"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A vida nos haréns do faraó

Passatempo no Egito Antigo, Lawrence Alma-Tadema

Nascido no Antigo Império (de 2700 a 2200 antes da nossa era), o harém egípcio se desenvolveu sob a XVIIIª dinastia e tomou uma nova forma: ao lado dos haréns palacianos tradicionais, assistimos ao surgimento de haréns itinerantes – chamados “de acompanhamento” – e à criação de grandes instituições situadas fora do domínio real, agrupando bens mobiliários, diferentes categorias de criados e o círculo feminino do rei, além dos filhos da família real, da corte e da elite, que recebiam ali uma educação esmerada.

Em Mi-our (atual Medinet el-Gourob, na entrada do Fayum), no harém criado sob o reinado de Tutmés III (de 1504 a 1450 antes da nossa era) – o mais importante até o fim da época raméssida -, conviviam mulheres de origem e status diferentes: a rainha e as esposas, com uma hierarquização possível entre a grande esposa do rei e as outras; as princesas, conhecidas como “filhas do rei”; as “irmãs do rei”, termo utilizado também para designar as meias-irmãs, primas, sobrinhas e tias; as concubinas e as favoritas – as mais velhas sendo chamadas de “conhecidas do rei”, “nobres do rei” ou “ornamentos do rei” e, as mais jovens, de “belas do palácio” -, cuja glória durava o tempo de um capricho. Estas últimas usavam uma coroa muito particular adornada com flores de caules retos com um diadema incrustrado, e, enfim, as amas, encarregadas das crianças, meninos e meninas, que moravam no harém.

O harém acolhia não apenas egípcias, mas também belas princesas estrangeiras, esposas oferecidas por um potentado asiático ao final de um tratado diplomático, como prova de amizade ou para selar uma aliança. No ano 10 do seu reino, Amenófis III (em torno de 1382 a 1344 a.C.) casou-se com Gilukipa, filha do rei de Naharina (no nordeste da Síra): ela chegou ao Egito à frente de uma escolta de 317 mulheres de seu séqüito, que foram instaladas nos apartamentos do harém. Ninguém nunca ficou sabendo o que aconteceu com elas. Kadash-man-Enlil, rei da Babilônia, queixou-se a Amenófis III: “Você me pede agora minha filha em casamento, mas minha irmã que meu pai lhe deu estava aí, com você, ninguém a viu e nos perguntamos se ela, hoje, está viva ou morta”. Ao que o rei respondeu de maneira lacônica: “Por acaso você mandou aqui um oficial dos seus, que conheça sua irmã, que poderia falar com ela e a identificar?”

Todas essas mulheres ficavam sob a vigilância de um diretor, que era ao mesmo tempo chefe do harém e primeiro-preceptor das crianças, assistido por um adjunto e por supervisores, encarregados da disciplina interna; sem contar os muitos escribas, guardas, inspetores e empregados subalternos, acompanhados por artesãos e domésticos, e os numerosos camponeses destinados à exploração dos domínios.


Servas do faraó, John Collier

O harém de Mi-our, um pouco afastado de Mênfis, próximo ao Baixo Egito, gozava de uma situação ideal às margens do lago Qaroun: um local propício para a pesca e para a caça, lazeres particularmente apreciados pelo faraó e seu círculo. Além das construções de habitação e serviço, da necrópole, do porto e do templo, a instituição possuía muitas cabeças de gado e vastas terras, cujos frutos permitiam alimentar a população de Mi-our. Segundo informações fornecidas por documentos contábeis, os rendimentos das peixarias do Fayum revertiam para o harém, assim como os rendimentos dos ateliês de tecelagem do linho, diretamente geridos pelas mulheres. Dessa maneira, longe de se acomodarem, as esposas reais administravam e faziam com seus domínios se desenvolvessem cuidando dos produtos da agricultura, da criação, da pesca e da tecelagem, controle da cobrança de impostos, e ainda a supervisão das fábricas de objetos pessoais como, perfumes, faiança, jóias.

Os vestígios das habitações de Mi-our foram examinados pela equipe britânica do egiptólogo Ian Shaw, porém são menos expressivos que os de Malgatta, o palácio de Amenófis III em Tebas Oeste, e o de Tell-el-Amarna, a capital de Akhenaton, dois centros refinados do Novo Império. Situados em amplos edifícios com salas cujo teto era sustentado por colunas, os núcleos de habitação eram instalados em meio a suntuosos jardins, de forma quadrada ou retangular, eles se organizavam em torno de um lago central onde patos e peixes se divertiam; o cultivo de flores, com os quais as mulheres confeccionavam guirlandas e buquês, era feito nas margens do lago ou em canteiros organizados nas proximidades, enquanto as árvores, dispostas de maneira geométrica, conferiam à composição uma sensação de harmonia e plenitude. Em volta do lago, quiosques permitiam aos ocupantes respirar o ar puro ao cair da noite. As meninas conversavam, misturando suas risadas aos sons das aves selvagens, enquanto suas irmãs mais velhas disputavam uma partida de senet – um dos passatempos  favoritos dos egípcios -, jogo que se joga a dois e se assemelha muito ao nosso jogo de damas.

Nos apartamentos, protegidos do calor graças a empregados encarregados de aspergi-los regularmente, piso e paredes exibiam pinturas de papiros e lótus emergindo da água, de onde patos e aves selvagens alçavam vôo assustados por veadinhos. Esses cenários bucólicos eram propícios à prática das artes: em um ou outro cômodo, meninas aprendiam canto, dança ou algum instrumento musical, em particular a harpa, o alaúde e a lira.

As mulheres viviam para sua beleza – uma das preocupações diárias mais comuns nos haréns -, escolhendo com cuidado perfumes, cosméticos, maquiagem, jóias e perucas. Em 1889, sempre em Mi-our, Flinders Petrie relata em seu caderno de registros que “grandes quantidades de pérolas que eram usadas em colares podiam ser recolhidas nas escavações da cidade”. As jóias representavam de fato 40% das coletas realizadas no sítio. Quanto ao palácio de Malgatta, este revelou uma coleção excepcional de objetos pessoais utilizados pelas esposas e princesas de Amenófis III, que se caracterizava por uma variedade e um refinamento extremo: espátulas para maquiagem em madeira ou marfim, algumas com a forma de uma nadadora segurando um pato, de uma jovem carregando uma jarra, uma menina colhendo flores de lótus ou ainda tocando lira ou tambor; ânforas de perfume ou de ungüentos, estojos de maquiagem e frascos em faiança ou de vidro colorido, às vezes com a efígie das divindades da casa (Bes ou Thoueris); pentes enfeitados com animais selvagens ou peixes; espelhos de bronze com a silhueta de Hator, deusa da beleza, moldada no cabo; caixinha de jóias envernizada, incrustrada de pedras semipreciosas, de cornalina ou lápis-lazúli... Cuidados particulares eram tomados com a maquiagem: no rosto e nos lábios, as mulheres aplicavam uma pasta colorida, num tom entre o ocre e o vermelho, e uma maquiagem preta ou verde tornava o contorno dos olhos amendoados mais expressivos.

Não longe dali, em um lugar silencioso, as crianças escutavam com atenção as aulas e os conselhos dados por suas amas e preceptores – muitas vezes militares em fim de carreira. Esse local chamava-se kep: uma instituição supervisionada pela primeira-dama do harém, a grande esposa do rei – assistida pelas esposas secundárias -, que acolhia ao mesmo tempo príncipes e princesas, jovens nobres e, em raras circunstâncias, crianças desfavorecidas.

O ensinamento de Khety dá a palavra a um camponês cujo filho, Pepy, fora enviado para estudar com as crianças reais, oportunidade raríssima na sociedade egípcia: “Quero que gostes dos escritos mais do que de tua própria mãe, quero que suas belezas penetrem em teu espírito”. Ensinavam-se ali a leitura e a escrita – hieroglífica e hierática -, a gramática e a conjugação, o cálculo e a geometria, as línguas estrangeiras, como também as leis e as regras de boa conduta que regem a sociedade.

Enfim, nas cozinhas, agitavam-se serviçais encarregados de preparar as refeições dessa enorme família. Era ainda a grande esposa do rei que geria a operação, principalmente quando o faraó anunciava a sua intenção de passar alguns dias nos harém. No dia a dia, café da manhã e almoço eram feitos individualmente, dependendo das ocupações de cada um. Apenas o jantar reunia as várias famílias à volta de pratos que devoravam com prazer: carnes grelhadas – ganso ou carne de boi em particular -, peixes secos, legumes e frutas diversas (favas, cebolas, lentilhas, alho, uvas, tâmaras, figos etc.) e laticínios. Tudo isso acompanhado por todo tipo de pão, salgados ou não, e bebidas (cerveja e vinho essencialmente).

Nesses haréns transformados em verdadeiras unidades econômicas totalmente independentes, uma vida autônoma se organizava, longe do tumulto do Vale do Nilo. Ignora-se que contatos efetivos essas estruturas mantinham com o resto da sociedade egípcia: muito provavelmente uma mulher que cruzasse a porta de um harém por decisão real, fosse ela de origem estrangeira, plebéia ou principesca, não sairia jamais, exceto para ser enterrada na necrópole vizinha, como ocorria em Mi-our. 

Aude Gros. A dura vida das joias do faraó. In: História Viva Grandes Temas. Nº 46, p. 68-73.

NOTA: O texto "A vida nos haréns do faraó" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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