"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A vida cotidiana em Roma

"A poetisa". Pintura romana.

Na época áurea do Império, a população de Roma chegou a 1 milhão de pessoas. Foi o grande centro cultural e político dos últimos séculos do mundo antigo. Administrá-la representava um grande desafio, devido sobretudo à concentração demográfica. Os problemas enfrentados eram parecidos com os das metrópoles atuais: falta de moradia e de lazer, violência, trânsito conturbado. Além disso, a desigualdade social ficava evidente nos tipos de moradias e em sua localização: algumas residências eram suntuosas, privilegiadas pelo uso da infra-estrutura pública, enquanto a maior parte da população morava em cubículos ou perambulava pelas ruas.

A cidade recebia inúmeros estrangeiros. Muitos iam tentar a sorte em Roma, buscando fugir da vida precária que tinham no campo. A cidade, já no mundo antigo, simbolizava um lugar de maior liberdade. Mas Roma era também dominada pelos interesses da aristocracia e pelo escravismo. O historiador Paul Veyne registra:

"Sendo um bem que se possui, um escravo é um inferior. E como esta inferioridade de um homem faz de outro homem seu proprietário, um chefe, esse amo, seguro de tal grandeza, a consagrará considerando natural a inferioridade do escravo: um escravo é um sub-homem por destino e não por acidente; a escravidão antiga tem por analogia psicológica menos remota o racismo". (O Império Romano. In: Phillippe Ariès, Georges Duby (dirs.) História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. v. 1. p. 62)

O crescente aumento de escravos exerceu influência no cotidiano romano, tanto na formação de uma mentalidade discriminatória, quanto na divisão social do trabalho, na repartição das tarefas e na administração da ociosidade forçada dos que não conseguiam trabalho. Devido a essa ociosidade, desenvolveram-se atividades a fim de atrair as multidões e evitar agitações sociais. Essa chamada política do pão-e-circo - distribuição gratuita de alimentos, sobretudo o trigo, e de dinheiro, no caso dos eleitores mais pobres, além de oferta de diversão - atraía a simpatia popular e desviava a atenção da miséria em que muitos viviam.

Outra semelhança entre Roma antiga e as metrópoles modernas é o papel do lazer na vida cotidiana. No tempo dos romanos, era preciso mobilizar os desejos e as emoções para o divertimento, evitando assim sua canalização para a rebeldia política. Na época do ditador Júlio César, chegaram a ser reunidos 640 gladiadores na arena; na época do imperador Trajano, houve uma maratona de mortes que durou 117 dias. A violência atraía os espectadores e deixava-os fascinados. A morte tornou-se frequente por exigência das platéias. As arenas de lutas, como o Coliseu, serviam também para punir pessoas perseguidas pelo governo ou mesmo prisioneiros de guerra.

Os mais ricos gozavam de outras oportunidades de lazer e convívio social*. Os balneários eram muito comuns, não só na cidade de Roma. Constituíam um espaço para conversas, conspirações, encontros de negócios, cuidados com o corpo, rituais de vaidade, enfim, situações presentes em organizações humanas de todos os tempos. Sendo competitiva e agitada, a sociedade romana exigia que as pessoas se apresentassem bem. Os que gostavam de lugares abertos passeavam na praça, junto ao fórum, no centro da cidade, onde circulavam pessoas de diferentes origens e interesses, o que incluía as prostitutas, cujos serviços eram muito solicitados em uma cidade tão populosa como Roma.

* Vou te indicar onde poderás encontrar os homens que buscas [...], honestos ou desonestos. Queres encontrar um perjuro? Basta ires à tribuna dos discursos. Um mentiroso ou um fanfarrão? Deves ir ao templo de Vênus [...]. Ricos maridos, pródigos quanto ao seu dinheiro? Tu os encontrarás perto da Basílica. Tu encontrarás lá, também, prostitutas envelhecidas e os que alugam o próprio corpo segundo um contrato. Os que estão buscando comida podem ser encontrados no mercado dos peixes. Na parte baixa do Foro, passeiam as pessoas honestas [...]. Os insolentes, os falastrões e os ciumentos estão perto do Lago Curtius [...]. Perto das Velhas Lojas, encontram-se os cambistas e os usurários. [...] No Velabro, os padeiros, os açougueiros [...]. (PLAUTO, “O gorgulho”. V. 467-485. In: SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 151.)

As crianças de ambos os sexos, por sua vez, participavam das mesmas brincadeiras até o início da adolescência, quando começava a preparação para a vida pública. As meninas das famílias mais ricas já aos 13 anos estavam liberadas para o casamento. No início da República, as mulheres viviam sob a autoridade absoluta do marido. No tempo do Império, podiam se divorciar e realizar negócios. Se comparadas às mulheres gregas, tinham mais liberdade de ação, não se restringiam ao espaço doméstico. As mais ricas tinham até oportunidade de educar-se. Esse aspecto acentua o sexismo da democracia grega, a qual considerava cidadãos somente os indivíduos do sexo masculino e mantinha as mulheres subordinadas aos homens.

REZENDE, Antonio Paulo e DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005.
SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A cultura medieval

Menestréis da Cantiga de Santa Maria. Anônimo espanhol.

[A cultura medieval] A Igreja Católica foi presença fundamental na cultura da Idade Média. Sua influência dava-se em praticamente todos os setores da vida cotidiana, constituindo-se na grande instituição da época. Os ditames do catolicismo regulavam as relações sociais, e a visão de mundo teocêntrica era dominante. À Igreja coube ainda o importante papel de depositaria de grande parte dos escritos da Antiguidade Clássica.

Durante muito tempo a Idade Média foi chamada de "Idade das Trevas", pois atribuía-se à cultura medieval um caráter obscuro. Hoje sabemos que essa visão é errônea e deveu-se, em boa medida, ao preconceito de alguns pensadores do Renascimento, que perdurou por séculos.

Embora o pensamento cristão fosse hegemônico, havia resistências. Algumas práticas profanas muitas vezes impregnavam as próprias práticas cristãs, como acontecia, por exemplo, com as festas da Páscoa e do carnaval. O papel do clero tinha grande relevância social, pois ele funcionava como formulador e divulgador da concepção cristã de mundo, segundo a qual o homem era a criação divina mais importante, feito à imagem e semelhança de Deus, e devia obediência aos ensinamentos e às normas estabelecidas pela Igreja. Os mosteiros eram os grandes centros de estudo e de educação. Os monges asseguravam a manutenção dos manuscritos, preservando a herança da cultura clássica, mas ao mesmo tempo censuravam aquilo que podia ameaçar a concepção teocêntrica. Esse controle dificultava o acesso a um conhecimento crítico e ajudava a preservação de uma ordem social profundamente hierarquizada.

A relação dos homens com a natureza, sobretudo no período da Alta Idade Média, era bem diferente da estabelecida nos tempos modernos. Conta o historiador Marc Bloch:

"A paisagem rural, onde os matos ocupavam espaços tão importantes, apresentava de um modo menos sensível a marca humana. Os animais ferozes, que apenas povoam os nossos contos para crianças, os ursos, os lobos, especialmente, vagueavam por todos os lugares desertos e, por vezes, até nos próprios campos cultivados [...] No que diz respeito aos utensílios, a madeira tinha um lugar preponderante. As noites, mal iluminadas, eram mais escuras, o frio, mesmo nas salas dos castelos, mais rigoroso [...]"(A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 90)

Esta maior proximidade com a natureza, presente no cotidiano, significava também uma maior dependência dos seus ciclos. A natureza era outra obra de Deus, da sua bondade e onipotência.

[...] O Tribunal da Inquisição, criado em 1223, encarregava-se de fazer valer as concepções da Igreja. Era temido pelos intelectuais que optavam pela crítica e pela dúvida. Em um mundo definido pela onipotência de Deus, era um grande risco desconfiar do seu poder e de quem o representava aqui na Terra. A filosofia de Aristóteles era aceita com limites, uma vez que o mais importante era o sagrado, a fé, a hierarquia religiosa. Em nome da vontade de Deus a Igreja fazia valer sua força política.

O latim era a língua usada pelas elites culturais, mas isso não impediu o surgimento das chamadas línguas nacionais. A partir do século XI, elas começaram a se consolidar, destacando-se na literatura épica, dedicada aos atos heróicos dos cavaleiros. A canção de Rolando (francesa), A canção dos Nibelungen (alemã), o Poema del Cid (espanhol) são exemplos desse tipo de literatura, que teve importância para a afirmação da identidade nacional. Outra expressão literária ligada à cavalaria foi o trovadorismo. A literatura trovadoresca cantava o amor romântico, o amor cortesão, exaltava as mulheres, deixando de lado os temas de luta e guerra. São conhecidos também os romances que se inspiraram nas aventuras dos cavaleiros e nos seus amores. Os romances com inspiração no rei Artur, que contam as histórias dos Cavaleiros da Távola Redonda, são os mais famosos, tendo circulado por toda a Europa.

Do período mais ligado ao crescimento das cidades há os fabliaux, romances que criticam os costumes feudais e o cristianismo. Revelam que o feudalismo enfrentava dificuldades para se manter, e que seus valores já não atendiam às mudanças sociais. Mas as duas obras que mais se destacam na literatura medieval são: Histórias de Canterbury, do inglês Geoffrey Chaucer, e a Divina Comédia, do florentino Dante Alighieri (1265-1321). Chaucer descreveu, com leveza e humor, a vida do seu tempo, tomando como tema 29 peregrinos que visitaram o santuário religioso de Canterbury. Dante é considerado a maior figura literária da Idade Média. Na sua obra retrata, com maestria, a vida medieval, além de cantar seu amor por Beatriz. Precursos do Renascimento, Dante escrevia em latim e em italiano, o que era uma inovação. Atribui-se a ele a criação do italiano moderno.

A música teve grande influência religiosa. O cantochão - também chamado canto gregoriano - era o mais conhecido. Exemplo de música sagrada, era cultivado nos mosteiros. Mas havia também os trovadores e os menestréis, que tinham grande aceitação popular, pois cantavam nos idiomas nacionais. Seus temas épicos e ligados ao amor cortesão firmaram uma tradição oral que marcou a cultura popular da Baixa Idade Média. Isso demonstra que a cultura medieval não era produzida apenas pela elite.

A arquitetura é considerada a maior expressão da arte medieval, e mais uma vez a religião mostra a sua presença. Dois grandes estilos predominavam: o românico e o gótico. O primeiro destcaou-se no século XI e era usado na construção de igrejas, castelos e mosteiros. Mais ligado à simplicidade da vida rural, caracterizava-se pelos arcos redondos, janelas pequenas e paredes maciças. O gótico predominou no final do século XII e em todo o século XIII, e simbolizou as mudanças que aconteciam na Europa, anunciando o enfraquecimento do feudalismo. Era um estilo marcadamente urbano, em que se destacavam a leveza e a verticalidade das construções, nas quais predominavam os espaços vazados, preenchidos por vitrais (janelas imensas com mosaicos de vidro colorido). Essas características eram propiciadas pelo emprego do arco ogival e das abóbodas em aresta, conquistas arquitetônicas resultantes de uma engenharia mais sofisticada. As igrejas tornavam-se assim imponentes e destacavam-se sobre os demais edifícios da cidade. REZENDE, Antonio Paulo e DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005.

[O intelectual medieval e o humanista renascentista] Assim os humanistas abandonaram uma das tarefas capitais do intelectual, o contato com a massa, a ligação entre a ciência e o ensino. Sem dúvida que a Renascença, a longo prazo, trará à humanidade a colheita de um trabalho orgulhoso e solitário. A sua ciência, as suas ideias, as suas obras-primas, alimentarão mais tarde o progresso humano. Mas o primeiro momento é uma retirada, um recuo. Essa situação prolonga-se até à imprensa, que talvez não tenha favorecido, logo de início, senão ao retraimento de difusão do pensamento. Os que sabem ler - um pequeno escol de favorecidos - estão satisfeitos [...]. nada mais impressionante que o contraste entre as imagens que representam a trabalhar o intelectual da Idade Média e o humanista (do Renascimento).


Um é professor, surpreendido a ensinar, rodeado de alunos, cercado pelos bancos onde se comprime o auditório. O outro é um erudito solitário, no seu tranquilo gabinete, à vontade no meio do quarto desafogado e opulento, onde se movem livremente seus pensamentos. Aqui é o tumulto das escolas, a poeira das salas, a indiferença pela decoração do trabalho coletivo. Ali tudo é ordem e beleza. Luxo, calma e voluptuosidade. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa: Estúdios Cor, s.d. p. 174-175.

A arte, o conhecimento e o cotidiano na Antiguidade

Pintura mural na mastaba de Khnumhotep e Niankhkhnum, um casal egípcio do sexo masculino, que viveu por volta de 2400 a.C. Os pares são retratados durante um beijo, a mais íntima pose na arte egípcia

"Nesse palco fervilhante de populações, se desenvolveram a agricultura e o comércio. E também o cavalo e o carro, a cunhagem de moedas, a lei e o governo, a matemática e a medicina, o calendário, a escrita e o alfabeto, o papel e a tinta, os livros e as bibliotecas, a literatura e a música, a escultura e a arquitetura, o monoteísmo, o xadrez, o jogo de bola, a cerveja e o vinho."
(Will Durant, historiador)

Apesar de a religião desempenhar papel central na vida cotidiana dessas civilizações, as primeiras reflexões e descobertas dos homens sobre o mundo tinham caráter eminentemente prático, pois estavam muito relacionadas com suas dificuldades concretas, decorrentes da sua relação com a natureza. Era um desafio, por exemplo, aproveitar as enchentes do rio Nilo, prever suas inundações. Ao buscar soluções para essa questão, os egípcios deram contribuições valiosas para a matemática e a geometria, pois desenvolveram as operações da soma, da divisão e da subtração; inventaram o sistema decimal e o ábaco, e calcularam as áreas dos hexágonos, retângulos e triângulos. A construção das pirâmides, por sua vez, requeria conhecimentos de matemática, geometria, engenharia (além de uma quantidade significativa de força humana). Já o trabalho com a mumificação exigia um bom conhecimento do corpo humano: os egípcios eram habilidosos cirurgiões e sabiam relacionar as doenças com as suas causas naturais. Além disso, foram inventores dos relógios de sol e de água e fizeram conquistas expressivas no fabrico do vidro, do papel e da metalurgia.

É interessante frisar que as pirâmides eram construções que simbolizavam a imortalidade dos faraós; sua forma representava os raios de Sol caindo sobre a Terra, pois se acreditava que o faraó ascenderia ao céu por meio deles.

Além das pirâmides, havia os templos, como os de Carnac e Luxor, construídos já na época do Novo Império, que se destacavam pela solidez e dimensão grandiosa. A escultura e a pintura tinham lugar secundário, funcionando como auxiliares da arquitetura. As esculturas eram geralmente grandiosas, sobretudo as estátuas de faraós. Na pintura, temos registros do cotidiano da vida dos egípcios, com seus murais de cores vivas.


Os escribas faziam uso da escrita hieroglífica, que inicialmente foi usada para designar objetos concretos e depois ganhou maior complexidade. Além dessa escrita, decifrada pelo francês Jean-François Champollion, no início do século XIX, os egípcios deixaram dois outros sistemas de escrita: o hierático, empregado para fins práticos, e o demótico, uma forma simplificada e popular do hierático.

A grande maioria da população egípcia vivia em habitações modestas, ao contrário da minoria privilegiada, que morava em casas bem decoradas, com muitos utensílios e mesa farta de frutas, carnes e queijos. A cerveja, não fermentada, era bebida popular, pois o vinho fazia parte apenas da mesa dos mais ricos. Era costume o uso de jóias como forma de ostentar riqueza. A caça, a pesca, a natação e as corridas de barco eram alguns dos divertimentos mais comuns.

Na Mesopotâmia, as constantes guerras foram um fator de instabilidade que repercutiu nas atividades culturais. A cultura suméria serviu de acervo comum para os povos que habitavam a região. Sua arte estava livre das convenções religiosas que tanto limitaram a arte egípcia. A construção de templos remonta ao quarto milênio a.C., embora a escassez de materiais como pedra e madeira tenham limitado bastante as atividades arquitetônicas. Sua construção mais famosa é o zigurate, que tinha a forma de torre, com vários terraços e um pequeno templo na parte superior.

A escrita suméria era cuneiforme, gravada em tabuletas de argila. Na matemática, os sumérios descobriram a extração da raiz quadrada - raciocínio que usavam, por exemplo, para calcular a produtividade dos campos cultivados -, conheciam os processos de multiplicação e divisão, e tinham um sistema de numeração baseado no número 60. Utilizavam um calendário lunar e inventaram um relógio de água. Eram supersticiosos, acreditando que a maioria das doenças era causada pelos maus espíritos.

Não podemos esquecer também a expressividade da arte assíria. A escultura, com seus baixos relevos, tematizava sobretudo a guerra e a caça, praticada como esporte principal das elites. A grandiosidade dos templos e palácios de pedra simbolizava os privilégios dos mais favorecidos. Na arquitetura, privilegiava-se o arco e a cúpula mais do que as colunas. Além disso, coube a Assurbanípal (c. 668-626 a.C.) a construção da biblioteca de Nínive, uma das mais antigas que se têm notícia. Mas a eternidade não existe para os impérios. Em 612 a.C., a capital do Império foi tomada pelos caldeus, conhecidos também como novos babilônios, sob o comando de Nabopolassar.

Os caldeus eram grandes observadores dos astros; seus mapas celestes eram minuciosos, pois havia uma identificação dos deuses com os astros - daí a astrologia ter um lugar de destaque na vida desse povo. Já concebiam a noção de pecado e de culpa, tão importante para a constituição das religiões hebraica e cristã. Seu sistema de medição do tempo teve influência na cultura ocidental: inventaram a semana de sete dias e dividiram o dia em em doze horas duplas. Quanto à sua arte, ela se destacava pela grandiosidade arquitetônica.

Os cretenses foram grandes artistas. Os murais de seus palácios evidenciam a beleza da sua pintura. Era notável também sua habilidade na escultura, na cerâmica e no artesanato. A estrutura da sociedade cretense permitia à população uma vida bastante livre. Assim, era comum a prática de esportes, como o xadrez e o boxe, e as idas aos teatros - construídos de pedra - para assistir a desfiles e exibições musicais. A mulher, que gozava de direitos semelhantes aos do homem, participava ativamente do cotidiano da cidade, não ficando restrita ao mundo doméstico. A principal divindade dos cretenses era uma figura feminina, símbolo da fertilidade, da vida e da morte, representando tanto o bem como o mal. Os cretenses também adoravam animais, como o touro, e enterravam os mortos com seus objetos, alimentos e bebidas.

A maior contribuição dos fenícios foi a criação e divulgação de um alfabeto, invenção que facilitou a comunicação entre os povos e sobretudo a transmissão da cultura (mais tarde, o alfabeto fenício serviria de base para os alfabetos grego e latino). Embora estivesse associada aos interesses imediatos dos fenícios na expansão dos seus negócios, a elaboração do alfabeto é exemplo de como, na História, as invenções constituem uma busca de superação das dificuldades e são fundamentais para a construção da cultura.

A análise dos cretenses e dos fenícios nos dá uma dimensão mais ampla do que foi a História na Antiguidade, uma vez que eles se destacaram como grandes comerciantes, daí decorrendo o desenvolvimento de suas cidades. Os cretenses terminaram por influenciar seus conquistadores, os gregos; já os fenícios, dominados pelos persas, deixam marcas na formação da cultura ocidental e na organização de sua vida econômica.

A História do mundo antigo tem conexões com práticas sociais existentes ainda na sociedade atual. Não podemos perdê-las de vista nem tampouco desprezá-las. O historiador deve estar atento às mudanças e às permanências. Elas dão o ritmo da História.

REZENDE, Antonio Paulo e DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005.

A vida no Brasil independente

Vista do Largo da Saúde, Almiro Reis

* O Rio de Janeiro, capital do Império. O Rio de Janeiro, como capital do Brasil e centro da vida política, econômica e social foi, durante todo o Império, a cidade mais importante do país.

O bem-estar que surgira com a vinda da Família Real portuguesa continuou aumentando, favorecido pelos lucros de um comércio ativo com a Europa. A vida da cidade foi aos poucos mudando de aspecto: tornou-se mais movimentada, menos provinciana, mais semelhante à vida em uma capital europeia. A grande influência francesa acentuou-se cada vez mais no século XIX: francesa era a maneira de vestir das mulheres, franceses os autores dos livros mais lidos, francesas as músicas dançadas em festas e em bailes, francês o idioma estrangeiro ensinado em primeiro lugar nas melhores escolas.

Começaram a aparecer transportes públicos já em uso na Europa, como ônibus e bondes puxados a burros; e lampeões a gás nas ruas principais vieram dar um ar moderno à cidade. Multiplicaram-se os espetáculos teatrais; estrangeiros de renome foram contratados para temporadas de ópera. Saraus musicais de canto e piano em casas de amigos e conhecidos tornaram-se frequentes; por ocasião de aniversários e de batizados davam-se festas que terminavam sempre com jogos e danças, Os almoços domingueiros reuniam todos os parentes, pais e avós, filhos e netos.

As mulheres, que durante o período colonial haviam vivido quase que exclusivamente dentro de casa, começaram a gozar a vida ao ar livre. Veraneavam na Tijuca, em Petrópolis ou em Nova Friburgo, participavam de passeios a pé, de barco ou a cavalo, assistiam a regatas, e tomavam banho de mar na praia do Flamengo. O banho de mar era tomado de novembro a março, bem cedinho, antes do sol nascer; filas de homens, mulheres e crianças desciam à praia, acompanhadas de seus escravos, que armavam na areia as barracas onde as senhoras trocavam de roupa. Entravam na água em grupos de mãos dadas, com medo de serem derrubados pelas ondas. Logo que o sol aparecia, a praia se esvaziava por completo, e começava, nas ruas, o movimento dos leiteiros, das quitandeiras, dos escravos, que iam fazer compras no mercado, entregar encomendas ou levar recados.

Os leiteiros, quase sempre portugueses vindos dos Açores, seguiam pelas ruas tocando uma vaca e seu bezerrinho; e vendiam de porta em porta o leite tirado na hora. As quitandeiras ofereciam, em cestas e tabuleiros, verduras, frutas, doces e até brinquedos para as crianças. Maiores quantidades de gêneros alimentícios encontravam-se no mercado: peixes, carnes, galinhas, ovos, verduras e as frutas mais variadas da terra: laranjas, limões, abacaxis, bananas, mangas, frutas-do-conde, mamões, goiabas, araçás, cajus.

Vendedores ambulantes, seguidos de escravos com grandes caixas na cabeça, iam de casa em casa vendendo roupas estrangeiras, tecidos, fitas, rendas. Era em casa que as mulheres preferiam escolher as peças de vestuário, pedindo às lojas que lhes enviassem suas mercadorias para uma escolha mais à vontade.

As ruas onde funcionavam as principais lojas e onde se discutiam negócios eram de muito movimento. Antes de serem pavimentadas, ficavam cheias de água e de lama, nos dias de chuva, e as pessoas as atravessavam de um lado para outro carregadas às costas dos muitos negros que, postados às portas das casas, esperavam essa oportunidade para ganhar um dinheirinho.

Na época do carnaval a cidade inteira se animava, festejando o entrudo, como eram chamados antigamente os três dias que precediam a quaresma. Até meados do século XIX, o entrudo consistia em batalhas entre os foliões nas ruas e até mesmo dentro das casas, atirando-se bolinhas de cera cheias de água, às vezes perfumada, chamadas limões de cheiro. Outros foliões recorriam a bacias e a baldes para lançar água, até todos ficarem ensopados. A polícia acabou proibindo esse tipo de brincadeira e foi surgindo um carnaval diferente, com confetes e serpentinas, lança-perfumes, fantasias, cordões e desfiles.

O Rio de Janeiro, como cidade mais moderna, com sua intensa vida social e cultural, tornou-se modelo para outras capitais do país.

* São Luís do Maranhão. São Luís do Maranhão impressionou vários viajantes estrangeiros do século XIX pela sua limpeza, sua população agradável e simpática, sua sociedade fina e educada. Cidade próspera, muito bem construída, nela residiam ricos comerciantes e grandes proprietários de plantações e fazendas, cujos filhos frequentemente iam estudar na Europa. São famosos os sobrados de São Luís, dispostos ao longo de íngremes ladeiras, com suas paredes espessas, construídas de pedra e cal, revestidos de belos azulejos portugueses. Por causa das ladeiras não havia muitas carruagens naquela época e o transporte usual, para as mulheres, era a rede, carregada aos ombros dos escravos. Era assim que iam à missa, faziam visitas ou davam seu passeio costumeiro pela cidade.

* Belém do Pará. Em meados do século XIX Belém do Pará teve suas ruas alargadas, macadamizadas e bem iluminadas, e o conforto na cidade aumentou consideravelmente. Para substituir o transporte em redes, usado até então, introduziram-se veículos puxados a cavalo, que levavam as famílias às visitas e aos passeios domingueiros. Mas se a rede deixou de ser usada nas ruas como transporte, continuou servindo nas casas para que nelas as pessoas descansassem ou dormissem. Por causa do calor, quase todas as residências tinham varanda, muitas vezes rodeando a casa, e algumas habitações apresentavam também varanda interna, onde sempre se encontravam numerosas redes acolhedoras. Como em Belém havia poucos chafarizes, o abastecimento de água da cidade fazia-se em grandes pipas, transportadas por mais de duzentos carros de boi, o que na época representava sinal de evidente progresso. Havia também guardas que faziam a ronda, policiando a cidade à noite, e o dia era anunciado com o repicar dos sinos e descarga de foguetes.

* Recife. Recife, importante núcleo econômico desde os tempos coloniais, modernizou-se durante o Império, mas conservou, na zona comercial, os sobrados típicos da velha cidade, casarões de mais de cinco andares; no térreo encontrava-se o armazém, onde à noite dormiam os empregados; no primeiro andar os escritórios da firma; no segundo e terceiro as salas de estar e os quartos de dormir;no quarto a sala de jantar, e no quinto a cozinha. No topo desses casarões havia ainda um observatório com vista em todas as direções, dominando o mar. Tão destacada era a importância das grandes firmas comerciais do Recife que muitos rapazes do Sul eram para lá mandados, a fim de aprenderem a ser homens de negócios.

Os divertimentos da cidade, além de festas religiosas e procissões, não eram muitos. Grandes bailes, festejos por dias a fio eram dados nos engenhos ou nas casas de veraneio. Recife só conheceu maior movimentação na cidade quando os estudantes da Faculdade de Direito começaram a organizar conferências, espetáculos teatrais, formaturas com bailes, saraus literários, e a percorrer as ruas fazendo românticas serenatas.

* Salvador. Salvador sempre se destacou como uma das cidades mais pitorescas e atraentes do Brasil; seu povo permaneceu extremamente alegre, comunicativo e hospitaleiro; sua sociedade era das mais refinadas, segundo moldes de Londres e de Paris. Durante muito tempo todo o transporte fez-se por escravos, pois as múltiplas e íngremes ladeiras da cidade não permitiam o trânsito de veículos, nem mesmo de pequenas carretas. Para o transporte de pessoas, que não possuíam condução própria, havia nas esquinas principais longa fileira de cadeirinhas acortinadas. As mercadorias mais pesadas eram transportadas por grupos de escravos, aos pares, quatro, seis ou oito, conforme o peso da carga, suspensa entre eles por fortes varapaus. Também toda a água necessária era carregada por escravos, que iam e vinham subindo e descendo ladeiras. Esse fornecimento era difícil, só melhorando com a instalação de modernos motores a vapor, para bombear a água potável.


Rua Direita, Rio de Janeiro, Félix Émile Taunay

* São Paulo. Em contraste com essas capitais da orla marítima, São Paulo, economicamente pobre, vivera em isolamento, retraída e fechada durante todo o período colonial. No início do Império, só os estudantes de Direito conseguiram dar certa animação à cidade. Nenhuma festa paulistana tinha graça sem a presença dos estudantes. Eram eles que animavam os poucos bailes e espetáculos teatrais, que espalhavam alegria pelas ruas do centro, fazendo brincadeiras e serenatas, que divertiam moradores de bairros e arrabaldes com seus passeios a pé e a cavalo, seus mergulhos nas águas do Tamanduateí.

Quando chegava a época das férias, São Paulo voltava a ser triste e monótona. As ruas viviam vazias, pois as famílias só saíam para visitas, guardadas por seus chefes, como era costume em todas as cidades do interior do Brasil.

Em meados do século XIX, porém, vários fatores fizeram a cidade e a província progredirem consideravelmente: o início da expansão cafeeira em terras paulistas, a criação de pequenas indústrias, a abertura de estradas de ferro e o aumento sensível da população. Tudo isso concorreu para enriquecer a cidade, permitindo introduzir grandes melhorias. Ruas e praças foram sendo alargadas, pavimentadas, arborizadas. Junto às velhas e rudes casas térreas, de porta e janela, começaram a erguer-se pequenos sobrados com largos beirais e balcões de ferro. Alguns fazendeiros transferiram-se para a capital, construindo belos palacetes, rodeados de jardins. A fim de ampliar o centro da cidade, antigas chácaras foram retalhadas, surgindo novas ruas, praças e residências. Instalaram-se lampeões a gás e organizaram-se os primeiros serviços de transporte público: carros de aluguel, puxados a cavalo, estacionados no centro. O trânsito da cidade aumentou tanto que já na segunda metade do século XIX pensou-se em sinalizar as ruas para indicar as vias de mão única.

O comércio paulista progredira muito; nas lojas da cidade encontravam-se artigos finos, até então encomendados no Rio de Janeiro. Já existiam lojas francesas de modas, de perfumes, de relógios e de objetos de luxo, cabeleireiros e barbeiros.

O abastecimento de gêneros alimentícios, comparado com o de outras capitais, era farto, devido à localização da cidade em meio a numerosas chácaras, sítios e fazendas. Já muito antes São Paulo contava com bom fornecimento de arroz, feijão, milho, legumes, verduras, frutas e peixes de água doce, pescados no Tietê. Os gêneros eram ou vendidos em mercados e quitandas ou oferecidos de porta em porta.

Por toda parte viam-se pretas quituteiras vendendo doces e salgados, biscoitos, pamonhas, bolinhos de milho e de mandioca, pastéis, empadas, cuscus, dispostos sobre tabuleiros cobertos de toalhinhas brancas. As bebidas populares mais comuns, antes da grande aceitação do café, eram o chá preto vindo da Ásia, mas também já cultivado nas chácaras da cidade e dos arredores, e o caldo de cana, a garapa, vendida pelas ruas em grandes potes de barro. Começaram a surgir as primeiras confeitarias, alguns restaurantes e cervejarias.

A cerveja começara a se tornar popular na segunda metade do século XIX, sendo fabricada em São Paulo por imigrantes alemães. Nessa época, alemães e franceses montaram pequenas indústrias, entre as quais fábricas de licores, de vinagre, de chapéus, couros e arreios.

No último quartel do século XIX novas fábricas se instalaram, quando a estrada de ferro ligou a cidade ao porto de Santos, ao interior e à capital do Império, e quando a produção de café, do centro e do oeste paulista, deu a São Paulo uma riqueza até então desconhecida. Principiou aí o desenvolvimento da indústria paulista, com fundições, serralherias, serarias, fábricas de móveis, de carroças e carruagens, de massas alimentícias. Essas fábricas foram-se localizando próximas às vias férreas e determinaram o aparecimento de grandes bairros industriais: Ipiranga, Brás, Moóca, Pari, Barra Funda, Água Branca.

Ao mesmo tempo estendiam-se as zonas exclusivamente residenciais; com a abolição da escravatura grande número de fazendeiros veio residir em São Paulo, construindo luxuosas residências em novos bairros elegantes da época, como Higienópolis, enquanto os comerciantes e os industriais começavam a construir na recém-aberta avenida Paulista.

A paisagem urbana passou por enorme transformação; mais ruas, largos, praças foram abertas, pavimentadas e arborizadas. As chácaras do centro foram desaparecendo. A cidade desenvolvia-se de modo tão rápido que os planos de urbanização não conseguiam acompanhar seu crescimento. Com a entrada de imigrantes em larga escala, e com o aumento da população foram sendo demolidas as velhas casas, surgindo em seu lugar novas habitações dos mais diversos tipos, inspiradas em estilos europeus: palacetes italianos, chalés alemães e suíços, casas normandas. As mais ricas residências distinguiam-se por jardins belíssimos, com plantas e flores nacionais e estrangeiras. No início do século XX apareceu no centro de São Paulo o primeiro edifício de cimento armado, com três pavimentos, o andar térreo destinado a lojas comerciais, protegidas por portas de aço.

Nessa época as lojas da cidade tinham ganho outra animação, com a frequência de mulheres fazendo suas compras sozinhas. A vida social em São Paulo intensificou-se. Após a proibição dos mergulhos no Tamanduateí e o aparecimento de clubes de natação e regatas às margens do Tietê, o esporte tomou impulso. Por influência dos ingleses, foi introduzido o futebol, logo entusiasmando a população; apareceram as primeiras quadras de tênis e de bola-ao-cesto, e ganharam destaque as corridas de cavalos, em hipódromos recém-construídos. Aos domingos a principal distração do povo era ir passear no jardim do Ipiranga, onde se divertia andando de carrossel, assistindo a teatrinhos de bonecos, participando de uma quantidade de jogos e competições. Ia-se a piqueniques, a sessões de circo, a concertos de bandas no coreto do Jardim da Luz, a reuniões dançantes em clubes recreativos, a espetáculos de teatro, de óperas, de operetas.

Como em todas as cidades do Brasil, havia o famoso footing, passeio a pé, numa rua ou, numa praça - moças de um lado, rapazes do outro - trocando olhares, sorrisos, bilhetinhos. Foram célebres no passado os footings da rua XV de Novembro e da rua Direita. Várias confeitarias haviam-se tornado muito conhecidas, sendo ponto de reunião obrigatória para famílias inteiras, que lá iam tomar sorvetes, saborear doces e ouvir sua orquestra. Os frequentadores de teatro movimentavam à noite os restaurantes e os cafés, onde tomavam refrescos ou ceavam após os espetáculos. As livrarias mais importantes transformaram-se em local de encontro de escritores, jornalistas e estudantes, para gostosos bate-papos, comentários políticos e larga troca de ideias.

O progresso aumentou dia a dia quando novos hábitos e costumes, trazidos por onda crescente de imigrantes, vieram influenciar a vida paulista, tornando São Paulo o modelo de cidade dinâmica e cosmopolita, em contínua expansão.

Após a primeira guerra mundial, as diferenças entre as capitais brasileiras foram progressivamente diminuindo, e a influência de outras culturas se fez sentir. Permaneceu a influência francesa ditando os requintes da moda, mantendo o hábito de encontros em confeitarias, cafés, livrarias e de ceias após os espetáculos de teatro. Surgiram a influência italiana e a alemã, modificando o gosto alimentar dos brasileiros, notadamente do Sul; a influência inglesa com a difusão do esporte e a norte-americana com sua música popular e seu cinema, uma das diversões preferidas a partir da década de 1920.

Ao terminar a segunda guerra mundial, as mudanças em nossos hábitos e costumes foram consideráveis, refletindo as transformações que se operaram no mundo todo. E os jornais, as revistas, o rádio, a televisão, estabelecendo contato dentro do próprio país, e com o exterior, permitiram às diversas populações brasileiras participarem do progresso, todas juntas, conservando, porém, aquelas características que lhes dão um cunho e um encanto próprios.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História do Brasil: da independência aos nossos dias. São Paulo: Nacional, 1980.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A vida no Brasil colônia

Uma família brasileira,  Henry Chamberlain
     
* A família patriarcal. A vida em sociedade, no Brasil colônia, desenvolveu-se em torno de um núcleo poderoso: a família, que girava à volta do chefe, do pai. É a chamada família patriarcal, em geral de formação portuguesa antiga. O grupo familial era formado não só pelo casal e seus filhos, como ainda por muitos parentes, afilhados, agregados e escravos. O pai tinha autoridade absoluta sobre todos, sua palavra era lei. Escolhia as profissões e os casamentos para os filhos segundo as conveniências. Os casamentos, nas famílias mais ricas, ou eram combinados entre parentes (primos, tios) para proteger os bens e as heranças da mão de estranhos, ou eram acertados entre famílias poderosas para conservar e aumentar seu prestígio.

A família patriarcal pôde ganhar importância e força graças às grandes propriedades agrícolas que reuniam muitas pessoas em suas terras, como nos engenhos do Nordeste, nas fazendas paulistas e nas estâncias gaúchas.

* Os engenhos do Nordeste. Nos engenhos do Nordeste o centro era a casa-grande, pertencente a gente de posses, ao redor da qual se agrupavam as moradias dos escravos negros, as senzalas. As casas-grandes tinham paredes espessas de taipa ou de pedra e cal, telhados sem forro (telha-vã), com beirais bem largos e alpendres na frente e, às vezes, também dos lados. Assim podiam oferecer aos moradores melhor proteção contra o calor excessivo dos trópicos, o sol forte e as chuvas pesadas. O interior dessas casas era simples, com poucos móveis. As mesas, as cadeiras, os aparadores e as arcas para guardar pertences, quando não vinham da Europa, eram feitas das melhores madeiras da terra, principalmente de jacarandá. As camas a princípio foram raras, pois a maioria das pessoas dormia em redes, quando muito em catres, estrado de tábuas, sobre o qual se estendia um magro acolchoado. Nas paredes dos cômodos costumava ter-se imagens religiosas e, nos quartos, bonitos oratórios com estatuetas e pinturas de santos.

A grande propriedade canavieira do Nordeste, como todas as demais grandes propriedades do Brasil colônia, bastava-se praticamente a si mesma. Tinha lavouras, gado, cavalos para montar, madeira para construções, olarias para fabricar telhas e formas para açúcar, teares, carros de boi para transporte e escravos índios ou negros para executar todo tipo de trabalho.

Os senhores de engenho só iam à vila ou à cidade para assistir às festas religiosas, negociar seu açúcar, fazer compras de artigos importados da Europa e tomar parte ativa na política local. De resto, sua vida era extremamente descansada.

O vestuário do rico senhor de engenho e da sua família era simples no campo e dentro de casa, mas quando saía para a vila ou cidade gostava de ostentar sua riqueza, trajando roupas europeias luxuosas, de seda, veludo, damasco, brocado.

As mulheres saíam pouquíssimo de casa; viviam fechadas entre quatro paredes; passavam o tempo sentadas no chão, sobre esteiras ou tapetes, à moda oriental, às voltas com costuras e beliscando doces. Quando saíam, elegantemente vestidas e enfeitadas de jóias, para ir à igreja e às festas ou para fazer visitas, eram transportadas por escravos em redes ou cadeirinhas.


Senhora brasileira em sua cadeira, Henry Chamberlain

* As fazendas paulistas. Já nas fazendas paulistas a vida era bem mais simples. Embora o fazendeiro tivesse geralmente duas casas, uma na fazenda e outra na vila, estas nunca puderam comparar-se às casas senhoriais do Nordeste. A casa da cidade só era utilizada como pouso, para descanso de alguns dias, quando o fazendeiro ia à vila fazer negócios ou participar da política e de festas civis e religiosas. Ou então, para moradia de seus filhos quando tinham que estudar. Nesse caso eram acompanhados por empregadas da casa, frequentemente índias ou mestiças. Viver na fazenda é que era sinal de importância. Daí ser a casa da fazenda melhor construída e melhor mobiliada do que a casa da cidade. Eram comumente feitas de taipa, cobertas, na fase inicial da colonização, de palha ou de sapé, mais tarde de telhas, com um alpendre pequeno na frente e atrás. O mobiliário era reduzido ao indispensável. Nos primeiros tempos usou-se dormir em redes, às vezes no próprio chão; depois é que surgiu o catre.

Assim como as casas, o vestuário do paulista não tinha o menor luxo. As roupas eram poucas, feitas de pano de algodão tingido. No inverno, usava-se um casaco de lã (chamado surtum) ou um poncho de lã. Só mais tarde, com a riqueza que a exploração do ouro proporcionou, foram usados no vestuário tecidos finos, importados, de lã, cetim e damasco.

O fazendeiro paulista, instalado nos campos do planalto, foi um homem muito ativo. Desde o início da colonização partiu para o interior em busca de riqueza que não encontrava em fartura em suas terras. Por isso foi bandeirante e desbravou sertões. A mulher paulista também não ficou atrás em atividade, pois era ela quem dirigia a fazenda quando o marido partia nas bandeiras.


Família no interior do Brasil em viagem, Aimé-Adrien-Taunay

* As estâncias gaúchas. Nas estâncias gaúchas a vida foi ainda mais simples e mais rude. Os colonos açorianos que as formaram eram agricultores sem dinheiro, que tiveram que dispender muito esforço e muito trabalho para se transformar em criadores de gado.

As casas dos estancieiros eram baixas por causa do vento que trazia também o frio, construídas de taipa e cobertas de palha; os cômodos eram pouquíssimos, geralmente dois, a sala e o quarto do dono, muitas vezes separados entre si apenas por uma cortina. As peças toscas de mobiliário e certos utensílios domésticos eram geralmente de couro. A cozinha funcionava numa pequena choupana à parte, onde, ao pé do fogão, todos se reuniam em círculo para conversar e tomar o mate chimarrão.

Homem de hábitos simples, que passava o dia a cavalo, o estancieiro gaúcho era também muito simples no vestir: os homens trajavam calças largas de lã, as bombachas, as mulheres, vestidos de chita de algodão. Para proteger-se do vento pampeiro, todos usavamo poncho de lã, espécie de capa larga que descia até os pés.

Essa simplicidade que encontramos entre os gaúchos, e que já encontramos entre os paulistas, é característica de uma vida muito ativa de esforço e de trabalho contínuo. Só quando o Sul começou a abastecer as minas de ouro foi que o homem do campo gaúcho e o fazendeiro paulista conheceram maior largueza.

* A vida urbana. No Brasil, durante os dois primeiros séculos de colonização, a vida no campo, isto é, a vida rural, dominou completamente. A partir do século XVIII a vida na cidade, a vida urbana, cresceu em importância. O ponto de partida para essa transformação foi a descoberta das minas de ouro; as cidades antigas ganharam novo impulso em virtude do comércio, e muitos núcleos de povoamento se foram formando.

Nas regiões mineradoras os numerosos acampamentos transformaram-se dentro de pouco tempo em centros urbanos. Nessa região a vida se diferenciou da vida nas outras áreas brasileiras. Cada minerador possuía um pequeno lote de terra, que ele revolvia inteiro em busca do metal precioso; por isso ele quase não plantava nada nessa terra. Concentrou-se então na vila, onde morava e onde negociava o ouro e comprava o que lhe era necessário para seu sustento e para o trabalho. Tudo vinha de fora, das regiões produtoras e dos centros importadores de produtos europeus.

Nas cidades de Minas Gerais floresceu uma vida luxuosa, até então desconhecida no Brasil. Surgiram os sobrados ricamente ornamentados com portas de pedra trabalhada, com artísticos gradis de ferro, com enfeites de porcelana em forma de animais e de frutas, e mobiliados com peças finíssimas em madeira entalhada.

A vida era intensa, não só pela movimentação do comércio, como pela quantidade de festas civis e religiosas e por espetáculos musicais e de teatro.

A população das cidades mineiras, tal como nas outras regiões do Brasil, vestia-se modestamente dentro de casa, mas quando saía à rua fazia questão de trajar-se ricamente, de acordo com a última moda europeia.

Ao lado dos grandes proprietários de terras e dos ricos exploradores de ouro desenvolveu-se o grupo dos comerciantes que, das cidades e dos portos de Belém, São Luís, Salvador e Rio de Janeiro, comandavam a compra e venda das principais mercadorias do Brasil.

Como o Rio de Janeiro se tornara principal centro de abastecimento das minas, principal porto de exportação do ouro, os comerciantes foram se fixando mais e mais nessa cidade, nela concentrando seus lucros.

A riqueza que procedia das minas e que desembocou no Rio de Janeiro foi dando um progresso material cada vez maior à cidade. Quando o Rio de Janeiro passou a capital esse progresso se acentuou. Apareceram numerosos sobrados de construção sólida, feitos de tijolos e granito; o andar térreo servia frequentemente para fins comerciais, para lojas ou armazéns, onde caixeiros e escravos trabalhavam sem cessar sob as vistas do comerciante. Este já podia dar-se o prazer de passar horas observando o movimento da rua ou conversando.

Tal como os senhores de engenho, a gente rica da cidade vivia uma vida inteiramente folgada, fazia questão de mostrar que não trabalhava, de ostentar, fora de casa, um grande luxo nas vestes e nas jóias e enfeites. Na intimidade, porém, o ambiente era outro: os trajes sumários, a mobília modesta, as refeições simples.

Nenhuma pessoa rica saía a pé: os homens serviam-se das sejes ou dos coches, puxados a mula, e as mulheres das cadeirinhas, nas quais deixavam-se transportar pelos escravos até para dentro das igrejas.

Nessa época a cidade oferecia poucas distrações: as famílias ricas iam a espetáculos embora fossem de má qualidade, frequentavam bailes familiares e os homens reuniões de jogo.

Praticamente não existia a vida noturna por causa da falta de iluminação. Nas procissões e nas festas religiosas toda a população da cidade tomava parte.. Quando foi inaugurado o Passeio Público algumas famílias logo o transformaram em ponto de encontro entre parentes e conhecidos que lá se reuniam à tardinha para comentar os fatos do dia e as últimas notícias.

* A vida no Rio de Janeiro no período joanino. Esse tipo de vida calma e aparentemente sem preocupações foi de um dia para outro revolucionado pela chegada da Família Real portuguesa e toda a sua corte. Para atender às exigências foram logo construídas novas casas e reformadas as existentes. Os balcões fechados com madeira trançada, as rótulas, começaram a ser substituídas por janelas com vidraças. Começaram a aparecer também residências isoladas, longe do centro, em meio a jardins, com muitas árvores e gramados.

Seguiu-se toda uma série de modificações introduzidas pelos comerciantes, vindos sobretudo da Inglaterra e da França, após a abertura dos portos. No centro da cidade, na rua do Ouvidor, instalaram-se inúmeras lojas cheias de artigos europeus e orientais, dos mais finos. Surgiram livrarias, perfumarias, tabacarias, lojas de calçados, oficinas de costureiras e de modistas, salões de barbeiros e de cabeleireiro. Tudo isso foi modificando, aos poucos, gostos, hábitos e costumes da população, introduzindo na cidade noções de conforto desconhecidas até então.

Para assegurar o progresso material foi necessário um número maior de pedreiros, carpinteiros, ferreiros, de pessoas, em suma, especializadas em vários ofícios; daí foi surgindo aos poucos uma nova camada social, pequena classe média, intermediária entre os escravos, os ricos e nobres.

As famílias de posses começaram a dar maior importância ao interior das casas, às peças de mobiliário, à decoração dos cômodos e, o que é importante, também aos trajes cotidianos e caseiros. Guarda-roupas e cômodas ocuparam os lugares tomados antes por arcas e baús. Consolos, pianos, poltronas, sofás, lustres, grandes espelhos foram importados de Londres e de Paris; na mesa tornou-se usual a louça inglesa e nas residências mais ricas adotaram-se banheiras em substituição às tinas para banho.

A presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro ofereceu à população oportunidades várias de divertir-se: festas, comemorações cívicas, procissões, desfiles, espetáculos teatrais mais frequentes, concertos. A mulher pôde sair de seu isolamento, de seu mundo restrito a tarefas domésticas; nas residências particulares havia saraus, com recitais de piano e canto, danças e jogos; os parentes e vizinhos começaram a visitar-se com maior frequência.

A cadeirinha foi proibida de ser usada no centro da cidade, para facilitar a passagem de veículos. Nas ruas, além dos coches e das seges, começaram a circular carruagens puxadas por cavalos. A cidade foi-se tornando, assim, mais colorida, mais alegre e mais comunicativa.

Com o aprimoramento do gosto, dos hábitos e dos costumes houve também um aprimoramento cultural, através de novas escolas elementares, médias e superiores abertas não só no Rio como também em outras capitais de província. A imprensa difundiu-se e os livros começaram a circular fazendo crescer o interesse pela cultura e pelos estudos.

Daí por diante, os filhos de senhores de engenho, dos fazendeiros paulistas e dos estancieiros vieram educar-se nos centros urbanos e, aos poucos, as capitais das províncias se modificaram sob a influência das transformações do Rio de Janeiro. Mas o Rio, como capital do império, será o pólo de atração dos grandes proprietários de terras que, após a Independência, ocuparão os cargos políticos de maior projeção.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História do Brasil: das origens à independência. São Paulo: Nacional, 1980.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O que devemos ao português

Feira, Carybé

Ao português devemos as bases da nossa formação: a maneira de ser e de viver, a religião católica, as instituições (divisões administrativas, como município, comarca, Câmaras), e idioma.

A unidade do Brasil, desse imenso território formado por várias regiões tão diversas entre si, é fruto do espírito unificador da civilização portuguesa. Na Europa, Portugal foi o primeiro país que se formou geográfica e politicamente, conservando para o seu povo um só idioma. Graças ao esforço de Portugal, proibindo o uso da língua geral e impondo o uso da língua portuguesa na sua colônia na América, o Brasil passou a falar uma só língua e formou uma só nação. Essa união conseguida por Portugal, na América, não foi alcançada pela Espanha: as colônias espanholas se fragmentaram em vários países.

Os portugueses, misturando-se com facilidade aos elementos humanos da terra, bem como a elementos vindos de outras terras, permitiram a formação de um povo de aspectos raciais vários [...]. Os portugueses trouxeram consigo para o Brasil técnicas e artes, hábitos e costumes de Portugal, adaptando-os com extraordinária rapidez às condições do novo ambiente.

Muitas das velhas cidades brasileiras testemunham claramente a herança portuguesa: obedeceram pouco a traçados geométricos, as ruas formaram-se de modo irregular, sem respeitar planos, abrindo-se por vezes em largos de forma desigual.

As casas foram construídas a contento dos moradores, amoldando-se ao tipo de terreno e de paisagem.

Percorrendo as nossas cidades mais antigas encontraremos belos chafarizes, casarões com rótulas e amplos beirais, sobrados e claustros de conventos, ornamentados com azulejos coloridos, que os portugueses haviam herdado dos árabes.

No Brasil os portugueses não dispensaram as chácaras, lembrança das quintas de Portugal, onde cultivavam legumes, verduras, frutas e flores, a que estavam acostumados. Nas casas da cidade introduziram os quintais, com hortas e pomares. Valorizaram nossas frutas. Estavam habituados a um doce em pasta feito de marmelo, a marmelada, criação tipicamente portuguesa. Ainda hoje a palavra marmelada é usada em outras línguas que têm palavras diferentes para designar o marmelo. Criaram assim no Brasil a goiabada, a bananada, tão conhecidas de todos nós. A atração dos brasileiros pelos doces feitos com muitos ovos e muito açúcar é herdada do português. As nossas festas de aniversário, de batizados ou de casamentos, tipicamente brasileiras, não dispensam os "docinhos": a ameixa recheada (olho-de-sogra), os fios de ovos, os bem-casados, as queijadinhas e tantos outros mais.

Os pratos de sal vieram para o Brasil preparados com os temperos portugueses: folhas de louro, cheiros-verdes, alho, cebola, azeitonas. O cozido português enriqueceu-se no Brasil com novos ingredientes, a mandioca, a batata-doce, a banana, espiga de milho, pirão. A couve, complemento indispensável da nossa feijoada, é contribuição portuguesa, como também as sopas e as frituras, que tanto o índio como o negro desconheciam.

Não podemos esquecer que, junto com a cozinha portuguesa herdamos o gosto pela mesa farta, pela variedade de comidas, e o prazer de comer em companhia, de amigos e convidados, base da hospitalidade brasileira.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. (org.). História do Brasil: das origens à independência. São Paulo: Nacional, 1980.

O que devemos ao negro

Cotidiano, Carybé

* Grupos e origem dos negros vindos para o Brasil. Entre os negros trazidos como escravos para o Brasil, sobressaíram os do grupo banto e os do grupo sudanês. O grupo banto, o mais primitivo, habitava regiões do Congo, Angola e Moçambique, colônias portuguesas na época do comércio de escravos; o grupo sudanês, reunido em reinos e principados, habitava a Costa da Mina e a Guiné Portuguesa.


Capoeira na praia, Carybé


* Técnicas e artes. Os negros eram mais adiantados do que os indígenas brasileiros, particularmente os do grupo sudanês, que haviam sofrido influência da cultura árabe. Os árabes comerciavam no norte da África, nas costas do Mediterrâneo; suas caravanas iam e vinham desde o oceano Atlântico até o oceano Índico, atravessando o deserto do Saara e o vale do rio Nilo.

Os negros do grupo banto e sudanês não eram nômades, não mudavam frequentemente de lugar, isto é, eram sedentários. Viviam da caça, da pesca e da agricultura, bem como da troca e venda de seus produtos. Cultivavam cereais, plantas alimentícias e outras plantas, de onde extraíam fibras para tecer (algodão) e matérias corantes, como o anil. Conheciam uma espécie de milho e uma espécie de amendoim (diferente do milho e do amendoim brasileiros), a banana, algumas espécies de pimenta, o quiabo, o gergelim, a erva-doce. Extraíam azeite de palmeira, o dendê, para o preparo dos alimentos, e usavam bebidas fermentadas, feitas de frutas de palmeira e de grãos.

Sua alimentação era bastante rica, baseada em vegetais, leite e carne, pois criavam gado em quantidade. Criavam também animais domésticos: a cabra, o porco e a galinha. Conheciam o uso de vários metais, como o ferro, o cobre e o bronze. Trabalhavam em marfim, pedra, terracota, madeira e bronze.

Suas cerimônias e danças religiosas eram muito movimentadas e coloridas.


Folclore, Carybé

"O negro entra na sociedade brasileira como cultura dominada, esmagada. E as marcas da escravidão persistem, no disfarçado preconceito racial, na situação miserável de muitos. Não se pode pensar em Brasil sem levar em conta toda essa história." 
(ALENCAR, Francisco [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. p. 30.)

* O que devemos ao negro. O negro, além do índio, foi outro elemento muito importante na formação do nosso povo. Os mestiços descendentes de brancos e negros, mulatos, e os mestiços descendentes de negros e índios, cafuzos, deram muito de seu esforço e de seu trabalho à evolução histórica brasileira.

Uma das contribuições mais conhecidas do negro foi para os pratos típicos da cozinha do Nordeste, particularmente da Bahia, onde os africanos foram introduzidos em maior número.

Vindo como escravos e não como homens livres, os negros tiveram de se adaptar à vida dos senhores brancos. Por isso, os pratos africanos foram recriados aqui, misturando produtos originários da África com produtos da terra brasileira. O azeite-de-dendê combinou-se com os pratos de sal, e o coco e o leite de coco ajuntaram-se à maioria dos doces e dos quitutes. Todos nós ouvimos falar de vatapá, acarajé, xinxim; de doces como mungunzá, quindim, cocada, pé-de-moleque.

Além de criar pratos típicos para a cozinha brasileira, o negro introduziu na nossa linguagem termos que ainda continuamos usando: batuque, caçamba, canga, cafuné, caçula, cachaça, cafajeste, cachimbo, dengo, mandinga, maribondo, mucama, moleque, quitute, quitanda. As mães-pretas inventaram palavras doces e carinhosas para a linguagem das criancinhas: neném, dodói, dindinha, tatá, au-au.

Os negros trouxeram ainda, para o Brasil, vários instrumentos musicais usados na África: agogô, atabaque, berimbau, reco-reco, tamborim, zabumba.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História do Brasil: das origens à independência. São Paulo: Nacional, 1980.

O que devemos ao índio

Meditação, Élon Brasil

"Chegança” 

Sou Pataxó, Sou Xavante e Cariri, Ianomâmi, sou Tupi Guarani, sou Carajá. Sou Pancaruru, Carijó, Tupinajé, Potiguar, sou Caeté, Ful-ni-ô, Tupinambá. Depois que os mares Dividiram os continentes, Quis ver terras diferentes, Eu pensei: “vou procurar Um mundo novo, Lá depois do horizonte, Levo a rede balançante Pra no sol me espreguiçar”. Eu atraquei Num porto muito seguro, Céu azul, paz e ar puro... Botei as pernas pro ar. Logo sonhei Que estava no paraíso, Onde nem era preciso Dormir para se sonhar. Mas de repente Me acordei com a surpresa: Uma esquadra portuguesa Veio na praia atracar. Da Grande-nau, Um branco de barba escura, Vestindo uma armadura Me apontou pra me pegar. E assustado Dei um pulo na rede, Pressenti a fome, a sede, Eu pensei: “vão me acabar”. Me levantei De borduna já na mão. Aí, senti no coração, O Brasil vai começar.
 (Antonio Nóbrega e Wilson Freire, do CD Pernambuco falando para o mundo, 1998)

... antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade...
(Oswald de Andrade)

* Tribos.  As tribos indígenas do Brasil estão hoje classificadas segundo a etnia e a língua. Os grupos principais são: tupis-guaranis, habitantes do litoral, na época do descobrimento - os mais conhecidos são: potiguaras, caetés, tupinambás, tupiniquins, tamoios, temiminós, tabajaras e carijós; jês, habitantes do Brasil central - destacam-se os aimorés, os botocudos, os apinajés, os xavantes; caribes ou caraíbas e nuaruaques - estes dois últimos grupos encontravam-se, e ainda se encontram, no Brasil, na Amazônia e em partes do atual Estado de Mato Grosso.

* Organização tribal. As tribos se reuniam em nações, dentre as quais foi muito importante a nação dos índios tupis. Tinham um chefe geral, o tuxaua ou morubixaba, ao qual obedeciam os chefes guerreiros. Além do chefe guerreiro de uma tribo, havia ainda o chefe religioso, o pajé. As tribos mudavam frequentemente de lugar, isto é, eram nômades. Como viviam da caça, da pesca e de algum plantio, logo que animais e peixes começavam a faltar e o solo a produzir menos, procuravam novo lugar para viver. Invadiam territórios de outras tribos, a fim de expulsá-los. Daí estarem frequentemente em guerra.

As aldeias dos índios eram protegidas por uma cerca de paus, uma paliçada, chamada caiçara. Moravam em grandes abrigos, as ocas, feitos de troncos cobertos de folhas de palmeira. Os abrigos se agrupavam em torno de uma praça central, a ocara, onde se realizavam as festas e as cerimônias.

Os laços de união entre todos os membros de uma tribo eram muito fortes: qualquer provocação ou ataque a um deles atingia a todos os demais, levando a novas guerras. Uma lenda dos guaranis do Paraguai diz que eles e os tupis eram antigamente uma só nação. O que separou aqueles destes foi uma discussão por causa de um papagaio que os dois grupos reclamavam para si. Os mais fortes, porque eram mais numerosos (os tupis), acabaram ficando com o papagaio e com a terra, que era o Brasil, e expulsaram os outros, menos numerosos, que ficaram sendo os guaranis.

Algumas tribos, às vezes, utilizavam as igaçabas (grandes urnas de barro, onde era fabricado o cauim) para enterrar seus mortos.

Havia grande diferença entre o grau de adiantamento das tribos. Enquanto algumas tinham certo conhecimento de agricultura, outras viviam da maneira mais primitiva, da coleta, isto é, colhendo frutos de plantas que encontravam. Mas havia também características comuns à maioria das tribos: não conheciam a escrita, nem o uso de metais; não domesticavam animais, acreditavam nas divindades do bem e do mal; alguns praticavam a antropofagia, comendo a carne do inimigo forte e corajoso para absorver-lhe as qualidades. Viviam geralmente nus, pintando o corpo de vermelho e de preto, com tinturas extraídas de plantas, como u urucu, e o jenipapo.

* Técnicas e artes. Os índios faziam o cultivo das plantas nativas após a derrubada e a queimada das árvores, prática chamada coivara. Cultivavam a mandioca, o milho, o feijão, o amendoim, o abacaxi, a batata-doce, o tabaco, a banana e a pimenta. Além disso, colhiam frutos selvagens como o caju, o mamão, abóbora e cabaças. Da mandioca, do milho ou do caju fabricavam uma bebida, o cauim.

Como utensílios conheciam facas e machados de pedra polida. Como armas, tinham o tacape, o arco e a flecha, e lanças para as quais utilizavam pontas de pedras, de ossos e de dentes.

Algumas tribos conheciam a técnica da tecelagem, fazendo tangas e redes de fibras de palmeiras ou de algodão nativo. Era também desenvolvida a feitura de cestos e a técnica da cerâmica, ocupação exclusivamente feminina. Faziam -se recipientes variados e esteiras de palha.

Para navegar, nos rios ou no mar, construíam jangadas e canoas (igaras e ubás). As canoas podem ser feitas de um tronco escavado ou de cascas de certas árvores.


Travessia, Carybé

Para as festas utilizavam instrumentos sonoros: tambores (guararás), chocalhos (maracás) e flautas de osso (membis). As manifestações artísticas dos índios apareciam, sobretudo, nos objetos de cerâmica e nos enfeites. Cocares de penas e plumas, braceletes de sementes, combinadas com dentes humanos e de animais.


"Que diferença enorme existe entre as duas humanidades: uma tranquila, onde o homem é dono de todos os seus atos; outra, uma sociedade em explosão, onde é preciso um aparato, um sistema repressivo para poder manter a ordem e a paz. Se um indivíduo der um grito no centro de São Paulo, uma radiopatrulha poderá levá-lo preso. Se um índio der um tremendo berro no meio da aldeia, ninguém olhará para ele, nem irá perguntar por que ele gritou. O índio é um homem livre". 
(Orlando Vilas Boas, Visão, 10-2-1975)

* O que devemos ao índio. O índio foi um dos elementos formadores do povo brasileiro. os filhos de índios e de brancos, os mestiços mamelucos, muito contribuíram para o êxito da colonização.

Devemos ao índio a técnica do preparo do solo para o plantio, pois a coivara continua sendo usada no interior do Brasil. A rede (ini) também é uma herança do índio. No norte do país ela é utilizada para dormir, em substituição da cama, devido ao clima muito quente. No resto do país, ela é sinônimo de descanso.

Em várias regiões (Norte e Nordeste), continuam a ser usadas as jangadas e as canoas de um só tronco de árvore.

Nos alimentos que os índios nos legaram, a mandioca ocupa lugar principal, pois ainda é alimento constante de todo o país.

Uma das contribuições mais importantes dos índios tupis-guaranis está no nome de localidades, de plantas e de animais brasileiros: Jurumirim (juru= boca, mirim= pequeno; boca pequena), Itajubá (itá= pedra, juba= amarela; pedra amarela), Curitiba (curi= pinheiro, tiba= muito; pinheiral), Itaúna (itá= pedra, una= preta; pedra preta), Jacareí (jacaré= jacaré, i= água; rio dos jacarés), Iguaçu (i= água, açu= grande; água grande).

Na flora brasileira encontramos: ipê, guaraná, jabuticaba, caju, mandioca, taquara, carnaúba, jacarandá, gravatá, caatinga e muitos outros. Também muitos são os nomes de animais que a língua tupi nos legou: tapir, arara, tamanduá, jabuti, jacaré, cupim,, cutia, içá, jaquatirica, jibóia, paca, siri, sabiá, tatu, tucano, entre outros.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História do Brasil: das origens à independência. São Paulo: Nacional, 1980.