1500: Pleno desabrochar do
Renascimento na Europa e chegada dos “alfacinhas” ao Brasil. Em 1566, é
dicionarizada na França, pela primeira vez, a palavra erótico. Designava, então, “o que tiver relação com o amor ou
proceder dele”. Na pintura, o humanismo colocava o homem no centro do mundo – e
não mais Deus -, descobrindo-se os corpos e o nu. Nu que, hoje, associamos ao
erotismo. Mas era ele, então, sinônimo de erotismo? Não. Isso significa que as
palavras, os conceitos e seus conteúdos mudam, no tempo e no espaço; o que hoje
é erótico, não o era para os nossos avós.
Comecemos por um exemplo bastante
conhecido. Ao desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os
recém-chegados portugueses se impressionaram com a beleza de nossas índias:
pardas, bem dispostas, “suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim
descobertas, que não havia nisso desvergonha alguma”. A Pero Vaz de Caminha não
passaram despercebidas as “moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito
pretos compridos pelas espáduas”. Os corpos, segundo ele, “limpos e tão gordos
e tão formosos que não pode mais ser”. Os cânones da beleza europeia se
transferiam para cá, no olhar guloso dos primeiros colonizadores. Durante o
Renascimento, graças à teoria neoplatônica, amor e beleza caminhavam juntos.
Vários autores, como Petrarca, trataram desse tema para discutir a correspondência
entre belo e bom, entre o visível e o invisível. Não à toa, nossas indígenas
eram consideradas, pelos cronistas seiscentistas, criaturas inocentes. Sua
nudez e despudor eram lidos numa chave de desconhecimento do mal, ligando,
portanto, a “formosura” à ideia de pureza. Até suas “vergonhas depiladas”
remetiam a uma imagem sem sensualidade. As estátuas e pinturas que revelavam
mulheres nuas, o faziam sem pelos púbicos. A penugem cabeluda era o símbolo
máximo do erotismo feminino. A questão da sensualidade não estava posta aí.
América, artista desconhecido. Ca. 1650
Nuas em pelo, as “americanas”
exibiam-se, também, nas múltiplas gravuras que circulavam sobre o Novo Mundo,
com seus seios pequenos, os quadris estreitos, a cabeça coroada por plumagens
ou frutas tropicais. Os gravadores do Renascimento as representavam montadas ou
sentadas sobre animais que os europeus desconheciam: o tatu, o jacaré, a
tartaruga. Mas, aí, a nudez não era mais símbolo de inocência, mas de pobreza:
pobreza de artefatos, de bens materiais, de conhecimentos que pudessem gerar
riquezas. Comparadas com as mulheres que nas gravuras representavam o
continente asiático ou a Europa, nossa América era nua, não porque sensual, mas
porque despojada, singela, miserável. As outras alegorias – a Ásia e a Europa –
mostravam-se ornamentadas com tecidos finos, joias e tesouros de todo tipo.
Mesmo a África, parte do mundo mais conhecida no Ocidente cristão do que a
América, trazia aparatos, expondo a gordura. Gordura, então, sinônimo de
beleza.
O retrato das americanas, além da
magreza e da nudez, ostentava sempre um signo temido: os ossos daqueles que
tinham sido devorados nos banquetes antropofágicos. Nudez, pobreza e
antropofagia andavam de mãos dadas. As interpretações, então, se sobrepunham:
passou-se da pureza à pobreza. E daí ao horror por essa gente que comia gente.
Pior. À medida que os índios resistiam à chegada dos estrangeiros,
aprofundava-se sua satanização. Para combatê-los ou afastá-los do litoral, nada
melhor do que compará-los a demônios. A nudez das índias estava, pois, longe de
ser erótica.
Desde o início da colonização
lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por
exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as
crianças indígenas que freqüentavam suas escolas: “Mandem pano para que se
vistam”, pedia padre Manoel da Nóbrega em carta aos seus superiores. Aos olhos
dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal, como
as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural. Vesti-lo era afastá-lo do
mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente
combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da
carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as
indígenas não se negavam a ninguém.
A associação entre nudez e
luxúria provocava os castigos divinos. Ameaçavam-se as pecadoras que usavam
decotes. Eis por que a luxúria foi associada a uma profusão de animais imundos:
sapos, serpentes ou ratos que se agarravam aos seios ou ao sexo das mulheres
lascivas. Nas igrejas, pinturas demonstravam os diabos que recebiam as almas
pecadoras, nuas em pelo, com golpes de pá e tridentes. Nos livros de oração com
imagens, o justo morria sempre de camisola. O pecador, despido! Enterravam-se
as pessoas vestidas, para ressuscitarem com roupas que as identificassem.
Mas que significado teria o nu,
na Idade Moderna? A nudez era erótica? Havia, então, uma grande diferença entre
nudez e nu. A nudez se referia àqueles que fossem despojados de suas vestes. O
nu remetia não à imagem de um corpo transido e sem defesa, mas ao corpo
equilibrado e seguro de si mesmo. O vocábulo foi incorporado, no século XVIII,
às academias de ciências artísticas, onde a pintura e a escultura faziam do nu
o motivo essencial de suas obras.
A realidade, porém, era menos
“artística”. Viajantes estrangeiros que passavam pelo Brasil, nessa época,
ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas que
escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito
abaixo. E, contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino
menos erótico ou atrativo do que os seios. As chamadas “tetas”, descritas nos
tratados médicos como membros esponjosos próximos ao coração, tinham uma só
função: produzir alimento. Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o
calor do coração, tornando-se branco e leitoso.
Os seios jamais eram vistos como
sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao
pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como “torre de marfim” cantado
pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens sacras.
Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria
Virgem do Leite – que no Renascimento expunha os bicos -, desaparecem de
oratórios e igrejas. Nossa Senhora passa a cobrir-se até o queixo, quando não
era vestida pelas próprias devotas.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na
História do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 15-18.
NOTA: O texto "O significado do nu na Idade Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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