura Chavín, notadamente na região denominada Disco Verde, onde são encontradas casas subterrâneas com paredes de pedra, associadas a vastos cemitérios.

A partir do período Paracas-cavernas (400-300 a.C.) e Paracas-necrópolis (200 a.C. – século I d.C.), do nome dos dois grandes tipos de sepultamentos observados pelos arqueólogos, essas aldeias abrigam choupanas de madeira e de esteiras. Por volta do século I d.C. (período denominado Proto Nazca, ou simplesmente Nazca), essas choupanas dão progressivamente lugar a casas de pedra. A região é, em seguida, influenciada pela cultura Nazca.

Detalhe de um tecido funerário ou manto. Estes tecidos de algodão ou lã, finamente trabalhados, que envolviam as múmias, são emblemáticos da cultura Paracas.

A cultura Paracas é famosa pela qualidade dos tecidos funerários que envolvem as múmias. No antigo Peru, os tecidos têm acima de tudo uma função simbólica importante. Símbolos de poder e de status social, são associados aos diferentes ciclos da vida dos homens. São utilizados igualmente por ocasião dos ritos religiosos, dos intercâmbios comerciais, assim como nas atividades bélicas e para os ritos fúnebres. A cultura Paracas revelou também admiráveis cerâmicas e numerosos objetos de metal (ouro e cobre) e outros materiais.


SALLES, Catherine [dir.] Larousse das civilizações antigas 2: da Babilônia ao exército enterrado chinês. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 146.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Fogo: uma revolução alimentar

Passado Presente: Primitivos contemporâneos. África.

Há mais ou menos 500 mil anos, o uso regular do fogo no universo doméstico modificou profundamente a alimentação, assim como os comportamentos sociais a ela relacionados. O gosto pela carne cozida (consumida depois de incêndios naturais) é corrente entre muitos carnívoros. [...]

Diorama: Homens das cavernas. Museu Nacional de História da Mongólia.

Além da vantagem nutricional da cocção dos alimentos, logo ficou patente sua importância no plano social: ela favorece, com efeito, a comensalidade, ou seja, o hábito de fazer as refeições em comum, introduzindo no seio do grupo uma divisão de trabalho mais efetiva, um ritmo de atividades comum a todos e, de modo geral, um nível mais complexo de organização do grupo. [...]

A conservação se fazia pela secagem, defumação ou congelamento em covas feitas na terra. [...] Os alimentos estocados eram consumidos secos ou reidratados através da fervura: ebulição que se processava em recipientes de madeira, de cascas ou de pele, nas quais se jogavam, de quando em quando, pedras aquecidas. [...].

FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Dir.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 44-46.

domingo, 13 de outubro de 2013

Mulheres de Atenas

Cerâmica: Participante num banquete e uma tocadora de flauta

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos
Orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem imploram
Mais duras penas
Cadenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos
Poder e força de Atenas
Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas

E quando eles voltam, sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas, obscenas
Mirem-se no exemplo 
Daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos
Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar um carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos
Os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios...
Lindas serenas
morenas
Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos
Heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos
Orgulho e raça de Atenas

Mulheres de Atenas. Meus caros amigos (1976). (CD), de Chico Buarque, Philips.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

El Diablo es negro

Crianças negras, Emmanuel Zamor

Como la noche, como el pecado, el negro es enemigo de la luz y de la inocencia.

En su célebre libro de viajes, Marco Polo evocó a los habitantes de Zanzibar: Tenian boca muy grande, labios muy gruesos y nariz como de mono. Iban desnudos y eran totalmente negros, de modo que quien los viere en cualquier otra región del mundo creeria que eran diablos.

Tres siglos después, en España, Lucifer, pintado de negro, entrada en carro de fuego a los corrales de comedias y a los tablados de las ferias. Santa Teresa nunca pudo sacárselo de encima. Una vez se le paró al lado, y era un negrillo muy abominable. Y otra vez ella vio que le salia una gran llama roja del cuerpo negro, cuando se sentó encima de su libro de oraciones y le queimó los rezos.

En América, que habla importado millones de esclavos, se sabia que era Satán quien sonaba tambores en las plantaciones, llamando a la desobediencia, y metia música y memeos y tembladeras en los cuerpos de sua hijos nacidos para pecar. Y hasta Martin Fierro, gaucho pobre y castigado, se sentia bien comparándose con los negros, que estaban más jodidos que él:

- A éstos los hizo el Diablo – decia – para tizón del inferno.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.114-115

El Diablo es judío

Gassing, David Olère

Hitler no inventó nada. Desde hace dos mil años, los judíos son los imperdonables asesinos de Jesús y los culpables de todas las culpas.

¿Cómo? ¿Qué Jesús era judío? ¿Y judíos eran también los doce apóstoles y los cuatro evangelistas? ¿Cómo dice? No puede ser. Las verdades reveladas están más aliá de la duda: en las sinagogas el Diablo dicta clase, y los judíos se dedican desde siempre a profanar hostias, a envenenar aguas benditas, a provocar bancarrotas y a sembrar pestes.

Inglaterra los expulsó, sin dejar ni uno, en el año 1290, pero eso no impidió que Marlowe y Shakespeare, que quizá no habian visto un judío en su vida, crearan personajes obedientes a la caricatura del parásito chupasangre y el avaro usurero.

Acusados de servir al Maligno, estos malditos anduvieron los siglos de expulsión en expulsión y de matanza en matanza. Después de Inglaterra, fueron sucesivamente echados de Francia, Austria, España, Portugal y numerosas ciudades suizas, alemanas y italianas. En España habian vivido durante trece siglos. Se llevaron las llaves de sus casas. Hay quienes las tienen todavía.

La colosal carnicería organizada por Hitler culminó una larga historia.

La caza de judíos ha sido siempre un deporte europeo.

Ahora los palestinos, que jamás lo practicaron, pagan la cuenta.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.114.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

El Diablo es musulmán

Derviches, Jean-León Jérôme

Ya el Dante sabia que Mahoma era terrorista, Por algo to ubicó em uno de los circulos del Inferno, condenado a pena de taladro perpetuo: Lo vi rajado, celebro el poeta en “La divina comedia”, desde la barba hasta la parte inferior del vientre...

Mas de un Papa habia comprobado que las hordas musulmanas, que atormentaban a la Cristiandad, no estaban formadas por seres de carne y hueso, sino que eran um gran ejército de demônios que más crecia cuanto más sufria los golpes de las lanzas, las espadas y los arcabuces.

Allá el año 1564, el demonólogo Johann Wier habia contado los diablos que estaban trabajando em la tierra, a tiempo completo, por la perdición de las almas cristianas. Habia siete miliones cuatrocientos nueve mil ciento veintisiete, que actuaban divididos em setenta y nueve legiones.

Muchas águas hirvientes han pasado, desde aquel censo, bajo los puentes del inferno. ¿Cuántos suman, hoy dia, los enviados del reino de las tinieblas? Las artes de teatro dificultan el conteo. Estos engañeros  siguen usando turbantes, para ocultar sus cuernos, y largas túnicas tapan sus dolas de dragón, sus alas de murciélago y la bomba que llevan bajo el brazo.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 113-114.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O golpe de 64 e a ditadura militar 3: a repressão

A verdade ainda que tardia (detalhe de painel instalado na Câmara), Elifas Andreato

O líder comunista Gregório Bezerra tinha 63 anos ao ser preso pela polícia particular do usineiro Zé Lopes. O fato ocorreu nos primeiros dias de abril de 1964, no interior de Pernambuco. Transferido para Recife, Gregório foi espancado pelo coronel Villocq Viana e pelos seus soldados, no quartel do Exército. Recebeu socos, pontapés e pancadas com barras de ferro. Obrigaram-no a caminhar descalço sobre ácido jogado no chão. Com os pés em carne viva, amarrado pelo pescoço com três cordas, puxado por soldados, teve de desfilar pelas ruas da capital pernambucana.

O coronel Villocq Viana comandava a exibição, mostrando ao povo o "comunista traidor da pátria". O ex-chefe de polícia Waldenkolk Wanderley, tomando a corda de um soldado, gritava: "Este é o comunista que queria destruir o lar de vocês. Agita agora, traidor". E desabavam socos e pontapés sobre o prisioneiro.

O povo assustou-se; mulheres desmaiaram. O coronel Villocq Viana levou o cortejo até a sua casa, para exibir o "traidor da pátria" à esposa. O homem ensanguentado, porém altivo, respondia às pancadas e insultou com uma pergunta: "É esta a civilização cristã e ocidental?" Seu comportamento impressionou a mulher, que caiu numa crise de choro. Irritado, o coronel aumentou o volume dos gritos e a força das pancadas.

A agressão a Gregório Bezerra foi o prenúncio do que aconteceria no Brasil: prepotência da polícia particular dos poderosos, tortura dentro dos quartéis e histerismo da "nova autoridade" exibido ostensivamente como patriotismo. Mas um prenúncio ainda tímido: tudo iria piorar.

Os primeiros meses pós-golpe ficaram marcados pela detenção de aproximadamente 50 mil pessoas. Os militares realizaram uma "operação pente-fino": de rua em rua, de casa em casa, procuravam suspeitos, livros, documentos, qualquer coisa que ligasse os acusados ao governo anterior ou à "subversão". Não se prendiam "culpados", mas todos os que não podiam provar inocência. Poucos líderes sindicais e estudantis escaparam da repressão.

O interrogatório era acompanhado de espancamento, que endurecia a "periculosidade" da vítima. Dessa forma, sofriam mais os inocentes e os completamente ignorantes da nova política - por não terem o que esconder, não mentiam, diziam que não sabiam de nada e, por isso, tornavam-se altamente suspeitos pela sua "resistência".

Nas primeiras semanas depois do golpe, a imprensa (ainda sem censura plena) noticiava timidamente as violências. Mas a revista Time informou ao mundo a existência da Operação Limpeza, assegurando que se prendiam em média 10 mil pessoas por semana. A imprensa internacional divulgou a situação do Brasil e já em setembro de 1964 - seis meses após o golpe - as entidades internacionais dos direitos humanos começavam a denunciar o regime militar brasileiro.

Prendeu-se tanto que as cadeias foram insuficientes. O Maracanã virou presídio; navios da Marinha receberam  centenas de "subversivos". Os quartéis em todo o Brasil lotaram de prisioneiros. A impunidade estimulou o uso da tortura. Cometeram-se tantos abusos que até a imprensa brasileira começou a denunciá-los. O governo Castelo Branco, geralmente apresentado como "democrático", prometia investigar, enquanto a violência ia se incorporando ao cotidiano nacional.

Em 1968, o AI-5 impôs à imprensa a mais brutal censura da história do Brasil. Absolutamente nada que "ofendesse" o governo podia ser noticiado. A partir daí, a violência tornou-se um método de dominação. Todos os jornais, inclusive os que apoiaram o golpe, foram censurados e alguns de seus diretores, presos.

O "Exército de Caxias" chegou a um rebaixamento moral que os militares talvez pensassem jamais ser possível. Em abril de 1968, explodiu uma bomba tão forte no saguão de O Estado de S. Paulo que arrebentou os vidros dos edifícios localizados em um raio de 500 metros. As autoridades atribuíram o atentado às "forças de esquerda", usando o fato para justificar o aumento da repressão e da censura. Dez anos depois, descobriu-se que a explosão havia sido preparada e executada pelo Estado-Maior do II Exército.

Seguiram-se outros atentados planejados pelo II Exército para culpar a esquerda, entre eles um idealizado pelo general Jaime Portela, chefe da Casa Militar da Presidência da República. Em 20 de agosto de 1968, um grupo de soldados da Força Pública de São Paulo explodiu uma bomba em um estacionamento em frente do Deops. A operação era tão secreta que o seu líder foi torturado por engano nas dependências do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic): pressionado, Aladino Félix [...] confessou ter agido sob as ordens do general Portela.

Os atentados de direita multiplicaram-se, alguns com o objetivo claro de intimidar políticos, artistas ou intelectuais, outros para incriminar as esquerdas. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) atacou livrarias, teatros, cinemas e escolas.

Um dos mais espetaculares atentados projetados pelo governo - ou por militares intimamente ligados ao poder - acabou frustrado pela recusa de um oficial em executá-lo. Em 1968, o brigadeiro João Paulo Penido Burnier, chefe de Gabinete do ministro da Aeronáutica, Márcio de Souza Mello, planejou explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, com o auxílio do Para-SAR. Milhares de pessoas morreriam, mas, segundo o brigadeiro Burnier, o atentado seria necessário para "salvar o Brasil do comunismo", instigando o ódio da população contra os "subversivos", que levariam a culpa pelas mortes.

O capitão-aviador Sérgio Miranda de Carvalho, encarregado de executar o plano, negou-se a cumprir a missão e ameaçou denunciá-la, caso Burnier pretendesse levá-la adiante com outros oficiais. O plano frustrou-se, mas o capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica, em 1969, acusado de "louco".

Só em 1978 a verdade veio à tona, graças ao depoimento do brigadeiro Eduardo Gomes, em defesa do capitão Sérgio. O brigadeiro confirmou que se preparava "a explosão do gasômetro, a destruição de instalações de força e luz, [que seriam] posteriormente atribuídas aos comunistas". Em seguida ao pânico, viria a segunda etapa:

[aconteceria] sumariamente, a eliminação física de personalidades político-militares, o que, no seu entendimento [do brigadeiro Burnier], possibilitaria uma renovação nas lideranças nacionais. A execução de tal plano aproveitar-se-ia do momento psicológico em que as passeatas e agitações estudantis perturbavam a ordem pública.

O ano-chave da institucionalização da tortura foi 1969. Nesse ano, com a intensificação da guerrilha e dos assaltos a bancos por grupos de esquerda, deu-se início à organização metódica da repressão. Aperfeiçoou-se o uso psicológico da violência. Surgiram as "salas especiais", munidas de aparelhagem de tortura: cadeiras e camas eletrificadas, paus-de-arara etc. Paralelamente, aprimoram-se os meios legais e os tribunais que encobriam a tortura. Médicos e legistas apresentavam os violentados como indivíduos gozando de plena saúde e os assassinados na tortura como vítimas de "morte natural". Os cadáveres que não podiam ser escondidos apareciam em terrenos baldios ou eram sepultados anonimamente ou, ainda, informava-se que aquelas pessoas haviam morrido atropeladas.

Para fazer tudo isso, não bastou a imposição do autoritarismo - o regime precisou, também, "limpar" as Forças Armadas dos elementos mais democráticos ou que simplesmente sentiam pudor de compactuar com as violências. Onze dias depois do golpe, o Exército já computava 122 oficiais expulsos, sob a acusação de serem "contra-revolucionários" e centenas receberam advertência pela sua conduta revolucionária "fraca". Os militares punidos eram considerados oficialmente "mortos": perdiam os seus direitos, e as suas esposas ganhavam pensão de "viúva". Até 1967, as Forças Armadas expurgaram 1.228 oficiais, sendo 510 do Exército, 374 da Aeronáutica e 344 da Marinha.

Enquanto isso, o Inquérito Policial Militar (IPM) de cada estado recorria aos mais curiosos argumentos. Edson Germano de Brito, por exemplo, foi condenado porque o seu comunismo era um "mal de família". No IPM de Goiás, consta que ele era "notoriamente comunista [...] aliás, parece mal de família, pois isso ocorre com todos os Germano do estado de Goiás". [...]

Para assegurar a repressão, importavam-se vários técnicos norte-americanos. Um desses especialistas, Dan Mitrione, ficou bastante conhecido. Ele sequestrava mendigos nas ruas de Belo Horizonte e os levava aos quartéis, para servirem de cobaia: torturava-se para ensinar a policiais e militares brasileiros os princípios da tortura "científica". Dan Mitrione, que no tempo da ditadura foi nome de rua em Belo Horizonte, acabou morto no Uruguai pelos tupamaros (extremistas de esquerda).

Mas sem só mendigos se transformavam em cobaias. Vários estudantes também "colaboraram" com o aprendizado dos torturadores. Maurício Vieira de Paiva, 25 anos, foi torturado de acordo com sequências fotográficas, em aula para cem militares das Forças Armadas, "sendo instrutor um tenente Hayton", segundo o seu depoimento, em 1970. Isso aconteceu em todo o Brasil: jovens e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres caíram vítimas do processo.

Há centenas de depoimentos sobre as torturas nos arquivos da Justiça Militar e de entidades de defesa dos direitos humanos. Eles descrevem os mais variados métodos: o pau-de-arara, a cadeira-do-dragão, a pimentinha, o afogamento, a geladeira, os choques elétricos e até o emprego de insetos e animais (no Rio de Janeiro, usava-se uma jibóia chamada Miriam). O livro Brasil: nunca mais - Um relato para a história traz uma extensa coleção de relatos e denúncias comprovadas sobre a prática da tortura.

[...] No Nordeste, os latifundiários aproveitaram-se da situação para satisfazer as vinganças mais cruéis. Em Tempo de Arraes, Antonio Callado fala de "um chifre de boi com a ponta cortada". Conforme um camponês relatou ao escritor, o tal chifre seria usado para a aplicação de um clíster (introdução de substância líquida por via anal) nos subversivos:

É o chifre de clíster do feitor Valentim. Gostava de matar gente pela traseira. Ele tinha uma receita para quando pegasse o deputado Julião: creolina, sebo e pimenta. Para Arraes, salitre derretido, sebo e óleo de mamona.

A bestialidade estava liberada.

[...] A tortura como método conseguiu matar o homem no homem: deixava marcas tão profundas que, depois, se tornava difícil querer viver. Para alguns dos torturados, a indignidade do outro - o torturador - atingia-os de tal modo que era impossível continuar pertencendo àquela humanidade.

Em uma brutal ironia, a ditadura apelou ao "suicídio" quando não tinha como explicar os seus crimes. A primeira vítima fatal da tortura (conhecida oficialmente) foi o tenente José Ferreira de Almeida, da Força Pública de São Paulo. A repressão registrou a sua morte como "suicídio". Em 1975, aconteceu em São Paulo a Operação Jacarta, liderada pelo secretário da Segurança coronel Erasmo Dias. Visava prender vários suspeitos de subversão. Entre eles, foi detido o jornalista Vladimir Herzog, que morreu em consequência das torturas. Os órgãos de segurança informaram que ele "suicidou-se". Outro que morreu nas torturas, o operário Manoel Fiel Filho, também apareceu nos documentos oficiais como "suicida". Nos três casos, provou-se posteriormente a farsa - nenhum cometeu suicídio, todos morreram sob tortura.

Alguns aspectos da repressão atingiram tal dramaticidade que escaparam ao controle da ditadura, estimulando o povo a solidarizar-se com as vítimas e dar forças à oposição.

Em 28 de março de 1968, a Polícia Militar invadiu o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Alegou-se que os estudantes que tomavam refeições no local pretendiam manifestar-se contra os Estados Unidos, diante da sua embaixada. Os soldados atiraram, feriram alguns estudantes e mataram Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos. A notícia espalhou-se rapidamente pelo Rio. Organizaram-se passeatas e protestos. O corpo do estudante foi velado na Assembléia Estadual. A repressão preparou-se para conter os manifestantes.

No dia seguinte, milhares de pessoas acompanharam o enterro do secundarista. À noite, os estudantes voltaram às ruas, carregando tochas e cantando o Hino Nacional em surdina. Tentaram fazer uma vigília diante da Assembléia, mas acabaram expulsos pela polícia.

O enterro do jovem marcou a "virada" do povo: a ditadura era francamente antipatizada. A emoção tomou conta do Rio. Cerca de 30 mil pessoas assistiram à missa de sétimo dia de Edson Luís, na Igreja da Candelária. Terminada a missa, o povo saiu e sofreu uma carga da cavalaria: golpes de "espada em prancha", "cutucadas" de baionetas e "atropelamentos" pelos cavalos. Segundo um relato do Jornal do Brasil:

Mulheres, velhos e crianças corriam em todas as direções, e os cavalarianos desembainhavam as espadas, enquanto os outros usavam cassetetes. Todo o dispositivo policial montado na Candelária foi acionado e começou a espancar os populares. Os cavalarianos atiravam seus animais sobre a multidão.

Tentava-se intimidar o povo. Sem resultado: à tarde, realizou-se nova missa e o bispo dom José de Castro Pinto, de mãos dadas com populares, formou um círculo em torno da igreja, para impedir o ataque da cavalaria. Ao fim da missa, o povo saiu em passeata, com o bispo e os padres à frente.

A morte de Edson Luís e os acontecimentos seguintes tiveram uma grande importância: "jogaram" a Igreja para o lado dos estudantes e da oposição. A partir daquele momento, o que já acontecia em setores isolados do catolicismo passou a ser uma política quase oficial: a Igreja, quando não se posicionava ostensivamente contra a ditadura, pelo menos condenava as violências e defendia os perseguidos, sem se importar com a sua cor política.

A Igreja forneceu um dos principais contingentes que enfrentou a ditadura: sacerdotes e leigos aliaram-se à Ação Popular (AP) e apoiaram outros grupos de luta armada, inclusive marxistas, como exemplifica a ligação dos dominicanos com Mariguela.

Centenas de católicos, inclusive de padres, acabaram torturados e mortos em todo o Brasil. Entre os casos mais trágicos, encontra-se o de frei Tito, torturado cruelmente pelo delegado Fleury e equipe. Depois de resistir à destruição do corpo, frei Tito sucumbiu à tortura psicológica. Uma pequena frase do seu depoimento, em Memórias do exílio, revela o seu desespero: "Só havia uma solução: matar-me".

Livre das perseguições, convalescendo na França, frei Tito não suportou a lembrança das torturas e suicidou-se, em 1974, aos 29 anos. O seu suicídio foi, na verdade, um assassinato a distância, uma consequência das torturas que o delegado Fleury infligiu-lhe na prisão.

O aparelho de repressão lançou mão de todos os meios - um deles, o da difamação, marca registrada dos regimes fascistas. Logo após a morte de Mariguela, o jornal O Globo encarregou-se da infâmia: "Eles [os dominicanos]  traíram sua fé passando para o comunismo, depois traíram o comunismo entregando Mariguela; são os novos Judas".

[...]

Frei Tito encarna uma tragédia revolucionária. Mas milhares de outros sofreram revolucionariamente a tragédia de libertar o Brasil de um tempo de fúria e de trevas.

A morte de Bacuri é outro emblema da brutalidade. O governo militar informou que Bacuri, nome de guerra de Eduardo Leite, morreu ao fugir da prisão e resistir à polícia. Mentira: ele tinha sido torturado da forma mais brutal. Furaram os seus olhos, quebraram as suas pernas, cortaram as suas orelhas. A equipe do delegado Fleury, torturava-o diariamente. Executaram-no com uma machadada, na véspera da sua libertação, que ocorreria no resgate de presos após um sequestro. Seu corpo foi entregue à família. Ao abrirem o caixão, amigos e parentes depararam com o horror: um rosto sem olhos e orelhas - ele não tinha rosto.

Se não existissem milhares de outros, Tito e Bacuri bastariam para demonstrar do que uma ditadura é capaz.

A ditadura não poupou nem as crianças. Prendeu o menino Eduardo, de 4 anos, junto com a sua mãe, a professora Maria Madalena Prata Soares. Torturou o carpinteiro Milton Gaia Leite, a sua esposa e os seus filhos, de 5 e 6 anos. Provocou abortos em dezenas de mulheres. E fez do estupro uma norma, conforme  relatou Inês Etienne Romeu:

A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais, "Márcio" invadia minha cela para "examinar" meu ânus e verificar se "Camarão" havia praticado sodomia comigo. Este mesmo "Márcio" obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período foi estrupada duas vezes por "Camarão" e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros.

Enquanto cometia esses atos, a ditadura mostrava-se ao povo como guardiã da "civilização cristã" contra o "comunismo ateu". Forjava depoimentos e quebrava de tal modo a resistência psicológica de alguns presos que eles se apresentaram na televisão, durante o governo Médici, como "terroristas arrependidos", dizendo que eram bem tratados e que a esquerda cometia atrocidades.

Um balanço ainda precário registra a prisão de 50 mil pessoas. Pelo menos 20 mil sofreram torturas. Além dos 320 militantes da esquerda mortos, outros 144 continuam "desaparecidos". No fim do governo Geisel, existiam cerca de 10 mil exilados. As cassações atingiram 4.682 cidadãos. Foram expulsos das faculdades 243 estudantes.

[...] A ditadura militar morreu lentamente a partir do desmascaramento do "milagre econômico". Começou a agonizar no governo Figueiredo. Já era cadáver no período Sarney. Foi enterrada precariamente nas eleições de 1989.

Hoje, há democracia.

Isso basta?

CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 2006. p. 176-188.