Passatempo no Egito Antigo, Lawrence Alma-Tadema
Nascido no Antigo Império (de
Em Mi-our (atual Medinet
el-Gourob, na entrada do Fayum), no harém criado sob o reinado de Tutmés III
(de 1504 a
1450 antes da nossa era) – o mais importante até o fim da época raméssida -,
conviviam mulheres de origem e status diferentes: a rainha e as esposas, com
uma hierarquização possível entre a grande esposa do rei e as outras; as
princesas, conhecidas como “filhas do rei”; as “irmãs do rei”, termo utilizado
também para designar as meias-irmãs, primas, sobrinhas e tias; as concubinas e
as favoritas – as mais velhas sendo chamadas de “conhecidas do rei”, “nobres do
rei” ou “ornamentos do rei” e, as mais jovens, de “belas do palácio” -, cuja glória
durava o tempo de um capricho. Estas últimas usavam uma coroa muito particular
adornada com flores de caules retos com um diadema incrustrado, e, enfim, as
amas, encarregadas das crianças, meninos e meninas, que moravam no harém.
O harém acolhia não apenas egípcias,
mas também belas princesas estrangeiras, esposas oferecidas por um potentado
asiático ao final de um tratado diplomático, como prova de amizade ou para
selar uma aliança. No ano 10 do seu reino, Amenófis III (em torno de 1382 a 1344 a .C.) casou-se com
Gilukipa, filha do rei de Naharina (no nordeste da Síra): ela chegou ao Egito à
frente de uma escolta de 317 mulheres de seu séqüito, que foram instaladas nos
apartamentos do harém. Ninguém nunca ficou sabendo o que aconteceu com elas.
Kadash-man-Enlil, rei da Babilônia, queixou-se a Amenófis III: “Você me pede
agora minha filha em casamento, mas minha irmã que meu pai lhe deu estava aí,
com você, ninguém a viu e nos perguntamos se ela, hoje, está viva ou morta”. Ao
que o rei respondeu de maneira lacônica: “Por acaso você mandou aqui um oficial
dos seus, que conheça sua irmã, que poderia falar com ela e a identificar?”
Todas essas mulheres ficavam sob
a vigilância de um diretor, que era ao mesmo tempo chefe do harém e
primeiro-preceptor das crianças, assistido por um adjunto e por supervisores,
encarregados da disciplina interna; sem contar os muitos escribas, guardas,
inspetores e empregados subalternos, acompanhados por artesãos e domésticos, e
os numerosos camponeses destinados à exploração dos domínios.
Servas do faraó, John Collier
O harém de Mi-our, um pouco
afastado de Mênfis, próximo ao Baixo Egito, gozava de uma situação ideal às
margens do lago Qaroun: um local propício para a pesca e para a caça, lazeres
particularmente apreciados pelo faraó e seu círculo. Além das construções de
habitação e serviço, da necrópole, do porto e do templo, a instituição possuía
muitas cabeças de gado e vastas terras, cujos frutos permitiam alimentar a
população de Mi-our. Segundo informações fornecidas por documentos contábeis,
os rendimentos das peixarias do Fayum revertiam para o harém, assim como os
rendimentos dos ateliês de tecelagem do linho, diretamente geridos pelas
mulheres. Dessa maneira, longe de se acomodarem, as esposas reais administravam
e faziam com seus domínios se desenvolvessem cuidando dos produtos da
agricultura, da criação, da pesca e da tecelagem, controle da cobrança de
impostos, e ainda a supervisão das fábricas de objetos pessoais como, perfumes,
faiança, jóias.
Os vestígios das habitações de
Mi-our foram examinados pela equipe britânica do egiptólogo Ian Shaw, porém são
menos expressivos que os de Malgatta, o palácio de Amenófis III em Tebas Oeste,
e o de Tell-el-Amarna, a capital de Akhenaton, dois centros refinados do Novo
Império. Situados em amplos edifícios com salas cujo teto era sustentado por
colunas, os núcleos de habitação eram instalados em meio a suntuosos jardins,
de forma quadrada ou retangular, eles se organizavam em torno de um lago
central onde patos e peixes se divertiam; o cultivo de flores, com os quais as
mulheres confeccionavam guirlandas e buquês, era feito nas margens do lago ou
em canteiros organizados nas proximidades, enquanto as árvores, dispostas de
maneira geométrica, conferiam à composição uma sensação de harmonia e
plenitude. Em volta do lago, quiosques permitiam aos ocupantes respirar o ar
puro ao cair da noite. As meninas conversavam, misturando suas risadas aos sons
das aves selvagens, enquanto suas irmãs mais velhas disputavam uma partida de senet – um dos passatempos favoritos dos egípcios -, jogo que se joga a
dois e se assemelha muito ao nosso jogo de damas.
Nos apartamentos, protegidos do
calor graças a empregados encarregados de aspergi-los regularmente, piso e
paredes exibiam pinturas de papiros e lótus emergindo da água, de onde patos e
aves selvagens alçavam vôo assustados por veadinhos. Esses cenários bucólicos
eram propícios à prática das artes: em um ou outro cômodo, meninas aprendiam
canto, dança ou algum instrumento musical, em particular a harpa, o alaúde e a
lira.
As mulheres viviam para sua
beleza – uma das preocupações diárias mais comuns nos haréns -, escolhendo com
cuidado perfumes, cosméticos, maquiagem, jóias e perucas. Em 1889, sempre em Mi-our,
Flinders Petrie relata em seu caderno de registros que “grandes quantidades de
pérolas que eram usadas em colares podiam ser recolhidas nas escavações da
cidade”. As jóias representavam de fato 40% das coletas realizadas no sítio.
Quanto ao palácio de Malgatta, este revelou uma coleção excepcional de objetos
pessoais utilizados pelas esposas e princesas de Amenófis III, que se
caracterizava por uma variedade e um refinamento extremo: espátulas para
maquiagem em madeira ou marfim, algumas com a forma de uma nadadora segurando
um pato, de uma jovem carregando uma jarra, uma menina colhendo flores de lótus
ou ainda tocando lira ou tambor; ânforas de perfume ou de ungüentos, estojos de
maquiagem e frascos em faiança ou de vidro colorido, às vezes com a efígie das
divindades da casa (Bes ou Thoueris); pentes enfeitados com animais selvagens
ou peixes; espelhos de bronze com a silhueta de Hator, deusa da beleza, moldada
no cabo; caixinha de jóias envernizada, incrustrada de pedras semipreciosas, de
cornalina ou lápis-lazúli... Cuidados particulares eram tomados com a maquiagem:
no rosto e nos lábios, as mulheres aplicavam uma pasta colorida, num tom entre
o ocre e o vermelho, e uma maquiagem preta ou verde tornava o contorno dos
olhos amendoados mais expressivos.
Não longe dali, em um lugar
silencioso, as crianças escutavam com atenção as aulas e os conselhos dados por
suas amas e preceptores – muitas vezes militares em fim de carreira. Esse local
chamava-se kep: uma instituição
supervisionada pela primeira-dama do harém, a grande esposa do rei – assistida pelas
esposas secundárias -, que acolhia ao mesmo tempo príncipes e princesas, jovens
nobres e, em raras circunstâncias, crianças desfavorecidas.
O ensinamento de Khety dá a palavra a um camponês cujo filho, Pepy,
fora enviado para estudar com as crianças reais, oportunidade raríssima na
sociedade egípcia: “Quero que gostes dos escritos mais do que de tua própria mãe,
quero que suas belezas penetrem em teu espírito”. Ensinavam-se ali a leitura e
a escrita – hieroglífica e hierática -, a gramática e a conjugação, o cálculo e
a geometria, as línguas estrangeiras, como também as leis e as regras de boa
conduta que regem a sociedade.
Enfim, nas cozinhas, agitavam-se
serviçais encarregados de preparar as refeições dessa enorme família. Era ainda
a grande esposa do rei que geria a operação, principalmente quando o faraó
anunciava a sua intenção de passar alguns dias nos harém. No dia a dia, café da
manhã e almoço eram feitos individualmente, dependendo das ocupações de cada
um. Apenas o jantar reunia as várias famílias à volta de pratos que devoravam
com prazer: carnes grelhadas – ganso ou carne de boi em particular -, peixes
secos, legumes e frutas diversas (favas, cebolas, lentilhas, alho, uvas, tâmaras,
figos etc.) e laticínios. Tudo isso acompanhado por todo tipo de pão, salgados
ou não, e bebidas (cerveja e vinho essencialmente).
Nesses haréns transformados em
verdadeiras unidades econômicas totalmente independentes, uma vida autônoma se
organizava, longe do tumulto do Vale do Nilo. Ignora-se que contatos efetivos
essas estruturas mantinham com o resto da sociedade egípcia: muito
provavelmente uma mulher que cruzasse a porta de um harém por decisão real,
fosse ela de origem estrangeira, plebéia ou principesca, não sairia jamais,
exceto para ser enterrada na necrópole vizinha, como ocorria em Mi-our.
Aude Gros. A dura vida das joias do faraó. In: História Viva Grandes Temas. Nº 46, p. 68-73.
Aude Gros. A dura vida das joias do faraó. In: História Viva Grandes Temas. Nº 46, p. 68-73.
NOTA: O texto "A vida nos haréns do faraó" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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