"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Mundos imaginados: utopias e distopias

Procurando na história mundial os mundos imaginados, encontraremos as previsões de sociedades ideais tão antigas quanto as primeiras expressões do pensamento humano em tradições escritas e orais e nas artes. Os desenhos mitológicos das origens dos mundos natural e humano eram explicações, provenientes da experiência do mundo e da imaginação. Incorporadas nesses mitos estavam ideias de família e vida comunitária: como as pessoas deveriam viver juntas, compartilhar recursos e escolher líderes entre si. A religião inspirou a imaginação de mundos além do reino da experiência humana, e esses mundos incorporaram a completa realização do que significava ser humano, bem como as mais terríveis provações que um ser humano podia sofrer. Seja no budismo, no cristianismo ou no islamismo, a percepção de um paraíso e de um inferno encorajou as pessoas a acreditar e praticar suas crenças como indivíduos e como membros de uma comunidade.


A idade de ouro, Lucas Cranach

Visões religiosas também inspiraram movimentos milenares que projetaram esperança em uma nova era – a chegada do milênio que conduziria a um novo mundo – e exortava os seguidores a agir para chamar a nova era. Os movimentos milenares são encontrados ao redor do mundo em muitos contextos religiosos diferentes, incluindo budistas e cristãos, assim como em numerosas tradições sincréticas. Eles surgem das diferentes condições históricas e frequentemente tornam-se violentos, como resposta à opressão social, política e econômica. Houve movimentos milenares cristãos na Europa medieval e alguns movimentos budistas na China medieval. A grande Rebelião de Taiping, na metade do século XIX, na China – resultou na morte de, talvez, 20 milhões de pessoas – aglutinou-se sob a liderança de Hong Xiuquan (1811-1854), que teve uma visão de que ele seria o irmão mais novo de Jesus Cristo, enviado por seu pai para trazer o povo chinês de volta à sua crença original em Deus e para criar um “Reino Divino da Grande Paz (Taiping)”. Índios Arawakan, do noroeste da Amazônia, seguiram um xamã indígena e líder milenar, Venancio Kamiko, durante os anos de 1850, para resistir contra o controle colonial sobre seu mundo. No Congo, um movimento milenar originou-se com as reivindicações de uma jovem garota congolesa de que ela seria Santo Antônio, na primeira década do século XVIII. Beatriz Kimpa Vita anunciou que ela veio para ensinar a verdadeira religião: os padres eram impostores, Deus e seus anjos eram negros, e o reino dos céus era próximo da pátria congolesa, onde Cristo realmente havia vivido e morrido. Sugerir uma alternativa tão radical em meio ao confronto de culturas era algo perigoso, e o fundador do movimento foi executado. Contudo, o movimento sobreviveu e tornou-se a primeira Igreja sionista africana; o nome “Sião” refere-se à cidade bíblica que era um símbolo de esperança.

Juntos, visionários religiosos, filósofos, artistas, historiadores e escritores de todo o mundo produziram visões seculares de sociedades perfeitas. Em sua obra República, o filósofo grego Platão (427-347 a.C.) descreveu o Estado ideal como uma nação governada por um rei-filósofo. O mundo material dos fenômenos, acreditava Platão, é um mundo de sombras vagamente refletidas a partir do mundo real das ideias. É esse mundo das ideias que os reis-filósofos compreendiam e no qual estavam qualificados para governar. Além do mundo das coisas e das experiências, compreendido pelos sentidos, há outro, um mundo fundamental das formas e tipos eternos. Para tudo que experimentamos por meio dos sentidos há uma essência dessa realidade imutável, independente dos “acidentes” materiais que as cercam. Os “acidentes” da vida cotidiana são transcendidos por essências e formas eternas, as quais são objetivos de conhecimento. O rei-filósofo é, por educação, senão por desejo, capaz de guiar o Estado para sair desse caos e das ilusões do mundo externo dos fenômenos sentidos para a ordem e os modelos eternos.

O filósofo chinês Confúcio, no sexto século a.C., ensinou que a sociedade ideal existiu no passado, sob o governo dos reis sábios da antiguidade. A noção do Mandato Divino, que se desenvolveu como a sansão para governar na China imperial, significava que a responsabilidade do governante era de manter a ordem do Paraíso na sociedade humana; se e quando um governante falhasse, então o Mandato era declinado para um novo imperador. O essencial para a harmonia da sociedade, para Confúcio e seus seguidores, era a realização adequada do ritual e das práticas cerimoniais elaboradas em uma compilação de textos do final do primeiro século a.C. e do século I d.C. Nesse texto, o Livro dos Ritos, a sociedade sob os reis sábios da antiguidade é retratada como uma era de “Grande Harmonia”, na qual todos tinham suas próprias tarefas e seu lugar, todos eram cuidados de acordo com suas necessidades. Esse ideal foi ressuscitado, no final do século XIX, pelo reformador chinês Kang Youwei (1858-1927), que promoveu a sociedade ideal da Grande Harmonia como algo central ao pensamento confucionista. Ele argumentou que Confúcio teria dado apoio às reformas modernas de Kang, defendendo que eles teriam vivido na mesma época.

O termo “utopia”, usado para descrever uma sociedade ideal, foi cunhado, a partir do grego, por Sir Thomas Morus, ao escrever sobre um mundo imaginário em uma ilha, Utopia (1516), onde a propriedade privada não existia e a tolerância religiosa reinava. Como muitas utopias, essa foi inspirada pelas observações do escritor sobre seu mundo contemporâneo, mas também por relatórios do “Novo Mundo”. Escrito quase um século depois da Utopia de Morus, a peça de William Shakespeare, A tempestade (1611), ocorreu em uma ilha, referida como o “bravo novo mundo”, onde “não havia necessidade de trabalho, de ricos ou de pobreza”. Para os europeus, esse Novo Mundo era um espaço virgem, um paraíso preenchido pela promessa da possibilidade humana; para os povos indígenas do Novo Mundo, a presença europeia trouxe a morte e a destruição.


Mapa: ilha de Utopia

Fazendo par com o conceito de utopia está o de distopia, o mundo imaginado oposto, de total privação e miséria. Durante muito tempo sob o domínio de escritores de ficção científica, uma das mais conhecidas distopias é a de George Orwell, em sua obra 1984 (1949), na qual o personagem principal é gradualmente privado de sua humanidade individual para ser absorvido pelo “grande irmão (Big Brother)” do Estado totalitário do século XX. O romance distópico de Aldous Huxley, Admirável mundo novo (1932), retirou seu nome da frase utilizada por Shakespeare em A tempestade, e retratou um mundo onde todas as necessidades humanas são satisfeitas e não há guerra ou pobreza, mas também não há religião, filosofia, família ou diferença cultural para enriquecer a vida humana. Drogados em soma, as pessoas da obra de Huxley escapam de qualquer coisa desagradável, incluindo emoções e memórias dolorosas. Conforme o romance de Huxley Admirável mundo novo vai sendo esclarecido por meio da retração de um mundo utópico que, na verdade, é distópico, visões de sociedades ideais – libertação do desejo, da fome e do medo – nem sempre produzem resultados desejáveis. Os avanços tecnológicos que tornaram possíveis os mundos descritos por Orwell e Huxley foram um produto da Revolução Industrial, que gerou suas próprias visões paralelas de utopia e distopia.

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 340-342.

NOTA: O texto "Mundos imaginados: utopias e distopias" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário