Banquete de William, o Conquistador. Tapeçaria de Bayeux, ca. 1080. Artista desconhecido.
Um outro objeto de metal cuja data exata de surgimento ignoramos é o garfo, pois a Última ceia – onde esperaríamos encontrá-lo – tem uma tradição iconográfica tão densa de significados simbólicos que não apenas admite variantes mínimas (e, portanto, usualmente carregados de uma mensagem precisa), como também condiciona pesadamente a iconografia dos banquetes profanos. Embora os textos assinalem o conhecimento do garfo, raramente ele aparece representado. É bem verdade que o costume geral continuou a ser aquele de comer em comum, com alguns pratos para a comida, alguns copos e algumas facas para cortar a carne. Trata-se de um dado importante para compreender a sociedade medieval, não-individualista, durante muito tempo propensa, ao contrário, a se ver como um grupo (temos o Juízo final, mas muito raramente representa-se o julgamento de uma pessoa sozinha), e indiferente às peculiaridades de cada um (até o final do século XIV, o retrato na acepção própria do termo não existe, ele é apenas verossímil e não realista).
Os homens de igreja vêem o garfo
como um instrumento de debilidade e perversão diabólica. São Pedro Damião
(1007-72) não teve nenhuma piedade da pobre princesa bizantina Teodora, casada
com o doge Domenico Selvo, que usava garfo e cercava-se de refinamento,
tentando tornar mais gentis as maneiras do Ocidente: “Não tocava os acepipes
com as mãos, mas fazia com que os eunucos lhes cortassem os alimentos em
pequenos pedaços. Depois mal os saboreava, levando-os à boca com garfos de ouro
de dois dentes.” A morte terrível da jovem mulher, cujas carnes gangrenaram
lentamente (“corpus eius computruit”),
foi vista como uma justa punição divina para tão grande pecado.
Inocêncio III (1160-1216), quando
ainda era Lotário, conde de Segni, em seu De
miséria humanae condiciones, fez a sombra da culpa pairar sobre um longo
catálogo de delícias:
O que há de mais vão do que ornamentar a mesa com toalhas decoradas,
facas de cabo de marfim, vasos de ouro, terrinas de prata, copas e copos,
crateras e bacias, tigelas e colheres, com garfos e saleiros, bastões e jarros
e caixas e leques? ... De fato, está escrito: “Quando o homem morrer não levará
consigo nada disso, e sua glória não ascenderá com ele.”
Os primeiros testemunhos iconográficos
do garfo remontam mais ou menos ao tempo da invectiva de são Pedro Damião: em
uma iluminura do Códice das leis
lombardas, do início do século XI, o rei Rotaris empunha um garfo à mesa;
usavam-no igualmente os educados comensais de duas outras iluminuras mais ou
menos contemporâneas, tiradas de um manuscrito de De universo, de Rábano Mauro, para abrir a longa exemplificação dos
vários tipos de refeições, alimentos e bebidas e para ilustrar o capítulo sobre
os cidadãos. “Cives vocati, quod in unum
coentus vivant, ut vita communis ornator Fiat et tutior” (“Os cidadãos –
explica o autor – são chamados assim a fim de que vivam reunidos em conjunto e
para que sua vida em comum seja mais agradável e segura com todos juntos”); o
iluminador quis ressaltar que o rito social da refeição é um fator de
civilidade e que os utensílios, entre os quais os garfos, exemplificam o que há
de agradável na vida urbana.
Banquete medieval. Miniatura do Livro das horas do Duque de Berry. Mês de janeiro, 1412-1416, Irmãos Limbourg.
Já no século XII, conheço apenas
uma representação da Última ceia na
qual um garfo solitário encontra-se excepcionalmente pousado sobre a brancura
da toalha: está em uma das iluminuras do Jardim
das delícias, da abadessa Herrad de Landsberg, do convento de Hohenburg. Não
sabemos se o acréscimo foi uma orientação pessoal da comitente, originada pelo
hábito das boas maneiras; em todo caso, assemelha-se muito aos verdadeiros
garfos medievais que chegaram, sabe-se lá por meio de que peripécias, ao Museu
Horne em Florença.
O uso do garfo generalizou-se par
e passo com a difusão de um alimento tipicamente medieval que é até hoje um
pilar da cozinha italiana – a massa -, pois era o instrumento adequado para
enrolar os fios quentes e escorregadios.
FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros,
bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007. p. 107-110.
NOTA: O texto "As boas maneiras à mesa: o uso do garfo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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