"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Moisés, o egípcio

A filha do faraó encontra o bebê Moisés, Konstantin Flavitsky

Nenhuma dúvida: Moisés carregava um nome egípcio. Em sua forma hebraica, Moshè, ou grega, Môsès, ele provinha do original Masi, abreviação corrente na época raméssida de nomes próprios tipicamente egípcios, tais como Ri'amassi (Rá nasceu), ou Harmassi (Hórus nasceu). Portanto, o componente do nome do deus desapareceu pura e simplesmente. Um contramestre chamado Moisés tornou-se conhecido por haver organizado a primeira greve da história na aldeia de Deir el-Medineh, perto do célebre Vale dos Reis. Os israelitas aproximaram esse nome nilótico do verbo hebraico mascha (tirar). A similitude de pronúncia é puramente acidental, mas isso bastou aos redatores da Bíblia para dar origem à etimologia popular "tirado das águas" para o nome do patriarca.

"Os autores bíblicos que relatam o nascimento de Moisés conhecem, aliás, muito bem a etimologia egípcia de seu nome. Durante todo o relato do Êxodo, ele é continuamente designado como 'a criança', o que corresponde em hebraico à raiz egípcia m-s-y, 'gerado por' ou 'filho de'. É a filha do faraó que chama assim, ligando-o a uma etimologia hebraica, por sinal incorreta", menciona Thomas Römer, em seu livro Moise, lui que Yahvé a connu face à face (Moisés, aquele que Yahvé conheceu face a face). Mas esse nome seria o bastante para fazer dele um egípcio?

Não há certeza. Isso porque, sob um nome tipicamente egípcio, podia-se encontrar um estrangeiro. Os faraós do Novo Império "importaram", pela força e pela violência, uma abundante mão de obra vinda de Canaã, necessária para construir seus monumentos. Os textos comprovam que essa população, móvel e inquieta em certas ocasiões, também podia atingir o topo do poder. Esses cananeus adotavam então os patronímicos e os costumes dos egípcios - hoje em dia, se falaria em integração. Foi o caso da família de Moisés? E o de José, filho de Jacó? Vendido por seus irmãos no Egito, lançado à prisão, José se tornaria vizir, o segundo personagem mais poderoso do Estado. "A história do estabelecimento de José no Egito, de sua queda simbolizava pela prisão, depois de sua elevação e, finalmente, de seu triunfo, inscreve-se muito bem, como gerações de sábios puderam mostrar, nesse Egito do Novo Império e particularmente da XVIII dinastia", constata Alain Zivie. Nem mesmo seus irmãos o reconheceram. Aos olhos deles, José era egípcio! Sua integração foi um êxito total, como foi talvez a de um homem de origem semita denominado Moisés.

Hoje em dia, está na moda escrever que Moisés era de origem egípcia e que ele foi influenciado pelo pensamento de Akhenaton. Alguns vão ainda mais longe ao fazer do "faraó herético" e de Moisés uma única e mesma pessoa. A essa hipótese, podemos objetar que o resultado de escavações empreendidas na Palestina mostrou que Israel não nasceu de um êxodo do Egito, mas da transformação de uma parte da população cananeia, que começou no final do segundo milênio antes da nossa era, portanto muito longe do Nilo.

Como imaginar um Moisés egípcio quando se comparam o judaísmo e a religião egípcia, ainda que "revista e corrigida" por Akhenaton? O laço entre essas duas personagens não implica que Aton e Yahvé estejam ligados. É surpreendente que alguns possam confundir o Deus de Moisés com uma divindade egípcia, mesmo que fosse Akhenaton. Quando este último reza a Aton, é a uma manifestação do Sol, figurado sob a forma do disco, que ele se dirige. Akhenaton tem portanto necessidade de recorrer a uma imagem de seu deus, a imagem de um disco com os raios terminados em mãos.

Ora, o segundo mandamento divino, contido no Decálogo, condena qualquer associação de um elemento do universo, qualquer que seja esse elemento, com Yahvé. Acrescentemos que, na atualidade, os especialistas - sejam eles egiptólogos, linguistas, arqueólogos ou exegetas bíblicos - descobriram que a revelação esteve longe de ser repentina, mas foi o fruto de um longo caminho aberto no século VIII e completado no século V antes de nossa era. Ao passo que a "revelação atoniana" foi imediata: não há a menor necessidade de seguir seu desenvolvimento desde a época das pirâmides até a vinda ao mundo de Akhenaton. Hoje em dia, os pesquisadores voltam os olhos para essa população semítica instalada no Egito.

Assim, "para o Novo Império, contam-se não menos de 60 estrangeiros que indubitavelmente ocuparam cargos muito elevados no clero e na administração. Para apreciar bem esse número, é preciso levar em conta, por um lado, as lacunas de nossa documentação e, por outro, o fato de que muitos funcionários de origem estrangeira não são mais reconhecíveis enquanto tais por haverem adotado nomes egípcios. Em outras palavras, tem-se todo o espaço para acreditar que essa cifra esteja bem abaixo da realidade", escreveu Pascal Vernus em sua obra Les étrangers dans la civilisation faraonique (Os estrangeiros na civilização faraônica).

Entre os altos dignitários do poder faraônico cabe mencionar os copeiros reais, encarregados do serviço de bebidas na mesa real. que eram com frequência asiáticos e semitas. Esses homens estavam muito próximos do faraó, que lhes confiava responsabilidades importantes, como as grandes construções do reino.

Em Saqquarah, as escavações revelaram um vizir de Amenófis III e de Amenófis IV chamado Aper-El, um nome semítico, pois contém o nome do deus El (retomado, por exemplo, em Isra-el). Era uma "criança do kep", título honorífico concedido àqueles que eram educados na corte real, ao lado dos príncipes e dos filhos dos reis vassalos do faraó. Antes de ser vizir, Aper-El era o general dos carros de guerra, função que ele transmitia a um de seus filhos. Ele recebeu também o título prestigioso de "pai divino" e estava entre os confidentes do rei. Mais ainda, tornou-se "responsável pela nutrição das crianças reais", atuando como preceptor dos príncipes e princesas da corte.

Sob os faraós raméssidas (de 1200 a 1050 antes da nossa era), muitos estrangeiros alcançaram posições de confiança. Alguns interessam muito aos estudiosos da Bíblia, que desenvolvem pesquisas sobre as origens de Moisés. Eles estudam documentos faraônicos que focalizam diversos grandes personagens cujo nome comporta o afixo "Moisés".

Vamos nos deter inicialmente num certo Ben-Ozen, um nome que pode ser traduzido por "Filho da audição" ou por "Filho da obediência". Ele era originado da localidade de Bashan, na Transjordânia. Sua relação com Moisés? Ele trazia um nome egípcio, Ramsesemperrê, construído sobre a raiz Mosès, como Moisés. Conta-se que ele teria servido como mediador num conflito que opôs os shasu (beduínos) sujeitos à prestação de corveias (trabalho gratuito) a funcionários egípcios. Pensa-se no famoso episódio bíblico em que Moisés assume a defesa de um escravo hebreu (Êxodo 2, 11-15). Infelizmente a documentação não registra nenhuma revolta dos shasu nem a fuga deles sob a condução de um alto dignitário egípcio. Assim, Ben-Ozen não responde às condições desejadas para especular que ele seria a fonte do Moisés bíblico. Procuremos outro.

Um novo postulante ao posto de Moisés "histórico" é o diretor do Tesouro egípcio, um homem denominado Bay (ou Beya). "Abrigando-se por trás do frágil faraó Siptah (1206-1188 antes de nossa era), um enfermo, e da regente - depois faraó - Tauseret, ele puxava, na sombra, os cordões do poder durante o período de instabilidade que se seguiu ao reinado de Seti II. Atribuindo-se poderes exorbitantes, ele procurou colocar o país sob seu controle desenvolvendo o projeto de pagar estipêndios a potentados asiáticos para reforçar o próprio domínio.

Seu empreendimento teria sido bem-sucedido não fosse a intervenção do enérgico Sethnakht, fundador da XXª dinastia. "Apesar desse insucesso, o caso de Bay permanece exemplar. Ele mostra como estrangeiros podiam conquistar para si uma posição eminente, ao conseguir conquistar a estima e a confiança do faraó por suas qualidades. Evidentemente, não se pode deixar de pensar na carreira de José no Egito", enfatiza Pascal Vernus. Mas, por que não em Moisés? Bay tem um duplo patronímico, do qual um é o egípcio Ramsès-Kha-em-neterou, "Ramsés é a manifestação dos deuses" que traz em si a raiz Mosès.

Chegou a haver suspeitas de que o manipulador Bay estivesse na origem da morte prematura de Siptah, que subiu ao trono aos 10 anos de idade e manteve nele apenas cinco, morrendo de maneira misteriosa. A morte de Siptah permitiu à rainha Tauseret tornar-se faraó, com o apoio do chanceler Bay, que na ocasião se transformou em fazedor de faraós. Mas essa ascensão feminina ao trono desencadeou uma oposição armada. Para dominá-la, Tauseret e Bay recrutaram, segundo os textos, um exército de cananeus e se apoderaram do ouro e da prata dos egípcios. Segundo Thomas Römer, esse episódio poderia evocar a tradição bíblica da "espoliação dos egípcios": "Os filhos de Israel fizeram como Moisés havia dito, e pediram aos egípcios objetos de prata, objetos de ouro e roupas" (Êxodo 12, 35).

Finalmente, o chefe da revolta triunfou e foi à caça de Bay e Tauseret. Acompanhados de alguns fiéis, eles conseguiram fugir. Mas, se Moisés escapou de seus perseguidores, que se afogaram no "mar dos Juncos", Bay foi executado e seu nome apagado onde quer que se encontrasse.

Parece difícil tomar por modelo de Moisés o chanceler Bay. "O Egito estava caótico: cada um era em si mesmo sua própria lei. Pois não tinha havido governante durante numerosos anos: o Egito estava dividido entre os notáveis e os administradores das aldeias, e cada um degolava o seu próximo, tanto os ricos quando os pobres. Depois veio uma outra linhagem durante os anos vazios. Iarsou (Bay), um sírio, ali estava associado como notável. Como administrador, ele colocou o país inteiro sob o seu controle: ele e seus cúmplices se organizaram para roubar as pessoas. E os deuses eram submetidos ao mesmo tratamento dos homens: as oferendas não eram mais consagradas nos santuários", relata o papiro Harris.

"O nome de Iarsou, que se pode compreender em egípcio como 'aquele que se fez por si mesmo', seria um modo cheio de desprezo de designar Bay e ao mesmo tempo lhe recusar a existência póstuma concedida pelo simples fato de pronunciar o verdadeiro nome de alguém. Esse procedimento é corrente nos textos políticos. os anos 'vazios' designam o tempo em que o poder é considerado vago, por ser ocupado por uma linhagem usurpadora", observa o egiptólogo Nicolas Grimal. É difícil imaginar que um homem cujo nome se apagou dos monumentos que ele construiu e cujo patronímico se trocou tenha deixado rastros na memória dos homens, até atingir as lembranças dos autores da Bíblia. Bay sai de cena. Então, pensa-se em um faraó...

Dissemos antes que a época que se abre com a morte de Ramsés II (em 1235 antes de nossa era) foi agitada. Ela chegou a ver um usurpador, Amenmeses, tomar o poder. Como os dois altos dignitários evocados acima, ele tem o nome construído sobre Mosès e poderia ter inspirado os redatores da Bíblia, já que teria sido - de acordo com o egiptólogo Rolf Krauss - um vice-rei da Núbia que partiu daquela região distante para conquistar o poder faraônico. Ora, sabe-se que certas lendas judias extrabíblicas conduzem Moisés à Núbia. Além disso, a própria Bíblia dá a Moisés uma mulher etíope (na Antiguidade, chamava-se a Etiópia de Núbia).

Amenmeses tomou o poder ao fim de uma guerra civil. Depois de ser derrubado do trono, ninguém sabe o que aconteceu com ele. Um destino que marcou a memória do Egito. Sobre as memórias hebraicas, é incerto. Diante de tudo isso, a identidade do Moisés histórico está longe de parar de intrigar os pesquisadores.

Richard Lebeau. Moisés, o egípcio. In: Revista História Viva. Grandes Temas, nº 46, p. 10-15.

NOTA: O texto "Moisés, o egípcio" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Moisés [A história de Moisés, líder do povo judeu]

A descoberta de Moisés, Lawrence Alma-Tadema

Em algum momento do século XX antes da nossa era, uma tribo de pastores semitas, pequena e pouco conhecida, saiu da sua terra natal, situada no país de Ur, perto da foz do Eufrates, e viajou em busca de novas pastagens dentro dos domínios dos reis da Babilônia. Perseguida pelos soldados do rei, caminhou para oeste à procura de um pedacinho de território desocupado onde seus membros pudessem levantar suas tendas.

Esses pastores eram os hebreus, ou os judeus, como os chamamos hoje. Vagaram muito e por muitas terras, e depois de anos e anos de penosas peregrinações encontraram abrigo no Egito. Por mais de cinco séculos residiram entre os egípcios e, quando seu país de adoção foi dominado pelos bandoleiros hicsos, conseguiram mostrar-se úteis aos invasores estrangeiros e puderam reter sossegadamente a posse de suas pastagens. Porém, ao cabo de uma longa guerra de independência, os egípcios expulsaram os hicsos do vale do Nilo e tempos difíceis vieram para os judeus, que foram rebaixados à categoria de escravos comuns e forçados a trabalhar na construção das pirâmides e das estradas reais. Como as fronteiras eram guardadas por soldados egípcios, era impossível aos judeus escapar.

Depois de muitos anos de sofrimento, foram salvos do seu miserável destino por um jovem judeu chamado Moisés, que por muito tempo residira no deserto e lá aprendera a apreciar as virtudes simples dos seus mais remotos antepassados, que se mantinham afastados das cidades e da vida citadina e se recusavam a deixar-se corromper pelas facilidades e pelo luxo de uma civilização estrangeira.

Moisés decidiu reacender em seu povo o amor pelo modo de viver dos patriarcas. Conseguiu fugir das tropas egípcias que foram enviadas em seu encalço e conduziu sua tribo para o coração da planície situada aos pés do monte Sinai. Durante o longo período que passara sozinho no deserto, aprendera a venerar o poder do grande Deus do Trovão e das Tempestades, que regia os altos Céus e do qual recebiam os pastores a subsistência, a luz e o próprio sopro vital. Esse Deus, uma das muitas divindades que eram adoradas por toda a Ásia ocidental, era chamado Jeová, e, através dos ensinamentos de Moisés, tornou-se o Senhor único da raça hebraica.

Certo dia, Moisés desapareceu do acampamento dos judeus. Comentava-se à boca pequena que ele se fora levando nas mãos duas placas de pedra lascada. Naquela tarde, o topo da montanha se escondeu da vista das pessoas, ocultado pela escuridão de uma tempestade terrível. Mas, quando Moisés voltou, eis que estavam gravadas nas tábuas de pedra as palavras que Jeová dirigira ao povo de Israel entre o estrondo dos trovões e o fragor dos relâmpagos. E, a partir daquele momento, Jeová foi reconhecido por todos os judeus como o Senhor absoluto do seu destino, o único Deus verdadeiro, que lhes ensinara a viver uma vida santa, intimando-os a pautar sua condita pelas sábias lições dos Dez Mandamentos.

Os israelitas seguiram Moisés quando este os chamou a continuar sua jornada pelo deserto. Obedeceram-no igualmente quando lhes ensinou o que comer, o que beber e o que evitar a fim de não caírem doentes com o clima quente. E por fim, ao cabo de muitos anos de peregrinação, chegaram a uma terra que parecia agradável e próspera. A terra se chamava Palestina, ou seja, o país dos "Pilistu", dos filisteus [...] a Palestina já era habitada por outra tribo semítica, a dos cananeus. Mas os judeus entraram à força naqueles vales, construíram cidades para si e edificaram um grande templo na cidade a que deram o nome de Jerusalém, a morada da paz.

Quanto a Moisés, já não era o comandante-chefe de seu povo. Só de longe pudera avistar as cadeias montanhosas da Palestina, e depois disso fechara os olhos para sempre. Esforçara-se e trabalhara com fidelidade para agradar a Jeová. Não só libertara seus irmãos da escravidão numa terra estrangeira como também os conduziu a uma vida livre e independente num país novo; e, acima de tudo, fez dos judeus a primeira de todas as nações a adorar um único Deus.

VAN LOON, Hendrik Willem. A história da humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 37-40.

NOTA: O texto "Moisés [A história de Moisés, líder do povo judeu]" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

"Bacanais" à brasileira

Há autores que sublinham a esquizofrenia do brasileiro, um povo que adora e, ao mesmo tempo, repudia a sua vocação mais escancarada e libertina. Povo irreverente que tanto adora sexo quanto falar dele, mas que também não consegue se desvencilhar de um ranço moralista e extremamente conservador que ainda insiste em afirmar que tudo o que se refere a sexo é sujo e pecaminoso, e valoriza o sofrimento em detrimento do prazer. Mas, com uma história de tanta repressão, não é difícil entender as razões para o moralismo. E o outro lado?

Vamos observá-lo, sobretudo em determinados momentos: festas populares, danças e músicas. Estrangeiros sempre olharam tais manifestações com desprezo. Em especial quando as mulheres se mostravam fora do comportamento pudico exigido na época: braços para o alto, pernas e bocas abertas. "Dança obscena", feita de "volúpias asquerosas" ou "febres libertinas", era como se identificavam tais momentos em que a sensualidade levava a melhor. Não escapava o gingado de mulatas e negras capazes de atrair os homens, brancos ou negros, "com suas formas sedutoras e o cheiro de suas axilas". Tais cenas afastavam o "povo" do caminho de moralidade exigido pelo comportamento burguês, já sacramentado na primeira década do século XX. É óbvio que nem todos os segmentos achavam que dançar, suar e brincar eram manifestações de atraso. E passavam longe do projeto de tornar o Brasil uma outra Europa.


Jogos durante o carnaval no Rio de Janeiro (Entrudo familiar), Augustus Earle

Tanto o carnaval quanto as festas religiosas convidavam a excessos em que a sexualidade não se escondia. Por exemplo, a festa de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro, segundo o capelão da irmandade, "transformavam-se todos os anos em bacanal vergonhoso aviltado por crimes hediondos e desordens abomináveis". Era nas faldas do morro escarpado, sobre o qual repousa o templo, que as pessoas iam, "não levadas pela fé", queixava-se o padre, "mas para dar livre e impudica expansão ao libertinismo repugnante". Sexo e fé não rimavam. A imprensa criticava o que se considerava "verdadeira bacanal da Grécia ou Roma antiga".

O carnaval também colocava em cena a sexualidade posta de lado no restante do ano. A praça Onze, no Rio de Janeiro, ponto alto do encontro de camadas populares, promovia uma festa de "gritos e urros", segundo observadores, ao som de cuícas e pandeiros, onde morenas requebravam "como gatas, felinas e maliciosas, tentando branco e preto, louro ou moreno, dançando e rodopiando", descrevia o jornal O Radical em 1933. Não escapou a Graça Aranha, escritor e diplomata, idealizador da Semana de 22 em São Paulo, as diferenças entre o carnaval de rua e aquele dos clubes fechados. No primeiro, triunfavam a negra e a mulata. "Fura a imobilidade um grupo de baianas, dançando, cantando, saracoteando a grossa luxúria negra, seguidas por gorilas assanhados de beiços compridos, tocando pandeiros, pulando lascivos".

Já nos bailes fechados, atos abomináveis se multiplicavam. Éter e cocaína rolavam livremente. Mulheres passando dos cinquenta atracavam-se com "rapazelhos de dezoito". Noivas esqueciam o compromisso e pulavam nos braços de outros. Não faltava o choro envergonhado da mocinha de boa família, apalpada ou espalmada. Problema dela, afinal estava vestida de gigolette, prostituta parisiense das mais reles. A poetisa Cecília Meirelles explicava a opção da fantasia que revelava mais do que escondia: "senhoras tranquilas sofrem silenciosamente o ano inteiro só com a esperança de aparecerem no carnaval, vestidas de gigolettes". Cronistas acusavam a promiscuidade reinante nos melhores ambientes, levando senhoras casadas a se comportarem como prostitutas: "muitas são as damas finas que se nivelam às hetairas nos clubes, nos bailes, nos três dias de orgia carnavalesca. Terminada a festa, porém, as prostitutas continuam no seu triste mister; as elegantes, decaídas eventuais, tornam aos seus lares, tomam parte em ligas contra o álcool, deitam o verbo fulminando  contra o vício", denunciava a Revista Policial, em 1927.

Ou a Fon-Fon: "meninas pudicas que não fumam, não bebem, não vão sequer sozinhas ao cinema, nos dias carnaval, entram em café barato como qualquer homem, bebem com um simples desconhecido, praticam toda a espécie de loucura, satisfazem a todos os desejos de liberdade".

Já as esposas "que vivem para os filhos", essas podiam ser encontradas no High-Life, no Bola-Preta...

Nos anos 50, a cobertura de revistas como O Cruzeiro sublinhava as transgressões femininas. "O movimentado carnaval de três garotas, os bailes, as festas, as brincadeiras e o que aconteceu quando elas resolveram galgar no Trono de Sua Majestade Momo" era título de matéria fartamente documentada com fotos em que, fantasiadas de dançarinas de can-can, com saias curtíssimas, moças posavam em todas as posições.

Outra reportagem tinha como tema a farta difusão de beijos durante as festas do Momo. O título era "Beijos no carnaval" e o autor explicava: "O caso é que no carnaval o beijo impera livremente. Todos, ou quase todos se beijam. Não há malícia, creiam. A hipnose musical e os efeitos do álcool agem profundamente na personalidade de cada um. Parece que todos ficam mais simples, mais espontâneos. E beijam. Principalmente nos bailes. Beijos roubados, beijos apaixonados, beijinhos, beijos espetaculares. É o amor. É o retorno à simplicidade. Não procurem o lado escandaloso, nestas fotografias. O que há aqui é vida. Vida em uma das suas mais ricas manifestações".

E seguiam-se fotos e mais fotos de beijos...

O carnaval era visto como uma festa perigosa, depravada, na qual "as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e inútil, a honra, uma caceteação, o bom senso, uma fadiga". O desejo, sobretudo o feminino, engessado pelos bons costumes durante o ano, explodia nas fantasias e comportamentos espontâneos. Era "sem-vergonhismo" puro, no entender de alguns. Caminhada para a liberdade, no de outros.

A música também assinalava transformações nos comportamentos femininos, registrando o estarrecimento masculino diante das condutas que rompiam com valores tradicionais. O papel "superior" do macho estava sendo questionado. Eis por que se multiplicavam as composições sobre a mulher que renunciava ao lar para emancipar-se: "Good-bye, meu bem", gravada por Raquel de Freitas, ou "Dona Balbina", por Carmem Miranda, são bons exemplos. E os homens não ficaram de braços cruzados. A crítica feroz à liberação do tamanho dos vestidos e o uso da maquiagem, veio na forma de composições como as que fez Francisco Alves com "Tua saia é curta" ou "Futurista". Em "Se a moda pega" ou "Cangote raspado", a queixa é contra moças que expunham a nuca aos rapazes, graças ao corte à la garçonne. Recusa ao namoro ou ao casamento? Frieza e maldade da nova mulher que emergia entre os anos 30 e 40. O resultado de tanta "leviandade", segundo os compositores, era o abandono e a solidão.

Mas as mulheres já tinham suas defensoras. A escritora Ercília Nogueira Cobra foi uma delas. Escrevendo contra a submissão na qual foram sempre colocadas, reagia: "Os homens, no afã de conseguirem um meio prático de dominar as mulheres, colocaram-lhe a honra entre as pernas, perto do ânus, num lugar que, bel lavado, não digo que não seja limpo e até delicioso para certos misteres, mas que nunca poderá ser sede de uma consciência. Nunca!! Seria absurdo! Seria ridículo, se não fosse perverso. A mulher não pensa com a vagina, nem com o útero".

Presa e interrogada, várias vezes, durante o Estado Novo, a paulista de Mococa escandalizou ao lançar suas contribuições para as letras brasileiras: Virgindade anti-higiênica: preconceitos e convenções hipócritas e o romance Virgindade inútil: novela de uma revoltada. Considerada uma anarquista "ameaçadora" aos bons costumes, Ercília discordava da visão conservadora de então. Defendia a educação feminina como forma de evitar a prostituição de meninas pobres e acusava os "grandes hotéis, grandes chás, grandes transatlânticos", lugares do dinheiro e da burguesia, como os espaços por excelência do meretrício chic. A falta de igualdade da mulher em relação aos homens levava-a a acusar: "a única pornografia que existe é o mistério que se lança sobre o mais natural e inocente instinto da natureza humana". E mergulhava fundo na questão, revelando, por exemplo, que a falta de expressão sexual livre, entre as casadas, terminava por dobrá-las aos desejos dos maridos. Para os solteiros, restava a masturbação, exclusiva forma de preservar esse "bem inestimável": a virgindade, único passaporte válido para o casamento. Por agir assim, explicava, a mulher se considerava um objeto, pois criada exclusivamente para aceitar como padrão de comportamento a instituição do matrimônio. Fora disso e da vida religiosa, só existiria "degeneração". Para Ercília, o desgastado dilema "mãe ou prostituta" contribuía para a submissão sem freios da brasileira. Seus ensaios e romance defendiam a destruição dos valores da época, substituídos pelo direito e responsabilidade no exercício da liberdade, emocional e sexual. Incentivo aos bacanais? Não. Mas à liberdade sexual consciente.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 147-151.

NOTA: O texto "Bacanais à brasileira" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Jogos e cidadania entre os romanos

Outro aspecto da participação da cidadania na vida política consistia nos jogos de gladiadores. Pode parecer estranho relacionar cidadania e esses jogos sangrentos, mas esses espetáculos foram importantes na afirmação da cidadania. Os jogos de gladiadores têm origem muito antiga, tendo surgido com os etruscos. Na origem, eram lutas entre guerreiros em honra de um soldado valoroso morto em combate. Tinham, desde o início, um aspecto religioso, pois celebravam a vitória da vida sobre a morte. Com o passar do tempo, as lutas de gladiadores, juntamente com as caçadas e as execuções de condenados, passaram a fazer parte de um ritual de caráter a um só tempo religioso e legal. Em geral, os jogos eram realizados no Fórum, o mercado, ou, a partir de fins da República romana (século I a.C.), em anfiteatros. Era sempre a luta da civilização contra a barbárie, o humano contra o animal, o justo contra o injusto, um meio público de mostrar que a sociedade domina as forças da natureza e da perversão social.


Polegares para baixo, Jean-Léon Gérôme

Ao contrário do que se vê em filmes, a luta de gladiadores não se destinava à mera diversão do povo, nem a luta até a morte. Ao final de cada combate, o perdedor devia retirar o capacete e oferecer o pescoço ao vencedor, que não podia tirar-lhe a vida de motu próprio. Também não cabia a magistrado ou ao imperador decidir o destino do perdedor: apenas os espectadores podiam fazê-lo. A decisão, assim, estava nas mãos da multidão, a testemunhar um ato de soberania popular que só teria equivalência, no mundo moderno, com os referendos ou plebiscitos, em que todos se manifestam. O princípio da soberania popular manifestava-se, na arena, de forma direta e incisiva. Se nas eleições as mulheres não tinham direito ao voto, na arena todos podiam manifestar-se, prerrogativa que a cidadania moderna atingiria apenas no século XX. A condenação à morte tampouco era o resultado de um simples capricho, da mera avaliação de superioridade física de um lutador sobre outro. O principal quesito para que o perdedor fosse poupado era ter mostrado valentia.


Afresco. Anfiteatro em Pompeia. Século I d.C.

Os romanos possuíam o conceito de "humanidade" (humanitas), que tinha conotações que ultrapassavam a "urbanidade" (urbanitas). Humanitas implicava educação liberal, elegância de costumes, hábitos da classe alta. Assim, alguns historiadores consideram que a arena de espetáculos não servia apenas como lugar de integração de romanos ricos e pobres, mas também para separar os civilizados, que frequentavam os espetáculos, dos bárbaros.


Mosaico: luta de gladiadores. Século IV d.C.

Daí a ubiqüidade de arenas em cidades fronteiriças do mundo romano, daí sua localização próxima ao limite físico que separa o recinto urbano amuralhado do campo, daí sua presença no mundo de fala grega, como sinal de identidade romana, talvez mais eloqüente do que o domínio do latim - pois se, no Oriente, poucos dominavam o latim, muitos podiam, por meio dos espetáculos, tomar parte do ritual de identificação com a romanidade. Em toda parte, em cidades grandes ou pequenas, no Mediterrâneo ou nas fronteiras, a arena representava um lugar de afirmação da cidadania e da justiça. Nem todos os romanos tinham os mesmos sentimentos quanto aos jogos de gladiadores; havia quem os condenasse e mesmo os que os aprovavam tinham interpretações diversas sobre seu significado. Em qualquer caso, contudo, a palavra final estava nas mãos daqueles que ali se reuniam, homens e mulheres, ricos ou pobres.

Pedro Paulo Funari. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi [orgs.]. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005. p. 71-72.

NOTA: O texto "Jogos e cidadania entre os romanos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Anarquismo

Quem já não sonhou com um mundo diferente, no qual fosse possível o máximo de liberdade com o máximo de solidariedade? Os anarquistas acreditavam, e acreditam ainda, que essa esperança não é uma utopia: ela pode se tornar realidade.

Eles gostam de dizer que o ideal existe desde a Antiguidade, ou seja, desde que há luta pela liberdade. Mas a doutrina só se tornaria movimento organizado no século XIX, na Europa. Na pauta, a crítica à sociedade industrial, aos males do capitalismo e à sua indiferença diante do sofrimento humano.

A palavra anarquia, usada frequentemente para designar desordem e confusão, vem do grego e significa "sem governo", isto é, o estado de um povo sem autoridade constituída. Do mesmo horizonte de significado nasce o anarquismo, doutrina política que prega que o Estado é nocivo e desnecessário e que existem alternativas viáveis de organização voluntária. Para a verdadeira libertação da sociedade seria necessário, ainda, destruir o capitalismo e as igrejas. Os anarquistas opunham-se à participação nas eleições e aos parlamentos, pois consideravam a democracia liberal uma farsa, negando qualquer forma de organização hierarquizada.

A nova sociedade seria uma rede de relações voluntárias entre pessoas livres e iguais, em equilíbrio natural entre liberdade e ordem não imposta, mas garantida pela cooperação voluntária. Eliminados o Estado centralizado, o capitalismo e as instituições religiosas, afloraria a verdadeira natureza humana e as pessoas voltariam a assumir suas responsabilidades comunitárias. O futuro anarquista seria feito de um conjunto de pequenas comunidades descentralizadas, autogeridas e federadas, que a livre experimentação modificaria pouco a pouco.

O francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi o primeiro a organizar as ideias do anarquismo. Em seu texto O que é a propriedade? (1840), escreveu que a política era a ciência da liberdade, que o governo do homem sobre o homem, em qualquer forma, era opressão, e que a sociedade só atingiria a perfeição na união da ordem com a anarquia.

Ainda no século XIX, o anarquismo ganhou adeptos em todo o mundo, reconhecendo-se em um projeto internacional comum, embora em cada país os trabalhadores utilizassem a linguagem e a ação do anarquismo como resposta a seus problemas e preocupações específicos. O russo Mikhail Bakunin (1814-1876) defendia que a futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação. Bakunin e outros anarquistas rivalizaram com Karl Marx, sugerindo que o socialismo seria tão despótico quanto outras formas de Estado. Mais tarde, Emma Goldman (1869-1940), judia russa emigrada para os Estados Unidos, famosa por sua militância, fez duras críticas aos rumos dados pelos bolcheviques à Revolução Russa em função da centralização estatal e do autoritarismo, que teriam paralisado a iniciativa e o esforço individuais.


Símbolo anarquista. Liftarn

Os anarquistas russos, em aberta oposição ao que consideravam uma ditadura distante dos ideias libertários, passaram a ser perseguidos e suas atividades foram proibidas já poucos meses após a Revolução de Outubro. Em 1920, grande parte dos membros do Exército Revolucionário Insurrecional, liderado pelo anarquista Nestor Makhno, foi fuzilada pela Cheka, a polícia responsável por reprimir atos considerados contrarrevolucionários. Em poucos anos, os anarquistas da Rússia foram quase todos mortos, aprisionados, banidos ou reduzidos ao silêncio.

Diversos outros pensadores influenciaram libertários de várias partes do mundo. A ideia de ajuda mútua como requisito central para a evolução da ética da humanidade tornou-se referência através dos escritos do russo Piotr Kropotkin (1842-1921). Na resistência contra o golpe militar de Francisco Franco na Espanha da Guerra Civil, o operário Buenaventura Durruti (1896-1936) afirmava que os anarquistas traziam um novo mundo em seus corações. Victor Serge (1890-1947), nascido na Bélgica, de família russa e polonesa, escreveu em suas memórias que o anarquismo tomava os militantes inteiramente, transformava suas vidas, porque exigia uma coerência entre os atos e as palavras. Para muitos, tinha um caráter de conversão quase religiosa.

Os anarquistas incentivavam a luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista através do apelo para diversas formas de ação, como greves, boicotes, comícios, passeatas, fundação de sindicatos, denunciando o que consideravam ações repressoras da burguesia e do Estado. Embora tenha conquistado corações e mentes em diferentes classes sociais, o anarquismo se difundiu, sobretudo entre os trabalhadores pobres urbanos, e foi um elemento importante em seu processo de auto-organização e agregação social, recreativa e cultural. A circulação das ideias anarquistas se dava por meio de campanhas, comícios, pela imprensa e em publicações, mas também com a organização do tempo livre em eventos como teatro, piqueniques e festas. Assim, os anarquistas transformavam, ou ao menos abalavam, uma mentalidade consolidada em vários países, segundo a qual trabalhadores pobres deviam ficar fora da política.

Um dos livrinhos mais famosos de propaganda anarquista foi Entre camponeses, diálogo sobre a anarquia, do italiano Errico Malatesta (1853-1932), publicado em Florença, em 1884. Nele se lia a conversa entre dois camponeses, Giorgio, um jovem anarquista, e Beppe, um velho amigo de seu pai. Beppe tenta dissuadir Giorgio, argumentando que a política era coisa para os senhores, e que o trabalhador tinha que pensar em trabalhar e fazer o bem, assim viveria tranquilo e na graça de Deus. No fim, é o velho Beppe quem sai convertido ao anarquismo. Malatesta nasceu no sul da Itália, em uma família rica. Coerente com suas ideias, distribuiu as terras que herdou aos camponeses. Foi um dos anarquistas mais influentes em todo o mundo, inspirando inúmeros militantes e trabalhadores. Por isso foi duramente perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, desde sua ascensão ao poder em 1922.

Embora os anarquistas concordassem com os objetivos que queriam atingir, eles divergiam muito sobre os meios para alcançá-los. Na década de 1890 houve grandes atos de violência dos anarquistas no cenário mundial: foram mortos um rei na Itália, uma imperatriz na Áustria, um primeiro-ministro na Espanha, um presidente da França e um dos Estados Unidos.

Mas a maioria dos anarquistas recusou essas ações individuais e violentas. Alguns tentaram experimentar a organização libertária formando pequenas comunidades autogeridas que, em geral, tiveram vida curta e difícil. Outros organizaram insurreições. Muitos se dedicaram à formação e à participação nos sindicatos de trabalhadores, que consideravam um espaço privilegiado para a difusão da ideia anarquista e um exercício importante de autogestão. Houve os que investiram na educação, criando escolas alternativas que visavam formar crianças autônomas, e na arte engajada, como o teatro popular e a literatura com conteúdos políticos.

No Programa Anarquista, escrito por Malatesta em 1903, ele argumentava que os anarquistas queriam mudar radicalmente o mundo, substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidariedade, a busca exclusiva do próprio bem-estar pela cooperação, a opressão pela liberdade. "Queremos que a sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem-estar possível, o maior desenvolvimento possível, moral e material. Desejamos para todos pão, liberdade, amor e saber", escreveu Malatesta na conclusão do programa.

Já nos anos 1920 e 1930, o movimento anarquista perdeu força, com o surgimento dos partidos comunistas e o aumento da presença do Estado nas sociedades ocidentais, fechando o ciclo do chamado anarquismo histórico. Na Espanha, em Aragão e na Catalunha, os anarquistas conseguiram realizar uma verdadeira revolução durante a guerra civil: operários e camponeses se apoderaram das terras e das indústrias, estabeleceram conselhos de trabalhadores e fizeram a autogestão da economia. Essa coletivização teve considerável sucesso por algum tempo e, embora derrotada, foi a experiência anarquista mais importante da história e ficou na memória dos libertários como a prova concreta de que a anarquia era possível.

A partir dos anos 1960, quando se confirmaram suas previsões sobre os perigos da centralização do poder nos países socialistas, houve uma retomada do anarquismo em todo o mundo. Suas ideias libertárias influenciaram movimentos sociais, como o estudantil, o feminista, o ecológico e o hippie, penetrando com força também nas universidades. Em tempos de contestação do capitalismo e da capacidade dos governos de representar suas sociedades, os ideais anarquistas parecem mais vivos do que nunca.

Edilene Toledo. Sonhar também muda o mundo. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8 / nº 95 / Agosto 2013. p. 17-21.

NOTA: O texto "Anarquismo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Códice Mixteca 1200-1521

Codice Mixteca. Artistas desconhecidos. Um exemplo das representações pictográficas mixtecas. Na imagem, a lâmina 75 do Códice Tonindeye. Esta lâmina narra a campanha militar de Oito Veado contra a ilha Lugar do Bragueiro. A campanha durou três dias (10 serpente, 11 morte e 12 veado) e nela participaram os dois grandes aliados do senhor de Tilantongo: Nove Água e Quatro Jaguar. A ilha Lugar do Bragueiro localiza-se na margem do mundo conhecido, na Região da Cor Preta e Vermelha — onde a Serpente Emplumada desapareceu após fugir de Tollan. (Hermann Lejarazu, 2006: 82-83).

Os códices são um tipo de livro que costuma conter páginas separadas e algum tipo de encadernação. Entretanto, na Mesoamérica pré-colombiana, os códices assumiam a forma de uma folha única e comprida, feita de pele de animais ou casca de árvore, coberta com massa de cal e dobrada em sanfona. Muitos códices anteriores à conquista espanhola foram destruídos ou pereceram; consequentemente, os que sobreviveram se tornaram fonte valiosíssima de informações. As pinturas dos códices contam histórias épicas com desenhos de pessoas, animais, objetos e arquitetura, mas, a princípio, eram mais do que apenas documentos históricos. O formato sanfonado permitia que fossem exibidos desdobrados e esticados, como murais numa parede, em reuniões do conselho e na casa dos governantes. Costumavam ser expostos em banquetes reais para servir de roteiro para poetas e atores. Os convivas que assistiam à peça serviam-se em jarras e pratos de cerâmica policromada decorados com cenas do códice.

Carol King. Códice Mixteca 1200-1521. In: FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 116-117.

NOTA: O texto "Códice Mixteca 1200-1521" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A vida nos haréns do faraó

Passatempo no Egito Antigo, Lawrence Alma-Tadema

Nascido no Antigo Império (de 2700 a 2200 antes da nossa era), o harém egípcio se desenvolveu sob a XVIIIª dinastia e tomou uma nova forma: ao lado dos haréns palacianos tradicionais, assistimos ao surgimento de haréns itinerantes – chamados “de acompanhamento” – e à criação de grandes instituições situadas fora do domínio real, agrupando bens mobiliários, diferentes categorias de criados e o círculo feminino do rei, além dos filhos da família real, da corte e da elite, que recebiam ali uma educação esmerada.

Em Mi-our (atual Medinet el-Gourob, na entrada do Fayum), no harém criado sob o reinado de Tutmés III (de 1504 a 1450 antes da nossa era) – o mais importante até o fim da época raméssida -, conviviam mulheres de origem e status diferentes: a rainha e as esposas, com uma hierarquização possível entre a grande esposa do rei e as outras; as princesas, conhecidas como “filhas do rei”; as “irmãs do rei”, termo utilizado também para designar as meias-irmãs, primas, sobrinhas e tias; as concubinas e as favoritas – as mais velhas sendo chamadas de “conhecidas do rei”, “nobres do rei” ou “ornamentos do rei” e, as mais jovens, de “belas do palácio” -, cuja glória durava o tempo de um capricho. Estas últimas usavam uma coroa muito particular adornada com flores de caules retos com um diadema incrustrado, e, enfim, as amas, encarregadas das crianças, meninos e meninas, que moravam no harém.

O harém acolhia não apenas egípcias, mas também belas princesas estrangeiras, esposas oferecidas por um potentado asiático ao final de um tratado diplomático, como prova de amizade ou para selar uma aliança. No ano 10 do seu reino, Amenófis III (em torno de 1382 a 1344 a.C.) casou-se com Gilukipa, filha do rei de Naharina (no nordeste da Síra): ela chegou ao Egito à frente de uma escolta de 317 mulheres de seu séqüito, que foram instaladas nos apartamentos do harém. Ninguém nunca ficou sabendo o que aconteceu com elas. Kadash-man-Enlil, rei da Babilônia, queixou-se a Amenófis III: “Você me pede agora minha filha em casamento, mas minha irmã que meu pai lhe deu estava aí, com você, ninguém a viu e nos perguntamos se ela, hoje, está viva ou morta”. Ao que o rei respondeu de maneira lacônica: “Por acaso você mandou aqui um oficial dos seus, que conheça sua irmã, que poderia falar com ela e a identificar?”

Todas essas mulheres ficavam sob a vigilância de um diretor, que era ao mesmo tempo chefe do harém e primeiro-preceptor das crianças, assistido por um adjunto e por supervisores, encarregados da disciplina interna; sem contar os muitos escribas, guardas, inspetores e empregados subalternos, acompanhados por artesãos e domésticos, e os numerosos camponeses destinados à exploração dos domínios.


Servas do faraó, John Collier

O harém de Mi-our, um pouco afastado de Mênfis, próximo ao Baixo Egito, gozava de uma situação ideal às margens do lago Qaroun: um local propício para a pesca e para a caça, lazeres particularmente apreciados pelo faraó e seu círculo. Além das construções de habitação e serviço, da necrópole, do porto e do templo, a instituição possuía muitas cabeças de gado e vastas terras, cujos frutos permitiam alimentar a população de Mi-our. Segundo informações fornecidas por documentos contábeis, os rendimentos das peixarias do Fayum revertiam para o harém, assim como os rendimentos dos ateliês de tecelagem do linho, diretamente geridos pelas mulheres. Dessa maneira, longe de se acomodarem, as esposas reais administravam e faziam com seus domínios se desenvolvessem cuidando dos produtos da agricultura, da criação, da pesca e da tecelagem, controle da cobrança de impostos, e ainda a supervisão das fábricas de objetos pessoais como, perfumes, faiança, jóias.

Os vestígios das habitações de Mi-our foram examinados pela equipe britânica do egiptólogo Ian Shaw, porém são menos expressivos que os de Malgatta, o palácio de Amenófis III em Tebas Oeste, e o de Tell-el-Amarna, a capital de Akhenaton, dois centros refinados do Novo Império. Situados em amplos edifícios com salas cujo teto era sustentado por colunas, os núcleos de habitação eram instalados em meio a suntuosos jardins, de forma quadrada ou retangular, eles se organizavam em torno de um lago central onde patos e peixes se divertiam; o cultivo de flores, com os quais as mulheres confeccionavam guirlandas e buquês, era feito nas margens do lago ou em canteiros organizados nas proximidades, enquanto as árvores, dispostas de maneira geométrica, conferiam à composição uma sensação de harmonia e plenitude. Em volta do lago, quiosques permitiam aos ocupantes respirar o ar puro ao cair da noite. As meninas conversavam, misturando suas risadas aos sons das aves selvagens, enquanto suas irmãs mais velhas disputavam uma partida de senet – um dos passatempos  favoritos dos egípcios -, jogo que se joga a dois e se assemelha muito ao nosso jogo de damas.

Nos apartamentos, protegidos do calor graças a empregados encarregados de aspergi-los regularmente, piso e paredes exibiam pinturas de papiros e lótus emergindo da água, de onde patos e aves selvagens alçavam vôo assustados por veadinhos. Esses cenários bucólicos eram propícios à prática das artes: em um ou outro cômodo, meninas aprendiam canto, dança ou algum instrumento musical, em particular a harpa, o alaúde e a lira.

As mulheres viviam para sua beleza – uma das preocupações diárias mais comuns nos haréns -, escolhendo com cuidado perfumes, cosméticos, maquiagem, jóias e perucas. Em 1889, sempre em Mi-our, Flinders Petrie relata em seu caderno de registros que “grandes quantidades de pérolas que eram usadas em colares podiam ser recolhidas nas escavações da cidade”. As jóias representavam de fato 40% das coletas realizadas no sítio. Quanto ao palácio de Malgatta, este revelou uma coleção excepcional de objetos pessoais utilizados pelas esposas e princesas de Amenófis III, que se caracterizava por uma variedade e um refinamento extremo: espátulas para maquiagem em madeira ou marfim, algumas com a forma de uma nadadora segurando um pato, de uma jovem carregando uma jarra, uma menina colhendo flores de lótus ou ainda tocando lira ou tambor; ânforas de perfume ou de ungüentos, estojos de maquiagem e frascos em faiança ou de vidro colorido, às vezes com a efígie das divindades da casa (Bes ou Thoueris); pentes enfeitados com animais selvagens ou peixes; espelhos de bronze com a silhueta de Hator, deusa da beleza, moldada no cabo; caixinha de jóias envernizada, incrustrada de pedras semipreciosas, de cornalina ou lápis-lazúli... Cuidados particulares eram tomados com a maquiagem: no rosto e nos lábios, as mulheres aplicavam uma pasta colorida, num tom entre o ocre e o vermelho, e uma maquiagem preta ou verde tornava o contorno dos olhos amendoados mais expressivos.

Não longe dali, em um lugar silencioso, as crianças escutavam com atenção as aulas e os conselhos dados por suas amas e preceptores – muitas vezes militares em fim de carreira. Esse local chamava-se kep: uma instituição supervisionada pela primeira-dama do harém, a grande esposa do rei – assistida pelas esposas secundárias -, que acolhia ao mesmo tempo príncipes e princesas, jovens nobres e, em raras circunstâncias, crianças desfavorecidas.

O ensinamento de Khety dá a palavra a um camponês cujo filho, Pepy, fora enviado para estudar com as crianças reais, oportunidade raríssima na sociedade egípcia: “Quero que gostes dos escritos mais do que de tua própria mãe, quero que suas belezas penetrem em teu espírito”. Ensinavam-se ali a leitura e a escrita – hieroglífica e hierática -, a gramática e a conjugação, o cálculo e a geometria, as línguas estrangeiras, como também as leis e as regras de boa conduta que regem a sociedade.

Enfim, nas cozinhas, agitavam-se serviçais encarregados de preparar as refeições dessa enorme família. Era ainda a grande esposa do rei que geria a operação, principalmente quando o faraó anunciava a sua intenção de passar alguns dias nos harém. No dia a dia, café da manhã e almoço eram feitos individualmente, dependendo das ocupações de cada um. Apenas o jantar reunia as várias famílias à volta de pratos que devoravam com prazer: carnes grelhadas – ganso ou carne de boi em particular -, peixes secos, legumes e frutas diversas (favas, cebolas, lentilhas, alho, uvas, tâmaras, figos etc.) e laticínios. Tudo isso acompanhado por todo tipo de pão, salgados ou não, e bebidas (cerveja e vinho essencialmente).

Nesses haréns transformados em verdadeiras unidades econômicas totalmente independentes, uma vida autônoma se organizava, longe do tumulto do Vale do Nilo. Ignora-se que contatos efetivos essas estruturas mantinham com o resto da sociedade egípcia: muito provavelmente uma mulher que cruzasse a porta de um harém por decisão real, fosse ela de origem estrangeira, plebéia ou principesca, não sairia jamais, exceto para ser enterrada na necrópole vizinha, como ocorria em Mi-our. 

Aude Gros. A dura vida das joias do faraó. In: História Viva Grandes Temas. Nº 46, p. 68-73.

NOTA: O texto "A vida nos haréns do faraó" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 19 de janeiro de 2014

O terremoto de Lisboa

No dia 1º de novembro de 1755, um grande terremoto abalou a capital portuguesa. Era Dia de Todos os Santos, feriado religioso, e muitas pessoas encontravam-se nas igrejas no momento do tremor. As informações sobre o número de vítimas variam muito. Dados do governo português falam entre 10 mil e 30 mil mortos, mas, segundo relatos de estrangeiros que estavam em Lisboa no dia da tragédia, o número de mortos se aproximou dos 100 mil, numa população que, na época, estava próxima de 250 mil.

O terremoto de Lisboa, gravura de Georg Caspar Pfauntz

Estudos recentes afirmam que a intensidade do abalo se aproximou de 9 graus na escala Richter, sendo um dos terremotos mais destruidores da história da humanidade. O primeiro tremor ocorreu por volta das 9h45 e durou entre seis e sete minutos. Seguiram-se dois novos tremores e, cerca de uma hora após o primeiro tremor, um tsunami de cerca de 20 metros arrasou a parte da cidade mais próxima à foz do Rio Tejo. Para agravar a situação, inúmeros incêndios aconteceram na cidade, provocados principalmente pela grande quantidade de velas acesas por causa do feriado religioso.

Muitos religiosos, sobretudo padres jesuítas, consideraram o terremoto um castigo divino pela falta de fé do povo português. Pombal, como era próprio do pensamento iluminista, combateu essa ideia, tratando o caso de maneira racional, elaborando relatórios científicos para analisar o cismo. Os estudos gerados na época acabaram dando origem à sismologia, ciência moderna que estuda os terremotos.

O terremoto lisboeta causou impacto, também, no pensamento de muitos filósofos da época. Inúmeros livros e artigos foram escritos na Alemanha, Holanda, Inglaterra, Itália, Espanha e França e geraram dúvidas sobre a existência de um Deus bondoso e fiel.

Voltaire, um dos principais pensadores iluministas, escreveu, em seu livro Cândido ou O otimismo, uma  grande crítica ao pensamento otimista predominante em alguns textos filosóficos da época. O personagem principal da história, o jovem Cândido, desembarca em Lisboa acompanhado de seu amigo e mentor, o filósofo Pangloss, que tudo via com otimismo, exatamente no dia da tragédia. A linguagem bastante irônica utilizada por Voltaire leva os argumentos de Pangloss a parecerem absurdos aos olhos do leitor.

[...] a seguir, uma passagem da obra, no momento em que os personagens caminham pela cidade no dia posterior ao terremoto.

“No dia seguinte, tendo encontrado provisões de boca enquanto se esqueiravam através dos escombros, refizeram-se um tanto. Trabalharam, depois, como os outros, atendendo a pessoas escapadas à morte. Alguns cidadãos, socorridos por eles, serviram-lhes um jantar tão bom quanto possível em meio a tal desastre; é verdade que foi triste a refeição, regado em lágrimas o pão dos comensais, mas Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que as coisas não poderiam ser de outra maneira:

- Pois tudo isto [...] é o que há de melhor; porque, havendo um vulcão em Lisboa, era impossível que estivesse noutra parte; pois não teria cabimento que as coisas não se encontrassem exatamente onde se encontram; pois tudo assim está bem.” (VOLTAIRE. Cândido ou O otimismo. São Paulo: Publifolhoa; Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 22.)


BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história: das origens do homem à era digital. São Paulo: Moderna, 2011. p. 72-73.

NOTA: O texto "O terremoto de Lisboa" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Diabo, uma criação do cristianismo

O diabo foi “a principal criação do cristianismo durante a longa Idade Média”, segundo Jacques Le Goff. No entanto, originalmente Satã tinha um lugar limitado no Velho Testamento, apesar de no livro do Gênese sua ação ser decisiva na queda da humanidade. No Novo Testamento, ele aparece sob diversos nomes: Satã (o adversário), o diabo (aquele que se põe de través), Belzebu (o rei das moscas). A Idade Média construiu uma demonologia complexa. Raros são os autores que não discutiram esse tema, sobretudo sua existência. Mas a maioria concordava em dizer que o diabo era bom quando foi criado, e o orgulho é que tinha provocado sua queda e a dos anjos maus. Lúcifer caiu no inferno, seu território, enquanto os anjos decaídos assustavam o mundo e atormentavam os seres humanos – estavam na origem de todas as perdições.


Ressurreição da carne, (1499-1502). Capela de San Brizio, Duomo, Orvieto. Luca Signorelli.

O fascínio exercido pelo diabo e pelos demônios sobre os teólogos e clérigos que especulavam sobre sua identidade estava ligado ao poder conferido a ele. O diabo tinha a capacidade de se deslocar pelos ares, o dom da ubiqüidade, a faculdade de prever o futuro e sondar o passado. Por fim, era capaz de penetrar no corpo humano por meio da possessão. As descrições são surpreendentes: o diabo transformava o corpo e a voz do possuído, o jogava no chão e lhe infligia tormentos atrozes. Além disso, os demônios íncubos (masculinos) e súcubos (femininos) podiam se apoderar da matéria humana e fazer as mulheres gerarem monstros. Todos esses prodígios eram, na verdade, ações de criaturas divinas destinadas a testar a fé humana. Lado sombrio do cristianismo, muitos eram os culpados. Primeiro, os pagãos, depois os judeus e os muçulmanos, os heréticos e, na fase final da Idade Média, as feiticeiras. O próprio pecador, mergulhado na luxúria, na gula ou no roubo, era classificado de possuído.


BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 2: Idade Média. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 26-27.

NOTA: O texto "O Diabo, uma criação do cristianismo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Pudor de sentimentos & pudor corporal: significados na Época Moderna

Bem diferente também era a noção de pudor que as viagens ultramarinas revelaram aos europeus. Singrando mares e chegando a terras que lhes eram desconhecidas, encontraram povos que tinham outras noções quanto à nudez, às funções corporais ou à sexualidade. Aos olhos dos europeus, os "selvagens" não tinham sido ungidos pela Graça divina. E seria considerado ofensivo colocar em dúvida os comportamentos cristãos para seguir o exemplo dos índios. Mas a diferença não estava só entre cristãos e bárbaros. Mesmo na Europa, pudor de sentimentos & pudor corporal tinham significados diferentes entre os diferentes grupos: ricos ou pobres, homens ou mulheres.


Sauna, Pekka Halonen

O banho, por exemplo. Ele gozou de grande prestígio entre as civilizações antigas e estava associado ao prazer: vide as termas romanas. Durante o Império, os banhos públicos multiplicaram-se e muitos se tornaram locais de prostituição. Eram os chamados "banhos bordéis", onde as "filhas do banho" ofereciam seus serviços. Os primeiros cristãos, indignados com a má frequentação, consideravam que uma mulher que fosse aos banhos públicos poderia ser repudiada. O código de Justiniano deu respaldo à ação. Concílio após concílio, tentava-se acabar com eles. Proibidos aos religiosos, sobretudo quando jovens, abster-se de banho se tornou sinônimo de santidade. Santa Agnes privou-se deles toda a vida. Ordens monásticas os proibiam aos seus monges, O batismo cristão, antes uma cerimônia comunitária de imersão, transformou-se numa simples aspersão.

Contudo, é importante lembrar que, apesar dos prazeres oferecidos pela água, gestos de pudor estavam sempre presentes. Durante a Idade Média, homens e mulheres não se banhavam juntos, salvo nos prostíbulos. Ambos cobriam as partes pudendas. Eles, com um tipo de calção. Elas, com um vestido fino e comprido. Regulamentos austeros coibiam horários e orientavam o uso das estufas. Era terminantemente proibido, por exemplo, que homens entrassem nos banhos femininos e vice-versa. Não faltam ilustrações - em miniaturas e gravuras - sobre o voyeurismo, capaz de quebrar as severas regras que controlavam tais espaços.

Segundo alguns autores, enquanto nossos índios davam exemplo de higiene, banhando-se nos rios, os europeus eram perseguidos pelas leis das reformas católica e protestante que lhes interditavam nadar nus. A visão de rapazes dentro dos rios, mergulhando ou nadando em trajes de Adão, causava escândalo, quando não penalidades e multas.

A nudez e a poligamia dos índios ajudavam a demonizar sua imagem. Considerados não civilizados, a tentativa dos jesuítas em cobri-los resultou, muitas vezes, em situações cômicas, como a relatada por padre Anchieta:

"Os índios da terra de ordinário andam nus e quando muito vestem alguma roupa de algodão ou de pano baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro, carapaça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia saem com seus sapatos ou botas e o mais nu. [...] e se vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa e lhes parece que vão assim mui galantes."

A discussão sobre a nudez dos selvagens alimentava outra: o que teria vindo antes: a roupa ou o pudor? Adão que o dissesse... Teve que se cobrir com uma folha de parreira, assim que foi expulso do paraíso. Eis por que os missionários impunham roupas aos índios. Inspirados pelas "descobertas", vários tratados sobre indumentária e costumes foram então escritos na Europa. A ideia era a de que se cobrissem os nus, retirando-lhes as armas da sedução. Mas que, também, se atacasse os que se cobriam com tecidos caros, perucas pomposas e maquilagem, sinônimo de luxúria e vaidade. Daí a importância da modéstia como sinônimo de pudor.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 18-20.

NOTA: O texto "Pudor de sentimentos & pudor corporal: significados na Época Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O significado do nu na Idade Moderna

1500: Pleno desabrochar do Renascimento na Europa e chegada dos “alfacinhas” ao Brasil. Em 1566, é dicionarizada na França, pela primeira vez, a palavra erótico. Designava, então, “o que tiver relação com o amor ou proceder dele”. Na pintura, o humanismo colocava o homem no centro do mundo – e não mais Deus -, descobrindo-se os corpos e o nu. Nu que, hoje, associamos ao erotismo. Mas era ele, então, sinônimo de erotismo? Não. Isso significa que as palavras, os conceitos e seus conteúdos mudam, no tempo e no espaço; o que hoje é erótico, não o era para os nossos avós.

Comecemos por um exemplo bastante conhecido. Ao desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os recém-chegados portugueses se impressionaram com a beleza de nossas índias: pardas, bem dispostas, “suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha alguma”. A Pero Vaz de Caminha não passaram despercebidas as “moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas”. Os corpos, segundo ele, “limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser”. Os cânones da beleza europeia se transferiam para cá, no olhar guloso dos primeiros colonizadores. Durante o Renascimento, graças à teoria neoplatônica, amor e beleza caminhavam juntos. Vários autores, como Petrarca, trataram desse tema para discutir a correspondência entre belo e bom, entre o visível e o invisível. Não à toa, nossas indígenas eram consideradas, pelos cronistas seiscentistas, criaturas inocentes. Sua nudez e despudor eram lidos numa chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, a “formosura” à ideia de pureza. Até suas “vergonhas depiladas” remetiam a uma imagem sem sensualidade. As estátuas e pinturas que revelavam mulheres nuas, o faziam sem pelos púbicos. A penugem cabeluda era o símbolo máximo do erotismo feminino. A questão da sensualidade não estava posta aí.


América, artista desconhecido. Ca. 1650

Nuas em pelo, as “americanas” exibiam-se, também, nas múltiplas gravuras que circulavam sobre o Novo Mundo, com seus seios pequenos, os quadris estreitos, a cabeça coroada por plumagens ou frutas tropicais. Os gravadores do Renascimento as representavam montadas ou sentadas sobre animais que os europeus desconheciam: o tatu, o jacaré, a tartaruga. Mas, aí, a nudez não era mais símbolo de inocência, mas de pobreza: pobreza de artefatos, de bens materiais, de conhecimentos que pudessem gerar riquezas. Comparadas com as mulheres que nas gravuras representavam o continente asiático ou a Europa, nossa América era nua, não porque sensual, mas porque despojada, singela, miserável. As outras alegorias – a Ásia e a Europa – mostravam-se ornamentadas com tecidos finos, joias e tesouros de todo tipo. Mesmo a África, parte do mundo mais conhecida no Ocidente cristão do que a América, trazia aparatos, expondo a gordura. Gordura, então, sinônimo de beleza.

O retrato das americanas, além da magreza e da nudez, ostentava sempre um signo temido: os ossos daqueles que tinham sido devorados nos banquetes antropofágicos. Nudez, pobreza e antropofagia andavam de mãos dadas. As interpretações, então, se sobrepunham: passou-se da pureza à pobreza. E daí ao horror por essa gente que comia gente. Pior. À medida que os índios resistiam à chegada dos estrangeiros, aprofundava-se sua satanização. Para combatê-los ou afastá-los do litoral, nada melhor do que compará-los a demônios. A nudez das índias estava, pois, longe de ser erótica.

Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as crianças indígenas que freqüentavam suas escolas: “Mandem pano para que se vistam”, pedia padre Manoel da Nóbrega em carta aos seus superiores. Aos olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal, como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural. Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se negavam a ninguém.

A associação entre nudez e luxúria provocava os castigos divinos. Ameaçavam-se as pecadoras que usavam decotes. Eis por que a luxúria foi associada a uma profusão de animais imundos: sapos, serpentes ou ratos que se agarravam aos seios ou ao sexo das mulheres lascivas. Nas igrejas, pinturas demonstravam os diabos que recebiam as almas pecadoras, nuas em pelo, com golpes de pá e tridentes. Nos livros de oração com imagens, o justo morria sempre de camisola. O pecador, despido! Enterravam-se as pessoas vestidas, para ressuscitarem com roupas que as identificassem.

Mas que significado teria o nu, na Idade Moderna? A nudez era erótica? Havia, então, uma grande diferença entre nudez e nu. A nudez se referia àqueles que fossem despojados de suas vestes. O nu remetia não à imagem de um corpo transido e sem defesa, mas ao corpo equilibrado e seguro de si mesmo. O vocábulo foi incorporado, no século XVIII, às academias de ciências artísticas, onde a pintura e a escultura faziam do nu o motivo essencial de suas obras.

A realidade, porém, era menos “artística”. Viajantes estrangeiros que passavam pelo Brasil, nessa época, ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas que escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito abaixo. E, contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino menos erótico ou atrativo do que os seios. As chamadas “tetas”, descritas nos tratados médicos como membros esponjosos próximos ao coração, tinham uma só função: produzir alimento. Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso.

Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como “torre de marfim” cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do Leite – que no Renascimento expunha os bicos -, desaparecem de oratórios e igrejas. Nossa Senhora passa a cobrir-se até o queixo, quando não era vestida pelas próprias devotas.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na História do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 15-18.

NOTA: O texto "O significado do nu na Idade Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Noção de intimidade entre os séculos XVI e XVIII

Podemos olhar pelo buraco da fechadura para ver como nossos antepassados se relacionavam? De fechaduras, não! Elas custavam caro e o Brasil, na época da colonização, era pobre. Podemos, sim, enxergar através das frestas dos muros, das rachaduras das portas. Por ali se via que a noção de privacidade estava sendo “construída”, estava em gestação. E construída em meio a um ambiente de extrema precariedade e instabilidade. Em terras brasileiras, colonos tiveram que lutar, durante quase três séculos, contra o provisório: o material, o físico, o político e o econômico. “Viver em colônias” – como se dizia então – era o que faziam. Sobreviviam... E sobreviviam sob o signo do desconforto e da pobreza. Habitavam casas de meias paredes cobertas de telhas ou sapê, com divisão interna que pouco ensejava a intimidade. Nelas faltavam móveis que oferecessem algum conforto, ou boa iluminação, devido à falta de vidros. Instaladas em vilarejos sem arruamento, ali os animais domésticos pastavam à solta e havia lixo em toda parte. A água, esse bem mais precioso em nossos dias, só aquela de rios e poços ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade, portanto, zero.

A noção de intimidade no mundo dos homens entre os séculos XVI e XVIII se diferencia profundamente daquela que é a nossa do início do século XXI. A vida quotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter relações eróticas eram práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido. Regras, portanto, regulavam condutas. Leis eram interiorizadas. E o sentimento de coletividade, sobrepunha-se ao de individualidade.


Estudo de um homem nu, Auguste Jerndorff

Mas falar nesse assunto quando a América ainda era portuguesa implica compreender o que se entendia por privacidade há quase trezentos anos. Apenas em 1718 o conceito fará sua aparição. E foi o dicionarista jesuíta Raphael Bluteau quem, pioneiramente, esclareceu:

“Privado: uma pessoa que trata só de sua pessoa, de sua família e de seus interesses domésticos.” Mais tarde, em 1798, no seu Elucidário de palavras e termos, frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo definia que o verbete “privido” – palavra mais tarde substituída por “privado” – designava o que pertencia a uma particular pessoa. Quase cem anos foram necessários para que “privado” deixasse de significar o que fosse familiar e coletivo para se centrar no pessoal. Mas como fazer tal passagem e terras de escravidão e de pobreza material, onde, contrariamente à Europa ocidental, não havia muita separação entre privado e público? Como, num lugar onde todos sabiam de tudo e de todos?

Era diferente. Aqui, muitas pessoas andavam seminuas: sobretudo índios e escravos. As regras e os ritos da Europa não se tinham consolidado entre índios e africanos. Palavras como vergonha e pudor, recém-dicionarizadas no século XVI, continuavam ausentes dos “vocabulários” – nome que então se dava aos glossários -, até entre portugueses. Para os etimologistas, a palavra nasceu à época da chegada dos lusitanos às nossas costas. Antes, pudenda designava os órgãos sexuais, “vergonhosos”. Inicialmente associados à pudicícia, pudor e castidade eram sinônimos. Os primeiros dicionários deram o sentido atual ao termo, ligando-o à modéstia, decência e civilidade. Considerado natural nas mulheres, o pudor permitia afirmar que uma mulher nua podia ser mais pudica do que uma vestida. Isso, pois acreditava-se que, ao despir-se, ela se cobria com as vestes da vergonha.

O pudor que se definia nos dicionários não era um conceito espalhado na sociedade. Enquanto Isabel de Castela, em 1504, morria de uma ferida que não quis mostrar aos médicos, recebendo a extrema-unção sob os cobertores para não exibir nem os pés, muitos moradores da América portuguesa vestiam-se apenas com um minúsculo pedaço de tecido. Descobria-se, então, que existiam povos obedientes a diferentes noções de pudor.

Ora, tais noções foram pioneiras em esboçar a história do polimento das condutas, do crescimento do espaço privado e dos autoconstrangimentos que a modernidade foi trazendo. Daquilo que Michel Foucault chamou de cuidado de si; uma esfera cada vez mais definida entre o público e o privado. Esfera capaz de afastar, de forma progressiva e profunda, um do outro. E que conta a história do peso da cultura sobre o mundo das sensações imediatas. Cultura que nos levou da vida em grupo ou em família para o individualismo que é a marca de nosso tempo.


DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na História do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 13-15.

NOTA: O texto "Noção de intimidade entre os séculos XVI e XVIII" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.