"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

"Bacanais" à brasileira

Há autores que sublinham a esquizofrenia do brasileiro, um povo que adora e, ao mesmo tempo, repudia a sua vocação mais escancarada e libertina. Povo irreverente que tanto adora sexo quanto falar dele, mas que também não consegue se desvencilhar de um ranço moralista e extremamente conservador que ainda insiste em afirmar que tudo o que se refere a sexo é sujo e pecaminoso, e valoriza o sofrimento em detrimento do prazer. Mas, com uma história de tanta repressão, não é difícil entender as razões para o moralismo. E o outro lado?

Vamos observá-lo, sobretudo em determinados momentos: festas populares, danças e músicas. Estrangeiros sempre olharam tais manifestações com desprezo. Em especial quando as mulheres se mostravam fora do comportamento pudico exigido na época: braços para o alto, pernas e bocas abertas. "Dança obscena", feita de "volúpias asquerosas" ou "febres libertinas", era como se identificavam tais momentos em que a sensualidade levava a melhor. Não escapava o gingado de mulatas e negras capazes de atrair os homens, brancos ou negros, "com suas formas sedutoras e o cheiro de suas axilas". Tais cenas afastavam o "povo" do caminho de moralidade exigido pelo comportamento burguês, já sacramentado na primeira década do século XX. É óbvio que nem todos os segmentos achavam que dançar, suar e brincar eram manifestações de atraso. E passavam longe do projeto de tornar o Brasil uma outra Europa.


Jogos durante o carnaval no Rio de Janeiro (Entrudo familiar), Augustus Earle

Tanto o carnaval quanto as festas religiosas convidavam a excessos em que a sexualidade não se escondia. Por exemplo, a festa de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro, segundo o capelão da irmandade, "transformavam-se todos os anos em bacanal vergonhoso aviltado por crimes hediondos e desordens abomináveis". Era nas faldas do morro escarpado, sobre o qual repousa o templo, que as pessoas iam, "não levadas pela fé", queixava-se o padre, "mas para dar livre e impudica expansão ao libertinismo repugnante". Sexo e fé não rimavam. A imprensa criticava o que se considerava "verdadeira bacanal da Grécia ou Roma antiga".

O carnaval também colocava em cena a sexualidade posta de lado no restante do ano. A praça Onze, no Rio de Janeiro, ponto alto do encontro de camadas populares, promovia uma festa de "gritos e urros", segundo observadores, ao som de cuícas e pandeiros, onde morenas requebravam "como gatas, felinas e maliciosas, tentando branco e preto, louro ou moreno, dançando e rodopiando", descrevia o jornal O Radical em 1933. Não escapou a Graça Aranha, escritor e diplomata, idealizador da Semana de 22 em São Paulo, as diferenças entre o carnaval de rua e aquele dos clubes fechados. No primeiro, triunfavam a negra e a mulata. "Fura a imobilidade um grupo de baianas, dançando, cantando, saracoteando a grossa luxúria negra, seguidas por gorilas assanhados de beiços compridos, tocando pandeiros, pulando lascivos".

Já nos bailes fechados, atos abomináveis se multiplicavam. Éter e cocaína rolavam livremente. Mulheres passando dos cinquenta atracavam-se com "rapazelhos de dezoito". Noivas esqueciam o compromisso e pulavam nos braços de outros. Não faltava o choro envergonhado da mocinha de boa família, apalpada ou espalmada. Problema dela, afinal estava vestida de gigolette, prostituta parisiense das mais reles. A poetisa Cecília Meirelles explicava a opção da fantasia que revelava mais do que escondia: "senhoras tranquilas sofrem silenciosamente o ano inteiro só com a esperança de aparecerem no carnaval, vestidas de gigolettes". Cronistas acusavam a promiscuidade reinante nos melhores ambientes, levando senhoras casadas a se comportarem como prostitutas: "muitas são as damas finas que se nivelam às hetairas nos clubes, nos bailes, nos três dias de orgia carnavalesca. Terminada a festa, porém, as prostitutas continuam no seu triste mister; as elegantes, decaídas eventuais, tornam aos seus lares, tomam parte em ligas contra o álcool, deitam o verbo fulminando  contra o vício", denunciava a Revista Policial, em 1927.

Ou a Fon-Fon: "meninas pudicas que não fumam, não bebem, não vão sequer sozinhas ao cinema, nos dias carnaval, entram em café barato como qualquer homem, bebem com um simples desconhecido, praticam toda a espécie de loucura, satisfazem a todos os desejos de liberdade".

Já as esposas "que vivem para os filhos", essas podiam ser encontradas no High-Life, no Bola-Preta...

Nos anos 50, a cobertura de revistas como O Cruzeiro sublinhava as transgressões femininas. "O movimentado carnaval de três garotas, os bailes, as festas, as brincadeiras e o que aconteceu quando elas resolveram galgar no Trono de Sua Majestade Momo" era título de matéria fartamente documentada com fotos em que, fantasiadas de dançarinas de can-can, com saias curtíssimas, moças posavam em todas as posições.

Outra reportagem tinha como tema a farta difusão de beijos durante as festas do Momo. O título era "Beijos no carnaval" e o autor explicava: "O caso é que no carnaval o beijo impera livremente. Todos, ou quase todos se beijam. Não há malícia, creiam. A hipnose musical e os efeitos do álcool agem profundamente na personalidade de cada um. Parece que todos ficam mais simples, mais espontâneos. E beijam. Principalmente nos bailes. Beijos roubados, beijos apaixonados, beijinhos, beijos espetaculares. É o amor. É o retorno à simplicidade. Não procurem o lado escandaloso, nestas fotografias. O que há aqui é vida. Vida em uma das suas mais ricas manifestações".

E seguiam-se fotos e mais fotos de beijos...

O carnaval era visto como uma festa perigosa, depravada, na qual "as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e inútil, a honra, uma caceteação, o bom senso, uma fadiga". O desejo, sobretudo o feminino, engessado pelos bons costumes durante o ano, explodia nas fantasias e comportamentos espontâneos. Era "sem-vergonhismo" puro, no entender de alguns. Caminhada para a liberdade, no de outros.

A música também assinalava transformações nos comportamentos femininos, registrando o estarrecimento masculino diante das condutas que rompiam com valores tradicionais. O papel "superior" do macho estava sendo questionado. Eis por que se multiplicavam as composições sobre a mulher que renunciava ao lar para emancipar-se: "Good-bye, meu bem", gravada por Raquel de Freitas, ou "Dona Balbina", por Carmem Miranda, são bons exemplos. E os homens não ficaram de braços cruzados. A crítica feroz à liberação do tamanho dos vestidos e o uso da maquiagem, veio na forma de composições como as que fez Francisco Alves com "Tua saia é curta" ou "Futurista". Em "Se a moda pega" ou "Cangote raspado", a queixa é contra moças que expunham a nuca aos rapazes, graças ao corte à la garçonne. Recusa ao namoro ou ao casamento? Frieza e maldade da nova mulher que emergia entre os anos 30 e 40. O resultado de tanta "leviandade", segundo os compositores, era o abandono e a solidão.

Mas as mulheres já tinham suas defensoras. A escritora Ercília Nogueira Cobra foi uma delas. Escrevendo contra a submissão na qual foram sempre colocadas, reagia: "Os homens, no afã de conseguirem um meio prático de dominar as mulheres, colocaram-lhe a honra entre as pernas, perto do ânus, num lugar que, bel lavado, não digo que não seja limpo e até delicioso para certos misteres, mas que nunca poderá ser sede de uma consciência. Nunca!! Seria absurdo! Seria ridículo, se não fosse perverso. A mulher não pensa com a vagina, nem com o útero".

Presa e interrogada, várias vezes, durante o Estado Novo, a paulista de Mococa escandalizou ao lançar suas contribuições para as letras brasileiras: Virgindade anti-higiênica: preconceitos e convenções hipócritas e o romance Virgindade inútil: novela de uma revoltada. Considerada uma anarquista "ameaçadora" aos bons costumes, Ercília discordava da visão conservadora de então. Defendia a educação feminina como forma de evitar a prostituição de meninas pobres e acusava os "grandes hotéis, grandes chás, grandes transatlânticos", lugares do dinheiro e da burguesia, como os espaços por excelência do meretrício chic. A falta de igualdade da mulher em relação aos homens levava-a a acusar: "a única pornografia que existe é o mistério que se lança sobre o mais natural e inocente instinto da natureza humana". E mergulhava fundo na questão, revelando, por exemplo, que a falta de expressão sexual livre, entre as casadas, terminava por dobrá-las aos desejos dos maridos. Para os solteiros, restava a masturbação, exclusiva forma de preservar esse "bem inestimável": a virgindade, único passaporte válido para o casamento. Por agir assim, explicava, a mulher se considerava um objeto, pois criada exclusivamente para aceitar como padrão de comportamento a instituição do matrimônio. Fora disso e da vida religiosa, só existiria "degeneração". Para Ercília, o desgastado dilema "mãe ou prostituta" contribuía para a submissão sem freios da brasileira. Seus ensaios e romance defendiam a destruição dos valores da época, substituídos pelo direito e responsabilidade no exercício da liberdade, emocional e sexual. Incentivo aos bacanais? Não. Mas à liberdade sexual consciente.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 147-151.

NOTA: O texto "Bacanais à brasileira" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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