"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos
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segunda-feira, 3 de junho de 2013

África Negra 3: A expansão do islã. Zimbábue. Oyo e Benin. Rozvi. Bunioro. Buganda. Chwezi. Masai

Mercado masai, Martin Bulinya, Quênia

A expansão muçulmana, que envolvia inicialmente a conquista e, mais tarde, a conversão de povos africanos ao islã, teve início no século VII, com a conquista do Egito e da Cirenaica pelo Califado Árabe. Cem anos depois, todo o litoral africano do Mediterrâneo (e a Espanha) fazia parte do mundo islâmico. Gradativamente eles avançaram para o sul, através do Deserto do Saara, convertendo os tuaregues. Do século XI ao XII, a parte ocidental e a central do Sahel e os litorais do Mar Vermelho e da Somália já haviam sido dominados ou convertidos, enquanto as cidades comerciais árabes do Oceano Índico, desde o norte de Moçambique, já constituíam baluartes islâmicos. Posteriormente, ao longo dos séculos seguintes, a religião muçulmana ganhou terreno no hinterland do Golfo da Guiné (numa linha paralela à costa que parte do sul do Senegal até o centro da Nigéria e Tchad), no Vale do Nilo (centro do Sudão), no litoral do Mar Vermelho (Eritréia) e do Oceano Índico, atingindo parte do norte de Moçambique e de Madagascar.

A importância desse processo é tanto de ordem civilizacional como internacional, pois afetou profundamente as formas de organização social e econômica, bem como a inserção política e econômica dessas regiões. A Europa deixou de ser a única referência, como o Oriente se tornando um polo de atração. Além das peregrinações a Meca e da universalização da língua e da cultura árabes, formaram-se novos vínculos identitários e fluxos internacionais que abarcaram boa parte da África Negra.


A dança, Martin Bulinya, Quênia


No tocante à grande migração africana, por volta do ano 400, os primeiros agricultores da Idade do Ferro que falavam línguas bantas ocuparam grande parte da África Oriental e da Meridional de forma esparsa e irregular. Esses povos preferiam zonas abundantes em água, sugerindo que sua economia se baseava essencialmente no cultivo de inhame e sorgo, na pesca, na caça e na criação de pequenos animais domésticos.

Foi a partir do século X que os comerciantes árabes estabeleceram-se na África Oriental, aprenderam as línguas locais e tornaram-se intermediários, comprando mercadorias dos africanos e repassando-as aos comerciantes marítimos. No século XI, as guerras na Pérsia e na Arábia forçaram muitos árabes a ocuparem definitivamente áreas da África Oriental. A miscigenação cultural e o casamento desses árabes com mulheres africanas locais geraram, algum tempo depois, uma nova língua, o suaíli, basicamente uma língua banta, intercalada com muitas palavras árabes, que ainda hoje é falada em partes da África Oriental, sendo língua oficial da Tanzânia e do Quênia.


Três adultos e duas crianças masai, Moisés Wanyuki

Enquanto os árabes ocupavam Kilwa, na costa oriental, outra cidade banta estava em construção na parte sudeste africana. O Grande Zimbábue tornou-se forte ponto de comércio no Oceano Índico devido, em parte, ao ouro e ao marfim do interior africano, mas também do cobre no Congo (Katanga) e da Zâmbia, em um tráfico tipicamente intra-africano. Os povos de língua banta começaram a se estabelecer em torno do planalto do Zimbábue.

Por volta de 1300, já havia uma muralha, com aproximadamente dez metros de altura, erguida como proteção a toda a área. Aproximadamente 10 mil pessoas viviam fora da muralha de pedra da Grande Zimbábue. Alguns eram pastores, outros artesãos e também escultores e tecelões, pois a matéria-prima (algodão, ouro, cobre, madeira e pedra) era abundante. No entanto, os comerciantes eram fundamentais nessa dinâmica, pois levavam ouro, cobre e marfim para a costa oriental. O ouro era obtido dos povos que viviam ao sul, e o cobre, dos povos ao norte da Grande Zimbábue. Foi justamente esse comércio que tornou a região um dos reinos mais poderosos no século XIV. Contudo, sem explicação plausível, em meados do século XV o Grande Zimbábue foi incendiado e abandonado.


Dança tradicional masai, Quênia. 
Foto: Dmitri Markine

Na Costa da Guine, os reinos que se beneficiaram com o comércio de escravos, já no contexto da expansão europeia em direção à costa africana, foram os de Oyo e Benin. Mais para o oeste, o Reino Ashanti também se desenvolveu progressivamente durante os séculos XV e XVI. O Rei Opoku Ware organizou um sólido sistema de impostos, com uma burocracia administrativa eficiente. No final do século XIX, porém, o império começou a enfraquecer, envolvendo-se em guerras com povos do litoral e batalhas com os britânicos, entre 1807 e 1901. No final dos conflitos, os britânicos assumiram o controle do Império Ashanti.

Oba de Benin, Giulio Ferrario

O desejo britânico de acabar com o tráfico de escravos se baseava na perspectiva de reorganizar a produção e o comércio africano, com vistas a outras exportações, aumentar a atividade missionária e impor a jurisdição do governo britânico sobre propriedades que tinham pertencido a comerciantes britânicos. Essas ações levaram o Estado britânico a assumir a soberania de certos territórios africanos, considerados estratégicos por eles.


Homem masai, Steve Pastor

Já os portugueses chegaram à costa oriental africana, e, na década de 1530, enviaram grupos para subir o Rio Zambeze e descobrir de onde vinha o ouro vendido pelos suaílis. Acabaram por estabelecer ligações comerciais com o grande Império Monomotapa, no interior do continente, responsável por boa parte do comércio interno africano.

Mas os portugueses foram impedidos de continuar adentrando no continente africano por um líder chamado Dombo, rico proprietário de gado e soberano do Império Rozvi. Entre 1684 e 1696, Dombo e seu exército lutaram contra os portugueses e os expulsaram do planalto do Zimbábue. O Império Rozvi tinha sua capital em Khami e, após um período de prosperidade, chegou ao fim na década de 1830, devido a uma invasão de povos guerreiros do sul da África, os nguni. Essas guerras se espalharam por toda a África Central e Meridional, durando mais de 15 anos. Esses conflitos internos ficaram conhecidos como o Mfecane ("época da aniquilação").


Mulher masai, William Warby

Mais ao norte, os povos em torno dos lagos da África Oriental escaparam do Mfecane. Os dois reinos mais poderosos eram o Bunioro (às margens do Lago Alberto) e Buganda (Lago Vitória). Bunioro foi o primeiro reino a tornar-se independente na região. Sua principal atividade econômica era a criação de gado e havia também a produção de sal. Durante os séculos XVI e XVII, o exército bunioro fez muitos ataques contra os povos vizinhos, tomando seu gado e sua terra, além de obrigá-los a tornarem-se vassalos e a pagar tributos ao rei. Já no século XIX surgiu o primeiro opositor ao Reino dos Bunioro, com a ascensão do Reino de Buganda, de aproximadamente 500 mil habitantes. Buganda também tinha ligações com comerciantes árabes na costa oriental e deles comprava armas de fogo, munições, tecidos de algodão, contas e produtos de vidro.

Há ainda dois povos importantes. O povo chwezi chegou, no século XIV, próximo aos lagos da África Oriental vindo do norte. Eram pastores de gado e introduziram na região a ideia de centralização da autoridade em um único governante ou rei. Também incentivaram o plantio de café e seu reino durou duzentos anos. O outro grupo era o povo nômade masai, que vive ainda hoje na Tanzânia e no Quênia. No século XVI, era um grupo pequeno, mas no século XIX sua população havia crescido consideravelmente. As sociedades que se desenvolveram no continente africano tornaram-se gradativamente complexas e diversificadas, da mesma forma que as relações das diferentes regiões com o mundo exterior.


Mulher e criança masai, Jack-z

VISENTINI, Paulo Fagundes. História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 36-40.

domingo, 2 de junho de 2013

África Negra 2: As civilizações africanas e os Estados antigos. Egito. Axum. Gana. Mali. Songhai

Representação de asiáticos (detalhe). Tumba de Khnoumhotep II

[...] o Egito abrigou a primeira grande civilização surgida na África, embora fosse muito diferente das outras regiões africanas. Além das terras férteis, a região possuía uma importância estratégica fundamental ao situar-se como eixo de ligação entre o continente africano, a Ásia e o mundo mediterrâneo. Desde muito cedo, a fertilidade das terras egípcias fazia com que os agricultores pudessem produzir muito além de suas necessidades. No entanto, é importante considerar as origens do progresso alcançado pelos egípcios.


Campo de Hotep

Esses grupos, que até então viviam de forma dispersa e desorganizada, sentiram a necessidade de organizar-se. As colheitas, cada vez mais abundantes, aumentaram ainda mais o crescimento demográfico. A demarcação das terras foi resultado desse desenvolvimento, atividade na qual se ocupavam chefes, sacerdotes e seus servidores. A medição dessa rica e fértil terra fez surgir a agrimensura e a profissão de escriba. Da mesma forma, foram dados os primeiros passos em direção ao cálculo e à escrita.


Ordenhando uma vaca (modelo funerário). XIIª dinastia. Museu de Belas-Artes de Lyon. Foto: Rama

As lutas internas e as consequentes trocas culturais e biológicas que mesclaram os povos em volta do Nilo deram origem ao desenvolvimento de uma grande civilização. A utilização dos metais certamente ampliou o poder dos chefes e a capacidade, do ponto de vista militar e diplomático, de superar os inimigos. Por fim, o Rei Narmer, do sul, conseguiu unificar todo o território por volta de 3100 a.C. A posição geográfica do Egito, situado entre a Ásia, o Mediterrâneo e a massa africana do sul, bem como sua capacidade de desenvolvimento, destinou a região a uma série de invasões que marcaram os reinados das diversas dinastias.


Estatueta de Osíris. Artista desconhecido. Ca. 664-332 a.C.

Outra importante civilização é a de Axum, localizada no nordeste da África, atual Etiópia, Somália, parte do Sudão e Eritréia, entre os séculos I e V. O surgimento de Axum esteve ligado à sua localização privilegiada, próxima aos antigos núcleos urbanos cuchitas, egípcios e árabes. Devido às intensas trocas culturais que a proximidade entre as regiões proporcionava, a formação étnica e cultural dessa sociedade tinha um caráter profundamente miscigenado. Todavia, sua população era majoritariamente negroide. Culturalmente, entretanto, a sociedade tinha características semitas, embora reelaborada. Na interação entre o chifre da África e o sudoeste da Península Arábica formou-se o "reino do insenso", produto intensamente exportado para os antigos centros civilizacionais.

Entre os séculos III e IV, a civilização de Axum adquiriu caráter imperial, impondo-se à força sobre os vizinhos da região nordeste da África, em particular sobre Meroé, capital do reino Kush entre os séculos VII e IV a.C., e sobre a Arábia Meridional. A expansão de Axum permitiu-lhes assumir o controle de uma vasta extensão de terras cultiváveis até o Mar Vermelho, e a ocupar também uma posição intermediária no comércio marítimo do Índico, entre os impérios do Oriente (chineses, mongóis e hindus) e o Império Romano, então em decadência.

Assim, além das conexões que ligavam o litoral norte da África à Europa e ao Levante (litoral do Oriente Médio) através do Mar Mediterrâneo, havia os fluxos norte-sul através do Vale do Nilo e os do Mar Vermelho e os do leste-oeste, por meio do Oceano Índico. Navegadores árabes, persas, indianos e malaios (até chineses, em uma ocasião) frequentaram as costas da África Oriental por muitos séculos. Esses comerciantes traziam e levavam mercadorias, influências culturais e conhecimentos que, de várias maneiras, conectavam a África ao Extremo Oriente.

Na África Ocidental surgiu uma série de reinos de população negra, cuja base econômica estava no controle das rotas comerciais transaarianas. A antiga Costa do Ouro, atual Gana, deve seu nome moderno ligado ao de um antigo império que dominou a África Ocidental durante o período que corresponde à Idade Média europeia. O Reino de Gana ficava a muitos quilômetros ao norte do atual, entre o Deserto do Saara e os rios Níger e Senegal.

O antigo Reino de Gana foi provavelmente fundado durante os anos 300. Desde essa data até 770, seus governantes constituíram a Dinastia dos Magas, uma família berbere, apesar de o povo ser constituído por negros das tribos Soninque. Em 770, os Magas foram derrubados pelos Soninques, e o império expandiu-se amplamente sob o domínio de Kaya Maghan Sisse, que governou por volta de 790. A capital de Gana, Kumbi Saleh, tinha uma população com cerca de 15 mil pessoas, parte das quais muçulmanas, que participavam ativamente do comércio transaariano.

A maior parte da população de Gana era agricultora. Entretanto, o reino enriqueceu graças à sua localização, no extremo sul da rota comercial do Saara. Os berberes Sanhaja aprenderam a utilizar o camelo, que foi introduzido da Ásia a partir do Egito, e estabeleceram uma rota transaariana que ligava o Marrocos a Gana. No início, eles traziam sal e trocavam por ouro na base de um peso equivalente. A essa altura, o Reino de Gana passou a ser reconhecido como uma região extensamente rica em ouro. Gana atingiu o máximo de sua glória durante os anos 900 e atraiu a atenção dos árabes. Depois de muitos anos de luta, a Dinastia dos Almorávidas berberes subiu ao poder, embora não o tenha conservado durante muito tempo. O reino entrou em declínio e, em 1240, foi destruído pelo povo de Mali.

O Império de Mali deu início ao seu desenvolvimento como um pequeno Estado chamado Kangaba. Em 1235, um guerreiro chamado Sundiata tornou-se soberano e fundou o império. Sundiata construiu uma nova capital em Niani e conquistou territórios ao sul, onde havia minas de ouro, e ao norte, em Tanghaza, onde existia muito sal, controlando, assim, todo o comércio transaariano. O império anexou as cidades de Timbuktu e Gao. Entre os anos de 1324 e 1326, Mansa Kankan Musa fez sua peregrinação a Meca, levando consigo aproximadamente 60 mil servos, 100 camelos e enorme quantidade de ouro, no valor aproximado de três milhões de libras. Como resultado de sua peregrinação, o Império de Mali tornou-se conhecido por todo o mundo mediterrâneo, além de ter convertido a cidade de Tumbuktu, em 1337, em um famoso centro de estudos islâmicos.

Por volta do século XV, a Dinastia Songhai ganhou gradualmente a independência do Império de Mali. A expansão do Songhai avançou mais agressivamente com Sunni Ali, que conquistou o Mali em 1471. A organização de Songhai era mais elaborada que a de Mali. Askia Mohammed criou um exército profissional, o que melhorou a qualidade dos guerreiros e libertou o povo para a produção agrícola, artesanal e comercial ao reduzir os tributos cobrados da população.

Os reinos africanos da região se baseavam no controle das minas de ouro, em sua exportação para o norte e no comércio do sal, marfim, óleos vegetais e escravos. Os songhais estavam vinculados a uma segunda rota estabelecida a partir do Saara e que atingia o Mediterrâneo através da Argélia. Uma terceira ligava o Reino de Kanem, no Lago Tchad, à Tripolitânia e, já no século XIX, mais uma foi estabelecida pela irmandade dos senussi, ligando o Reino de Wadai a Benghazi que, como Trípoli, ficavam na atual Líbia. Assim, várias rotas de caravanas ligavam a África subsaariana ao Mediterrâneo.

VISENTINI, Paulo Fagundes et alli. História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 34-36.