Quem já não sonhou com um mundo diferente, no qual fosse possível o máximo de liberdade com o máximo de solidariedade? Os anarquistas acreditavam, e acreditam ainda, que essa esperança não é uma utopia: ela pode se tornar realidade.
Eles gostam de dizer que o ideal existe desde a Antiguidade, ou seja, desde que há luta pela liberdade. Mas a doutrina só se tornaria movimento organizado no século XIX, na Europa. Na pauta, a crítica à sociedade industrial, aos males do capitalismo e à sua indiferença diante do sofrimento humano.
A palavra anarquia, usada frequentemente para designar desordem e confusão, vem do grego e significa "sem governo", isto é, o estado de um povo sem autoridade constituída. Do mesmo horizonte de significado nasce o anarquismo, doutrina política que prega que o Estado é nocivo e desnecessário e que existem alternativas viáveis de organização voluntária. Para a verdadeira libertação da sociedade seria necessário, ainda, destruir o capitalismo e as igrejas. Os anarquistas opunham-se à participação nas eleições e aos parlamentos, pois consideravam a democracia liberal uma farsa, negando qualquer forma de organização hierarquizada.
A nova sociedade seria uma rede de relações voluntárias entre pessoas livres e iguais, em equilíbrio natural entre liberdade e ordem não imposta, mas garantida pela cooperação voluntária. Eliminados o Estado centralizado, o capitalismo e as instituições religiosas, afloraria a verdadeira natureza humana e as pessoas voltariam a assumir suas responsabilidades comunitárias. O futuro anarquista seria feito de um conjunto de pequenas comunidades descentralizadas, autogeridas e federadas, que a livre experimentação modificaria pouco a pouco.
O francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi o primeiro a organizar as ideias do anarquismo. Em seu texto O que é a propriedade? (1840), escreveu que a política era a ciência da liberdade, que o governo do homem sobre o homem, em qualquer forma, era opressão, e que a sociedade só atingiria a perfeição na união da ordem com a anarquia.
Ainda no século XIX, o anarquismo ganhou adeptos em todo o mundo, reconhecendo-se em um projeto internacional comum, embora em cada país os trabalhadores utilizassem a linguagem e a ação do anarquismo como resposta a seus problemas e preocupações específicos. O russo Mikhail Bakunin (1814-1876) defendia que a futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação. Bakunin e outros anarquistas rivalizaram com Karl Marx, sugerindo que o socialismo seria tão despótico quanto outras formas de Estado. Mais tarde, Emma Goldman (1869-1940), judia russa emigrada para os Estados Unidos, famosa por sua militância, fez duras críticas aos rumos dados pelos bolcheviques à Revolução Russa em função da centralização estatal e do autoritarismo, que teriam paralisado a iniciativa e o esforço individuais.
Os anarquistas russos, em aberta oposição ao que consideravam uma ditadura distante dos ideias libertários, passaram a ser perseguidos e suas atividades foram proibidas já poucos meses após a Revolução de Outubro. Em 1920, grande parte dos membros do Exército Revolucionário Insurrecional, liderado pelo anarquista Nestor Makhno, foi fuzilada pela Cheka, a polícia responsável por reprimir atos considerados contrarrevolucionários. Em poucos anos, os anarquistas da Rússia foram quase todos mortos, aprisionados, banidos ou reduzidos ao silêncio.
Símbolo anarquista. Liftarn
Diversos outros pensadores influenciaram libertários de várias partes do mundo. A ideia de ajuda mútua como requisito central para a evolução da ética da humanidade tornou-se referência através dos escritos do russo Piotr Kropotkin (1842-1921). Na resistência contra o golpe militar de Francisco Franco na Espanha da Guerra Civil, o operário Buenaventura Durruti (1896-1936) afirmava que os anarquistas traziam um novo mundo em seus corações. Victor Serge (1890-1947), nascido na Bélgica, de família russa e polonesa, escreveu em suas memórias que o anarquismo tomava os militantes inteiramente, transformava suas vidas, porque exigia uma coerência entre os atos e as palavras. Para muitos, tinha um caráter de conversão quase religiosa.
Os anarquistas incentivavam a luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista através do apelo para diversas formas de ação, como greves, boicotes, comícios, passeatas, fundação de sindicatos, denunciando o que consideravam ações repressoras da burguesia e do Estado. Embora tenha conquistado corações e mentes em diferentes classes sociais, o anarquismo se difundiu, sobretudo entre os trabalhadores pobres urbanos, e foi um elemento importante em seu processo de auto-organização e agregação social, recreativa e cultural. A circulação das ideias anarquistas se dava por meio de campanhas, comícios, pela imprensa e em publicações, mas também com a organização do tempo livre em eventos como teatro, piqueniques e festas. Assim, os anarquistas transformavam, ou ao menos abalavam, uma mentalidade consolidada em vários países, segundo a qual trabalhadores pobres deviam ficar fora da política.
Um dos livrinhos mais famosos de propaganda anarquista foi Entre camponeses, diálogo sobre a anarquia, do italiano Errico Malatesta (1853-1932), publicado em Florença, em 1884. Nele se lia a conversa entre dois camponeses, Giorgio, um jovem anarquista, e Beppe, um velho amigo de seu pai. Beppe tenta dissuadir Giorgio, argumentando que a política era coisa para os senhores, e que o trabalhador tinha que pensar em trabalhar e fazer o bem, assim viveria tranquilo e na graça de Deus. No fim, é o velho Beppe quem sai convertido ao anarquismo. Malatesta nasceu no sul da Itália, em uma família rica. Coerente com suas ideias, distribuiu as terras que herdou aos camponeses. Foi um dos anarquistas mais influentes em todo o mundo, inspirando inúmeros militantes e trabalhadores. Por isso foi duramente perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, desde sua ascensão ao poder em 1922.
Embora os anarquistas concordassem com os objetivos que queriam atingir, eles divergiam muito sobre os meios para alcançá-los. Na década de 1890 houve grandes atos de violência dos anarquistas no cenário mundial: foram mortos um rei na Itália, uma imperatriz na Áustria, um primeiro-ministro na Espanha, um presidente da França e um dos Estados Unidos.
Mas a maioria dos anarquistas recusou essas ações individuais e violentas. Alguns tentaram experimentar a organização libertária formando pequenas comunidades autogeridas que, em geral, tiveram vida curta e difícil. Outros organizaram insurreições. Muitos se dedicaram à formação e à participação nos sindicatos de trabalhadores, que consideravam um espaço privilegiado para a difusão da ideia anarquista e um exercício importante de autogestão. Houve os que investiram na educação, criando escolas alternativas que visavam formar crianças autônomas, e na arte engajada, como o teatro popular e a literatura com conteúdos políticos.
No Programa Anarquista, escrito por Malatesta em 1903, ele argumentava que os anarquistas queriam mudar radicalmente o mundo, substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidariedade, a busca exclusiva do próprio bem-estar pela cooperação, a opressão pela liberdade. "Queremos que a sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem-estar possível, o maior desenvolvimento possível, moral e material. Desejamos para todos pão, liberdade, amor e saber", escreveu Malatesta na conclusão do programa.
Já nos anos 1920 e 1930, o movimento anarquista perdeu força, com o surgimento dos partidos comunistas e o aumento da presença do Estado nas sociedades ocidentais, fechando o ciclo do chamado anarquismo histórico. Na Espanha, em Aragão e na Catalunha, os anarquistas conseguiram realizar uma verdadeira revolução durante a guerra civil: operários e camponeses se apoderaram das terras e das indústrias, estabeleceram conselhos de trabalhadores e fizeram a autogestão da economia. Essa coletivização teve considerável sucesso por algum tempo e, embora derrotada, foi a experiência anarquista mais importante da história e ficou na memória dos libertários como a prova concreta de que a anarquia era possível.
A partir dos anos 1960, quando se confirmaram suas previsões sobre os perigos da centralização do poder nos países socialistas, houve uma retomada do anarquismo em todo o mundo. Suas ideias libertárias influenciaram movimentos sociais, como o estudantil, o feminista, o ecológico e o hippie, penetrando com força também nas universidades. Em tempos de contestação do capitalismo e da capacidade dos governos de representar suas sociedades, os ideais anarquistas parecem mais vivos do que nunca.
Edilene Toledo. Sonhar também muda o mundo. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8 / nº 95 / Agosto 2013. p. 17-21.
NOTA: O texto "Anarquismo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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