Podemos olhar pelo buraco da
fechadura para ver como nossos antepassados se relacionavam? De fechaduras,
não! Elas custavam caro e o Brasil, na época da colonização, era pobre.
Podemos, sim, enxergar através das frestas dos muros, das rachaduras das
portas. Por ali se via que a noção de privacidade estava sendo “construída”,
estava em gestação. E construída em meio a um ambiente de extrema precariedade
e instabilidade. Em terras brasileiras, colonos tiveram que lutar, durante
quase três séculos, contra o provisório: o material, o físico, o político e o
econômico. “Viver em colônias” – como se dizia então – era o que faziam.
Sobreviviam... E sobreviviam sob o signo do desconforto e da pobreza. Habitavam
casas de meias paredes cobertas de telhas ou sapê, com divisão interna que
pouco ensejava a intimidade. Nelas faltavam móveis que oferecessem algum
conforto, ou boa iluminação, devido à falta de vidros. Instaladas em vilarejos
sem arruamento, ali os animais domésticos pastavam à solta e havia lixo em toda
parte. A água, esse bem mais precioso em nossos dias, só aquela de rios e poços
ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade, portanto, zero.
A noção de intimidade no mundo
dos homens entre os séculos XVI e XVIII se diferencia profundamente daquela que
é a nossa do início do século XXI. A vida quotidiana naquela época era regulada
por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter relações eróticas eram
práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava
inserido. Regras, portanto, regulavam condutas. Leis eram interiorizadas. E o
sentimento de coletividade, sobrepunha-se ao de individualidade.
Estudo de um homem nu, Auguste Jerndorff
Mas falar nesse assunto quando a
América ainda era portuguesa implica compreender o que se entendia por
privacidade há quase trezentos anos. Apenas em 1718 o conceito fará sua
aparição. E foi o dicionarista jesuíta Raphael Bluteau quem, pioneiramente,
esclareceu:
“Privado: uma pessoa que trata só
de sua pessoa, de sua família e de seus interesses domésticos.” Mais tarde, em
1798, no seu Elucidário de palavras e
termos, frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo definia que o verbete
“privido” – palavra mais tarde substituída por “privado” – designava o que
pertencia a uma particular pessoa. Quase cem anos foram necessários para que
“privado” deixasse de significar o que fosse familiar e coletivo para se
centrar no pessoal. Mas como fazer tal passagem e terras de escravidão e de pobreza
material, onde, contrariamente à Europa ocidental, não havia muita separação
entre privado e público? Como, num lugar onde todos sabiam de tudo e de todos?
Era diferente. Aqui, muitas
pessoas andavam seminuas: sobretudo índios e escravos. As regras e os ritos da
Europa não se tinham consolidado entre índios e africanos. Palavras como vergonha e pudor, recém-dicionarizadas no século XVI, continuavam ausentes dos
“vocabulários” – nome que então se dava aos glossários -, até entre
portugueses. Para os etimologistas, a palavra nasceu à época da chegada dos
lusitanos às nossas costas. Antes, pudenda
designava os órgãos sexuais, “vergonhosos”. Inicialmente associados à
pudicícia, pudor e castidade eram sinônimos. Os primeiros
dicionários deram o sentido atual ao termo, ligando-o à modéstia, decência e
civilidade. Considerado natural nas mulheres, o pudor permitia afirmar que uma
mulher nua podia ser mais pudica do que uma vestida. Isso, pois acreditava-se
que, ao despir-se, ela se cobria com as vestes da vergonha.
O pudor que se definia nos
dicionários não era um conceito espalhado na sociedade. Enquanto Isabel de
Castela, em 1504, morria de uma ferida que não quis mostrar aos médicos,
recebendo a extrema-unção sob os cobertores para não exibir nem os pés, muitos
moradores da América portuguesa vestiam-se apenas com um minúsculo pedaço de
tecido. Descobria-se, então, que existiam povos obedientes a diferentes noções
de pudor.
Ora, tais noções foram pioneiras
em esboçar a história do polimento das condutas, do crescimento do espaço
privado e dos autoconstrangimentos que a modernidade foi trazendo. Daquilo que
Michel Foucault chamou de cuidado de si; uma esfera cada vez mais definida
entre o público e o privado. Esfera capaz de afastar, de forma progressiva e profunda,
um do outro. E que conta a história do peso da cultura sobre o mundo das
sensações imediatas. Cultura que nos levou da vida em grupo ou em família para
o individualismo que é a marca de nosso tempo.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na
História do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p. 13-15.
NOTA: O texto "Noção de intimidade entre os séculos XVI e XVIII" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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