Rio de Janeiro, 10 de abril de 1984. Cerca de 500 mil pessoas aglomeraram-se ao longo da avenida Presidente Vargas, no centro da cidade. As atenções estão todas voltadas para um palanque armado junto a tradicional igreja da Candelária. É o maior comício da história do país. O que mobiliza tanta gente é uma reivindicação elementar: eleições diretas para presidente da República, imediatamente. Para isso seria necessário mudar a Constituição autoritária, com o Congresso aprovando a emenda do deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT).
São Paulo, 16 de abril de 1984. Mais de 500 mil pessoas concentraram-se no Vale do Anhangabaú, no centro da cidade, gritando em uníssono: "diretas-já!". O comício supera o da Candelária e reúne no palanque as mesmas lideranças de seis dias atrás: governadores de estados, presidentes de partidos de oposição ao governo do general Figueiredo, dirigentes das centrais sindicais CUT e CGT, apresentadores de TV, artistas de teatro, cinema e música.
Estas manifestações gigantescas eram a culminância de uma campanha que começara na Praça da Sé, em São Paulo, no dia 25 de janeiro daquele ano. Ignorada no início pela mais importante rede de televisão do país, a Globo, a campanha cresceu e se tornou um fato que ninguém mais poderia desconhecer. [...]
Nem todos, porém, tinham a mesma visão do que deveria acontecer depois de conquistada a eleição direta para presidente. Contemplando a multidão na avenida Presidente Vargas, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, político experiente e que estava nas salas ou vizinhanças do poder desde os anos 50, comentou:
- O que me preocupa é saber como vamos administrar isto que está aí.
Ele se referia a massa popular que se perdia de vista.
Na transição brasileira para a democracia, os setores conservadores, que sempre temem que a mobilização popular fuja ao seu controle, acabaram por dar a tônica. A passagem da ditadura à democracia político-eleitoral deveria ser feita "por cima", sem a participação como sujeitos dos que estavam "em baixo".
Apesar das impressionantes manifestações de massa ocorridas em quase todas as capitais, nos quatro primeiros meses de 1984, o Congresso Nacional não se sensibilizou inteiramente. O partido do governo, o PDS (Partido Democrático Social), manobrou para que muitos parlamentares não comparecessem à votação da emenda constitucional que restabelecia as eleições diretas para a presidência. Na madrugada de 25 de abril, a emenda Dante de Oliveira caiu. Para sua aprovação faltaram apenas 22 votos. A frustração popular foi enorme.
Estava aberto o caminho para a disputa "pelo alto", no clube fechado do Colégio Eleitoral, palco das eleições indiretas impostas pela ditadura. O deputado Ulisses Guimarães, presidente nacional do PMDB, também na cena política desde os anos 50, e que se afirmava agora como o "senhor diretas", justificou a participação nesse processo:
Nas ruas de Brasília, diante do Congresso Nacional, o povo
se manifesta e exige o restabelecimento das eleições diretas para presidente da
República. Agência Brasil.
- Perdida a batalha das diretas nas ruas, vamos continuá-la no Colégio Eleitoral. É preciso entrar no ninho da cobra para matá-la com seu próprio veneno.
O PMDB apresentou um candidato que obteve o apoio da Frente Liberal - uma dissidência do PDS de Paulo Maluf. Era o moderado Tancredo Neves. Seu vice era ninguém menos do que o principal articulador da derrubada da emenda Dante de Oliveira, até há pouco presidente do PDS, senador José Sarney. Para alguns, a chapa Tancredo/Sarney era um exemplo vivo "da dinâmica do processo político". Para outros, entretanto, era a conciliação das elites, uma vez mais, para não perderem o controle do processo político e, em consequência (pelo menos para boa parte dessas elites), evitar mudanças que pudessem afetar seus privilégios. A hierarquia militar, que dominara o cenário político nos últimos 20 anos, assistiu sem sobressaltos à disputa entre Tancredo neves e Paulo Maluf, que já derrotara anteriormente, nas prévias do PDS, o preferido do presidente Figueiredo, o ex-ministro e coronel Mário Andreazza. Os votos do PMDB, somados aos da dissidência do PDS, o PFL e mais os dos poucos representantes da esquerda no Congresso Nacional - à exceção do PT, que se recusou a participar das indiretas - deram folgada vitória a Tancredo Neves e seu vice, José Sarney.
ALENCAR, Chico et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 425-426.