"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Volúpia e paixão no Império Romano

Tais incoerências e limitações inexplicáveis, que são de todos os séculos, encontram-se em outro prazer: o amor. Se há uma parte da vida greco-romana falseada pela lenda, é essa; acreditamos erroneamente que a Antiguidade foi o paraíso da não repressão, não tendo ainda o cristianismo colocado o verme do pecado no fruto proibido. Na verdade o paganismo foi paralisado por interdições. A lenda da sensualidade pagã tem como origem contrassensos tradicionais: o famoso relato da devassidão do imperador Heliogábalo não passa de um embuste de letrados, autores de um falso tardio, a Historia Augusta; é uma página cujo humor se situa entre Bouvard e Pécuchet e Alfred Jarry; não consideremos Ubu um verdadeiro imperador. A lenda provém ainda da inépcia das próprias proibições; "nas palavras o latim afronta a honestidade", precisamente: para essas almas cândidas bastava pronunciar um "palavrão" para causar o impacto do exagero e, pelo constrangimento, provocar gargalhadas. Ousadias de colegiais.

Sátiro e Ninfa. 
Mosaico da Casa del Fauno, Pompéia

Como se reconhecia um autêntico libertino? Pela violação de três proibições: fazer amor antes do cair da noite (amar durante o dia devia continuar sendo privilégio dos recém-casados logo após as núpcias); fazer amor sem criar penumbra (os poetas eróticos tomavam como testemunha a lâmpada que brilhara sobre seus prazeres); fazer amor com uma parceira que ele havia despojado de todas as vestes (só as mulheres perdidas amavam sem sutiã, e nas pinturas dos bordéis de Pompeia as prostitutas conservavam esse último véu). A libertinagem se permite até carícias, desde que sejam feitas com a mão esquerda, ignorada pela direita. Um homem honesto só teria oportunidade de vislumbrar a nudez da amada se a lua passasse na hora certa pela janela aberta. Cochichava-se que tiranos libertinos — Heliogábalo, Nero, Calígula, Domiciano — violaram outras interdições; fizeram amor com damas casadas, virgens de boa família, adolescentes de nascimento livre, vestais, a própria irmã. 


Casal na cama. 
Afresco da casa de Lupanar, Pompéia.

Esse puritanismo também constituía uma escravidão. A atitude emblemática do amante não é levar a amada pela mão, pela cintura ou, como na Idade Média, com o braço ao redor do pescoço, mas de rolar sobre essa serva como sobre um divã; são costumes de serralho. Pode-se confessar também um ligeiro sadismo: bater nessa escrava na cama sob pretexto de se fazer obedecer. A parceira está a serviço do prazer de seu senhor e vai ao ponto de realizar todo o trabalho; se "cavalga" o amante imóvel é para servi-lo.


Parte do famoso mural mostrando várias posições sexuais. 
Afresco na Terma Suburbana, Pompéia.

Tal escravagismo constitui um machismo: possuir e não ser possuído; os jovens se desafiavam num estilo fálico. Ser ativo era ser macho, qualquer que fosse o sexo do parceiro passivo; havia, pois, duas infâmias supremas: o macho que leva a fraqueza servil a ponto de colocar a boca a serviço do prazer de uma mulher e o homem livre que não se respeita e leva a passividade (impudicitia) ao ponto de se deixar possuir. A pederastia, sabemos, constituía um pecado menor, desde que fosse a relação ativa de um homem livre com um escravo ou um homem de baixa condição; as pessoas divertiam-se com isso no teatro e vangloriavam-se disso na alta sociedade. Como qualquer indivíduo pode ter prazer sensual com o próprio sexo, a tolerância antiga levou a pederastia a difundir-se bastante e superficialmente: muitos homens com vocação heterossexual tinham assim um prazer epidérmico com os meninos; também se repetia proverbialmente que os meninos proporcionam um prazer tranquilo que não agita a alma, enquanto a paixão por uma mulher mergulha o homem livre em dolorosa escravidão.


Cena de amor no Nilo. 
Afresco do Triclinium de verão da casa de Ephebus, Pompéia.

Escravagismo machista e recusa à escravidão passional: fronteiras do amor romano. Os excessos amorosos coletivos atribuídos a certos tiranos eram a exploração do escravagismo e têm a falsa ousadia de uma encenação sádica. Nero, tirano fraco mais que cruel, organizava em seu serralho a própria passividade; Tibério organizava as complacências obrigadas de seus pequenos escravos, e Messalina punha em cena sua servilidade, imitando o privilégio masculino de medir a força pelo número de penetrações. Era menos exceder as interdições que falsear os termos das proibições e também planejar o próprio prazer, o que é de uma fraqueza insuportável; pois, como o álcool e todos os prazeres, a volúpia é perigosa para a energia viril e não se deve abusar dela; a gastronomia não prepara para uso moderado os prazeres da mesa.


Afresco de Priapus. 
Casa dos Vetti, Pompéia.

A paixão amorosa é ainda mais temível, pois torna um homem livre escravo de uma mulher, ele a chamará "senhora" e, como uma serva, lhe estenderá o espelho ou a sombrinha. A paixão amorosa não era, como para os modernos, um refúgio da imaginação individual, no qual os amantes têm a impressão de estar logrando alguém porque se afastam da sociedade. Roma recusou a tradição de amor cortês das paixões efébicas gregas, pois nisso via uma exaltação da paixão pura, nos dois sentidos do adjetivo (os gregos fingiam crer que o amor por um efebo de nascimento livre era platônico). Quando um romano se apaixonava loucamente, seus amigos e ele mesmo consideravam ou que perdera a cabeça por uma mulherzinha devido a um excesso de sensualidade, ou que moralmente caíra em escravidão; e, dócil como bom escravo, nosso enamorado oferecia-se a sua senhora para morrer, se ela assim lhe ordenasse. Tais excessos tinham a negra magnificência da vergonha, e nem os poetas eróticos ousavam enaltecê-los abertamente; levavam o leitor a desejá-los cantando-os com uma engraçada inversão da normalidade, um paradoxo humorístico.

Afresco de Pompéia. 
Casa de Vênus, século I d.C.

Na Antiguidade a exaltação petrarquiana da paixão teria escandalizado, se não tivesse feito sorrir. Os romanos ignoram essa exaltação medieval do objeto amado, tão sublime que deve permanecer inacessível; ignoram também esse subjetivismo que é o gosto moderno da experiência, em que, num mundo mantido a distância, escolhe-se viver alguma coisa para saber que efeito provoca, e não porque seu valor objetivo ou o dever obrigam a isso; ignoram até o verdadeiro paganismo, o da Renascença, suas graças, seus belos momentos. A complacência, a terna inclinação aos prazeres dos sentidos, que se tornam delícias da alma, não são antigas. As cenas báquicas antigas nada tem da audácia senhorial de Jules Romain no palácio do Tê em Mântua. Os romanos conheciam apenas uma variedade de individualismo, que confirmava a regra parecendo negá-la: o paradoxo do indolente enérgico; citavam com secreto prazer os casos de senadores cuja vida privada era de uma indolência detestável, mas que davam provas da maior energia em sua atividade pública: assim Cipião, Sila, César, Petrônio e até Catilina. Esse paradoxo constituía um segredo entre iniciados que dava à elite senatorial ares reais e a suspeita de estar acima das leis comuns interpretadas ao pé da letra, confirmando-as em seu verdadeiro espírito; o indolente enérgico era reprovável, mas lisonjeiro.


Eis os romanos tranquilizados; de fato, seu individualismo não se chamava experiência vivida, autocomplacência ou devoção privada, mas tranquilização. 

VEYNE, Paul. (Org.). História da vida privada 1: do Império Romano ao ano 1000. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 184-187.

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