Instrumento de tortura "Roda da Fortuna"
Texto 1: O que a Inquisição veio fazer no Brasil? A Inquisição portuguesa só passou a frequentar as terras brasileiras no final do século XVI. Entre os anos 1540 e 1560, só houve dois casos: o do donatário de Porto Seguro, o blasfemo Pero do Campo Tourinho, e o do francês calvinista Jean de Bolés. O primeiro foi enviado para Lisboa a ferros, e o segundo, preso pelo bispo da Bahia, que tinha jurisdição sobre as heresias. Foram ocorrências isoladas e desvinculadas da preocupação maior do Santo Ofício lusitano e sua criação: perseguir os cristãos-novos judaizantes.
A estreia da Inquisição no Brasil ocorreu em 1591, com a primeira visitação do Tribunal de Lisboa à Bahia e a Pernambuco. Justifica-se: na segunda metade do século XVI, o Brasil recebeu muitos cristãos-novos envolvidos com a nascente economia açucareira. Eles viveram em paz durante décadas. Muitos continuaram a professar o judaísmo nas sinagogas domésticas, além de se unirem, pelo matrimônio, com os cristãos-velhos. A ameaça de índios na terra e de piratas no mar funcionava como força de coesão.
Tudo mudou com a chegada da visitação, que integrou nova estratégia inquisitorial, em tempo da União Ibérica, voltada para o Atlântico hispano-português. A estreia do Santo Ofício no Brasil amedrontou mais do que prendeu os cristãos-novos, embora tenha destroçado a sinagoga de Matoim, no Recôncavo Baiano. Em todo caso, deixou um rastro deletério, rompendo a solidariedade cotidiana que unia cristãos-velhos e novos da Colônia.
Ao longo do século XVII, outras visitações deram seguimento à ação inquisitorial, reforçada, no século XVIII, pela consolidação de uma rede de familiares e comissários, além da justiça eclesiástica, que pinçava suspeitos de heresia em suas visitas diocesanas. Foi esta a máquina que viabilizou a Inquisição no Brasil, resultando no seguinte balanço: 1.074 presos, sendo 776 homens e 298 mulheres; 48% deles e 77% delas eram cristãos-novos acusados de judaizar: a grande maioria os homens presos (62%) morava na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, enquanto a maioria das mulheres (54%) vivia em terra fluminense, seguidas de longe pelas mulheres da Bahia (14%).
O auge da ação inquisitorial ocorreu na primeira metade do século XVIII (51% dos presos). Vinte homens e duas mulheres da Colônia foram queimados em Lisboa, todos por judaizar. Dentre eles, o dramaturgo carioca Antônio José da Silva (1739) e a octogenária Ana Rodrigues, matriarca do engenho de Matoim. A velha sinhá embarcou para Lisboa acompanhada de uma escrava e morreu no cárcere em 1593. Nem assim ela escapou da fogueira. O Santo Ofício desenterrou seus ossos para queimá-los em auto de fé, no Terreiro do Paço. (Ronaldo Vainfas)
Texto 2: Por que os homossexuais eram perseguidos? Depois dos cristãos-novos judaizantes, os homossexuais foram os mais perseguidos pela Inquisição portuguesa: trinta homens "sodomitas" foram queimados na fogueira. Proporcionalmente, os gays constituíram o grupo social tratado com maior intolerância por esse Monstrum Terriblem. Foram mais torturados e degredados que os outros condenados e, não bastasse, receberam as penas mais rigorosas. Metade foi condenada a remar para sempre nas galés del Rei.
Mas somente os praticantes do que a Inquisição classificava como "sodomia perfeita" ardiam nas fogueiras. Esta perfeição consistia "na penetração do membro viril desonesto no vaso traseiro com derramamento de semente de homem". Os demais atos homoeróticos eram considerados pecados graves ou "molice".
A sodomia, entretanto, não foi estigmatizada e perseguida em todos os tribunais do Santo Ofício da Espanha, nem mesmo pela Inquisição portuguesa em seus primeiros anos de instalação. Isso demonstra que inexplicáveis fatores históricos, políticos e culturais estariam por trás do maior ou menor radicalismo da homofobia católica.
Variações e contradições da condenação moral dos desvios sexuais refletem a condição pantanosa, imprecisa e ilógica do catolicismo em relação ao amor entre pessoas do mesmo sexo. As razões cruciais que levaram a Inquisição a perseguir os homossexuais masculinos teriam sido duas. Ao condenar à fogueira apenas os praticantes da cópula anal, os inquisidores reforçavam a mesma maldição bíblica que condenava ao apedrejamento "o homem que dormir com outro homem como se fosse mulher". Ou seja, o crime é derramar o sêmen no vaso "antinatural", uma vez que judaísmo, cristianismo e islamismo se definem como essencialmente pronatalistas, quando o ato sexual se destina exclusivamente à reprodução. Daí a perseguição àqueles que ousassem ejacular fora do vaso natural da fecundação, uma insubordinação antinatalista inaceitável para povos dominados pelo dogma demográfico do "crescei e multiplicai-vos como as estrelas do céu e as areias do mar".
A segunda razão tem a ver com o estilo de vida andrógino e irreverente, quiçá revolucionário, dos próprios sodomitas, chamados de "filhos da dissidência". Eis o trecho de um discurso homofóbico lido num sermão de um Auto de Fé de Lisboa em 1645: "O crime de sodomia é gravíssimo e tão contagioso, que em breve tempo infecciona não só as casas, lugares, vilas e cidades, mas ainda Reinos inteiros! Sodoma quer dizer traição. Gomorra, rebelião. É tão contagiosa e perigosa a peste da sodomia, que haver nela compaixão é delito. Merece fogo e todo rigor, sem compaixão nem misericórdia!" (Luiz Mott)
Texto 3: Houve queima de bruxas e autos de fé por aqui? Nos tempos da Inquisição, muitos compartilhavam várias crenças mágico-religiosas misturando práticas cristãs, indígenas e africanas em nossa terra. Considerados hereges pelo Tribunal do Santo Ofício português, foram acusados de firmar pacto com o diabo e tachados de feiticeiros pela Igreja.
Adivinhações, sortilégios, uso de amuletos protetores, feitiços para relações amorosas, confecção de unguentos e poções mágicas, práticas curativas que fugiam aos padrões da medicina oficial, cerimônias de culto a ídolos pagãos, comunicação com os mortos, benzeduras, evocações ao diabo - enfim, todo este universo de crenças e práticas encantou a população colonial. No entanto, jogou seus protagonistas nos temidos cárceres inquisitoriais.
Mas, dentre os delitos heréticos do foro da Inquisição, a feitiçaria foi um dos menos perseguidos, tanto no Brasil como em Portugal, representando apenas cerca de 3,6% os acusados deste crime nos séculos XVII e XVIII. Nenhuma bruxa foi queimada no Brasil, porque todos os casos de réus acusados pelo Santo Ofício eram enviados para Portugal e lá julgados. E, na verdade, pouquíssimos bruxos e bruxas foram queimados. A maioria deles foi penalizada com degredo e prisão. Os que receberam a sentença de morte na fogueira corresponderam a cerca de 0,6% de todos os réus daquele período. Isto prova que Inquisição não é sinônimo de fogueira. A maioria dos que subiram aos cadafalsos portugueses era de cristãos-novos, supostamente judaizantes, ou seja, judeus convertidos ao cristianismo suspeitos de professarem sua fé original em segredo, alvo principal do Tribunal.
As outras penas inquisitoriais não foram menos atrozes: degredos para regiões inóspitas em Portugal, no Brasil ou na África, trabalhos forçados nas embarcações do rei, confiscos de bens, levando muitos à pobreza e à miséria, e ainda penas socialmente humilhantes e infamantes, como açoites públicos, uso de trajes típicos de condenados pela Inquisição e exposição à porta de uma igreja com uma vela na mão.
Os autos de fé eram símbolos inequívocos do poderio do Santo Ofício junto à população. Num domingo, saíam em procissão as autoridades inquisitoriais, eclesiásticas e também o rei, até chegarem a uma praça pública, onde estava montado um grande anfiteatro para o evento. Os condenados ouviam os sermões dos sacerdotes e, depois, a leitura pública de suas sentenças. O ápice do espetáculo era a execução dos "hereges": alguns agonizavam nas fogueiras, por serem renitentes em suas crenças, e outros eram queimados já mortos, estrangulados antes por terem se rendido à fé católica nos últimos instantes. Mas, aqui no Brasil, não tivemos nenhum auto de fé desta natureza, uma vez que o Tribunal de Lisboa centralizou todos os trabalhos dos casos relativos ao Brasil, desde o início do processo dos réus até sua sentença final. (Daniela Buono Calainho)
Texto 4: Assim como os católicos, os protestantes perseguiram seus fiéis? A Inquisição não foi o único caso de intolerância movida em nome de Deus na Época Moderna. Embora não houvesse a institucionalização de tribunais similares aos do Santo Ofício, também foram usadas estratégias de controle de fé nos locais em que o protestantismo era dominante, levando à perseguição por crimes como adultério, discordância dos dogmas protestantes e bruxaria.
Na Alemanha, o líder protestante Martinho Lutero (1483-1546) exigiu perseguições aos anabatistas, grupo cristão mais radical da Reforma, porque, entre outras questões, eles não aceitavam as regras da Igreja Evangélica e divergiam sobre o batismo. A decisão causou a expulsão, o encarceramento, a tortura e a execução de milhares de pessoas. Lutero também divulgou textos com críticas aos judeus - embora sem maiores repercussões na época, estes escritos acabariam utilizados pela Alemanha nazista, em pleno século XX.
Em Genebra, um dos berços da Reforma Protestante e onde ela se mostrou bastante radical, funcionou uma verdadeira "polícia da fé". João Calvino (1509-1564), devido à sua autoridade sobre os protestantes suíços, era conhecido como o "papa de Genebra". Ao organizar a Igreja Presbiteriana, instaurou comissões compostas de religiosos e leigos: a Venerável Companhia, responsável pelo magistério, e o Consistério, que zelava pela disciplina religiosa. Para isso, promovia confissões, denúncias, espionagens e visitas às residências, levando muitos à prisão, à tortura, ao julgamento e, em alguns casos, à morte.
A população era proibida de cultivar certos hábitos, como jogar, dançar e representar. Alguns pensadores foram perseguidos, como o médico e humanista espanhol Miguel Servet Griza. Ele foi preso, condenado e queimado em efígie - representado por um boneco. Fugiu em direção à Itália, mas acabou preso em Genebra, onde foi processado pelo Conselho presidido por Calvino e queimado por causa de proposições vistas como antibíblicas e heréticas, entre outras culpas.
Na Inglaterra, uma verdadeira caça às bruxas levou à morte centenas de mulheres acusadas de feitiçaria. A experiência persecutória inglesa foi ainda "exportada" para as colônias na América do Norte, como no famoso episódio das "bruxas de Salem", ocorrido em Massachusetts, em fins do século XVII, em que várias adolescentes foram mortas, acusadas de promover reuniões em torno de uma fogueira, nas quais, supostamente, invocavam espíritos.
Sem dúvida, não são poucos os exemplos de intolerância religiosa nos variados espaços que vivenciaram a Reforma Protestante, mas nada que representasse o equivalente dos estruturados tribunais inquisitoriais católicos. (Angelo Adriano Faria de Assis)
Texto 5: Os índios também foram perseguidos? Quando as epidemias grassaram nas Américas, dizimando numa guerra bacteriológica boa parte das populações indígenas; quando a exploração do trabalho dos nativos pelos colonos levou à escravização indiscriminada; quando a atuação das ordens religiosas reduziu os índios nas missões, ainda assim não foram esses todos os desafios que os povos indígenas enfrentaram. Outro ainda estava por vir: a atuação do Tribunal do Santo Ofício.
Estudos indicam que 33 índios e mamelucos foram prisioneiros da Inquisição em Lisboa entre os séculos XVI e XVIII. Mas, se levarmos em conta as denúncias, o número de casos é bem maior. Somente no século XVIII foram registradas 273 denúncias entre índios e descendentes mestiços de diferentes procedências étnicas por diversas razões.
Uma índia de nome Narcisa, por exemplo, foi acusada em Vila Borba Nova, em 1755, de fazer um malefício: uma boneca, com cabelos, ossos de peixes, retalhos de roupas rotas e amarrilhos, tudo cravado com agulhas e alfinetes. Ao desmanchar a boneca, a irmã da enferma, Benta de Souza, teve as mãos feridas em chagas sem que houvesse curativo, a não ser com exorcismos e azeite bento.
Narcisa e mais 157 índios acusados de feitiçaria e práticas mágicas não escaparam dos agentes da Inquisição. Outros foram envolvidos em roubo, venda de hóstias consagradas para a produção de amuletos - as populares bolsas de mandinga - ou cartas de tocar, que são os escritos usados como magia amorosa para seduzir o amado.
Havia ainda índios que, por virtuosismo, descobriram os malefícios com adivinhações, por meio de quibando, uma prática de adivinhação, recorrendo a peneiras e tesouras. Nomeavam seus malfeitores e desenterravam as velhacarias. Um caso célebre é o de outra índia, Sabina, em Belém, que atendia o próprio governador do Grão-Pará, João de Abreu Castelo Branco.
O Tribunal foi mais rigoroso com aqueles que se consagraram em verdadeiros rituais gentílicos, tão mais espantosos aos ouvidos do inquisidor. Vários índios foram acusados de beber jurema e "descer demônios", enquanto o mestre tocava o maracá entoando a dança embalada pela cantoria indígena. Uma dessas descrições é a de D. Souza e Castro, índio principal dos tabajaras, que foi dar conta pessoalmente à Mesa do Santo Ofício, em Lisboa, em 1720. Contava por meio de seu intérprete, o padre Antônio Leal, que a índia Antônia Guiragasu "invocava os demônios que lhe respondiam várias perguntas do outro mundo". Para isso, "tomava umas grandes fumaças de tabaco de cachimbo até ficar como fora de si".
Outro motivo de delações foi a bigamia. Das 78 denúncias, 24 foram processados, mas não há sentença final em 17 deles. Outros seis foram tomados como "casos extraordinários de absolvição" pela "ignorância e rusticidade" dos índios. Essa sentença "benevolente" não poupou Custódio da Silva, em 1741. Aos 28 anos, prestou seu depoimento por meio de um intérprete. Foi julgado e qualificado como bígamo. Condenado, abjurou de leve, por ser suspeito de ferir os preceitos da fé católica. Sob o olhar de uma multidão, fez auto da fé na forma costumeira. Foi açoitado pelas ruas de Lisboa até a Igreja de São Domingos, onde, na presença do rei D. João V, do príncipe e dos infantes D. Pedro e D. Antônio, inquisidores, ministros e toda a nobreza, foi sentenciado ao degredo por cinco anos para trabalhar nas galés de Sua Majestade. [...] (Maria Leônia Chaves de Resende)
Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, nº 73, outubro 2011. p. 21-23, 26, 31.