"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos
Mostrando postagens com marcador Bruxaria. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Bruxaria. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

1692, Salem Village

Bruxaria na Vila de Salem, Artista desconhecido

AS BRUXAS DE SALEM

- Cristo sabe quantos demônios há aqui? - ruge o reverendo Samuel Parris, pastor da vila de Salem, e fala de Judas, o demônio sentado à mesa do Senhor, que se vendeu por trinta dinheiros, 3,15 em libras inglesas, irrisório preço de uma escrava.

Na guerra dos cordeiros contra os dragões, clama o pastor, não há neutralidade possível nem refúgio seguro. Os demônios meteram-se em sua própria casa: uma filha e uma sobrinha do reverendo Parris foram as primeiras atormentadas pelo exército de diabos que tomou de assalto esta puritana vila. As meninas acariciaram uma bola de cristal, querendo ver a sorte, e viram a morte. Desde que isso aconteceu, são muitas as jovenzinhas de Salem que sentem o inferno no corpo: a maligna febre as queima por dentro e se revolvem e se retorcem, rodam pelo chão espumando e uivando blasfêmias e obscenidades que o Diabo lhes dita.

O médico, William Griggs, diagnostica o malefício. Oferecem a um cão um bolo de farinha de centeio misturada com urina das possuídas, mas o cão come, mexe o rabo, agradecido, e vai embora para dormir em paz. O Diabo prefere a moradia humana.

Entre convulsão e convulsão, as vítimas acusam.

Exame de uma bruxa, Thompkins H. Matteson

São mulheres, e mulheres pobres, as primeiras condenadas à forca. Duas brancas e uma negra: Sarah Osborne, uma velha prostrada que há anos chamou aos gritos seu servente irlandês, que dormia no estábulo, e abriu-lhe um lugarzinho na cama; Sarah Good, uma mendiga turbulenta, que fuma cachimbo e responde resmungando às esmolas; e Tituba, escrava negra das Antilhas, apaixonada por um demônio todo peludo e de nariz comprido. A filha de Sarah Good, jovem bruxa de quatro anos de idade, está presa no cárcere de Boston, com grilhões nos pés.

A bruxa nº 1, Joseph E. Baker

Mas não cessam os gemidos de agonia das jovenzinhas de Salem e se multiplicam as acusações e condenações. A caçada de bruxas sobe da suburbana Salem Village ao centro de Salem Town, da vila ao porto, dos malditos aos poderosos: nem a esposa do governador se salva do dedo que aponta culpados. Balançam na força prósperos granjeiros e mercadores, donos de barcos que comerciam com Londres, privilegiados membros da Igreja que desfrutavam direito à comunhão.

Anuncia-se uma chuva de enxofre sobre Salem Town, o segundo porto de Massachusetts, onde o Diabo, trabalhador como nunca, anda prometendo aos puritanos cidades de ouro e sapatos franceses.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo: Os nascimentos. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 262.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Tituba

Tituba e as crianças, Alfred Fredericks

Na América do Sul tinha sido caçada, lá na infância, e tinha sido vendida uma vez e outra e outra, e de dono em dono tinha ido parar na vila de Salem, na América do Norte.

Lá, naquele santuário puritano, a escrava Tituba servia na casa do reverendo Samuel Parris.

As filhas do reverendo a adoravam. Elas sonhavam acordadas quando Tituba contava contos de fantasmas ou lia os seus futuros numa clara de ovo. E no inverno de 1692, quando as meninas foram possuídas por Satã e se reviraram e uivavam, só Tituba conseguiu acalmá-las, e as acariciou e sussurrou contos para elas até que adormecessem em seu regaço.

Isso a condenou: era ela quem havia metido o inferno no virtuoso reino dos eleitos de Deus.

E a maga conta-contos foi atada ao cadafalso, em praça pública, e confessou.

Foi acusada de cozinhar bolos com receitas diabólicas e a açoitaram até que disse que sim.

Foi acusada de dançar nua nos festins das bruxas e a açoitaram até que disse que sim.

Foi acusada de dormir com Satanás e a açoitaram até que disse que sim.

E quando lhe disseram que suas cúmplices eram duas velhas que jamais iam à igreja, a acusada se transformou em acusadora e apontou com o dedo aquele par de endemoniadas e não foi mais açoitada.

E depois outras acusadas acusaram.

E a forca não parou de trabalhar.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 137.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A intolerância religiosa dos Estados europeus na Época Moderna

No filme clássico de David W. Grifith, Intolerância (1916), um dos episódios narrados é A Noite de São Bartolomeu, ocorrido em 1572 – o grande massacre de huguenotes (calvinistas) pelos católicos na França. Foi o tempo das “guerras de religião” na França, como em outras partes da Europa ocidental. A rigor, tais guerras começaram no início do século XVI, em pleno território germânico – palco da Reforma Luterana – e só terminaram em 1648, com o fim da Guerra dos Trinta Anos. Isso significa que a intolerância religiosa foi motivo real de muitos conflitos entre reis e príncipes europeus nos primeiros séculos da Época Moderna, embora não estivessem ausentes outras motivações.

O sentimento religioso era mesmo central na definição das identidades individuais e coletivas nesse período. Mas, para entender o fenômeno da intolerância nessa época, é preciso destacar que, a partir do século XVI, os Estados europeus passaram a se definir, em grande medida, como Estados confessionais, isto é, dotados de uma religião oficial. A ruptura da cristandade provocada pelas reformas protestantes fez da identidade religiosa um elemento central para reis e príncipes e, por vezes, um divisor de águas no jogo de alianças e conflitos do período. Um marco desse processo foi estabelecido na Paz de Augsburgo (1555), que pôs fim às guerras entre os príncipes luteranos e o imperador Carlos V, ao estabelecer-se o princípio cujus regio, hujus religio: a religião do príncipe deveria ser a religião dos súditos.

Longe de apaziguar os ânimos, a consagração desse princípio estimulou a intolerância e hostilidade contra minorias religiosas em toda parte. Na Inglaterra anglicana, católicos e puritanos foram perseguidos; na França dilacerada, católicos e calvinistas viviam em guerra fratricida; na própria Holanda, tão afamada por sua tolerância religiosa, o conflito entre gomaristas e arminianos foi dilacerante, os primeiros defendendo o princípio da predestinação de forma literal; os segundos advogando alguma importância para as obras terrenas do devoto.

Contudo, em uma perspectiva comparativa acerca da geografia religiosa na época, pode-se dizer que os Países Baixos forneceram o exemplo de maior tolerância religiosa, ao menos oficialmente. Basta dizer que cerca de um terço da população das sete províncias da República das Províncias Unidas permaneceu católica, ainda que tenham sido cerceadas as missas e procissões. A província da Holanda, em particular, tornou-se o principal refúgio de cristãos-novos ibéricos, sobretudo portugueses, no século XVII. Ali os cristãos-novos apostasiaram do catolicismo, assumindo-se como “judeus públicos” e construindo uma importante comunidade, estimulados pelas autoridades holandesas: a Talmud Tora. Vários deles estiveram no Recife holandês, entre 1636 e 1654, fundando a primeira sinagoga das Américas: a Kahal Kadosh Zur Israel.

No pólo oposto à Holanda, os países ibéricos instituíram a temível Inquisição, tribunal de fé especializado em perseguir os hereges da religião católica, a única permitida nos dois reinos a partir de fins do século XV. No caso ibérico, porém, a intolerância religiosa teve pouco a ver com a Reforma Protestante, devendo-se antes à existência de numerosas comunidades judaicas e muçulmanas ali fixadas desde a Idade Média. Na Espanha, a Inquisição foi instalada em 1478, pois o número de conversos era já elevado desde o final do século XIV, e coincidiu com o início da unificação política dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela. A política de intolerância foi poderoso instrumento unificador, sendo a Espanha marcada por enormes diferenças culturais e lingüísticas. Em 1492, a intolerância avançou com a expulsão dos judeus remanescentes e a conquista de Granada, último bastão islâmico na península Ibérica. No início do século XVII, também os mouros foram obrigados à conversão.

Em Portugal, onde havia forte tradição de tolerância e convívio entre os três monoteísmos, d. Manuel decretou a conversão forçada de todos os judeus e muçulmanos do reino, em 1496, em grande parte por influência espanhola. A Inquisição só seria estabelecida, porém, a partir de 1536, já no reinado de seu sucessor, d. João III.

Nos dois reinos, as principais vítimas da Inquisição foram os cristãos-novos, descendentes dos judeus, embora somente uma pequena parcela deles tenha sido executada na fogueira. [...]


Queima de uma bruxa na fogueira.
Willisau, Suíça, em 1447

A intolerância dos Estados europeus não se restringiu às “grandes religiões”. Os séculos XVI e XVII testemunharam o apogeu da “caça às bruxas”, sobretudo na França: uma autêntica “cruzada” contra as religiosidades populares, meio cristãs, meio pagãs – demonizadas pelos teólogos e juízes. Testemunharam, ainda, perseguições contra os desviantes da moral cristã em matéria sexual, seja no mundo católico, seja no protestante: as maiores vítimas, nesse caso, foram os praticantes de relações homoeróticas. Os chamados sodomitas foram condenados à fogueira em vários países, sobretudo na Holanda, França e principados germânicos. Nos países ibéricos, em comparação, foram mais tolerados. Mas não saíram ilesos.

Ronaldo Vainfas. Intolerância. In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 3: Idade Moderna. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 51-52.


NOTA: O texto "A intolerância religiosa dos Estados europeus na Época Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 2 de junho de 2012

Assim nasceu a bruxaria

Para pregar o bem, cristãos convenciam seu rebanho da existência do mal: o demônio estava solto e a mulher era perigosa

Por Carlos Roberto Nogueira


Inferno,  artista desconhecido

O cristianismo surgiu com a proposta de ser uma religião universal, mas o mundo tinha particularidades, sobretudo religiosas. Para levar a Boa-Nova a todos os homens, os cristãos precisavam se impor sobre seus oponentes. Assim foi construída a Igreja, primeiro apartando-se do judaísmo, o mais incômodo adversário pela inquietante proximidade. Eliminados os judeus - "assassinos de Cristo" -, os heterodoxos foram os seguintes a ser calados ou perseguidos.

Ao longo do período medieval, a Igreja era atormentada pelas seitas de "adoradores do diabo", e por isso as perseguiu. Com rigor cada vez maior, chegou à caça às bruxas da Europa moderna: a combinação trágica e eficaz entre a alteridade e a erudição.

A construção de uma mitologia satânica implicou um monumental esforço de reconhecimento do demônio, de suas formas e possibilidades de atuação. Também era preciso identificar seus agentes, ou seja, aqueles que, embora inseridos no rebanho dos fiéis, tramavam secretamente para a sua perdição. Entre estes estava a mulher. Teólogos e eruditos medievais a converteram em bruxa, o suprassumo da traição e da maldade, o veículo preferencial de toda a malignidade de Satã - enfim, o feminino em toda a sua tragicidade.

A doutrina cristã apresentava como razão para a submissão feminina a própria Criação: se o homem não foi criado pela mulher, ela estava numa posição automaticamente submissa. E ela também era a introdutora do pecado responsável pela condenação dos homens aos tormentos deste e do outro mundo, tornando-se a vítima e, ao mesmo tempo, a parceira consciente do diabo. De presa preferencial do demônio, Eva - a primeira mulher - foi convertida em seu lugar-tenente.

Os movimentos e seitas que ameaçavam e se opunham à Igreja no período medieval levaram à conclusão de que o diabo estava solto. Teólogos e eruditos deixaram de sustentar que o demônio tinha sido totalmente vencido. Se assim fosse, não haveria razão para a continuada existência da Igreja.

O rumor público serviu para ajudar a identificar o mal e seus agentes, especialmente numa Europa em crise. O continente convivia com a peste, as guerras, o Cisma do Papado - a existência de um papa em Avignon e outro em Roma, cada um deles se proclamando o verdadeiro - e a súbita ruptura do mundo tradicional, que eram terríveis novidades certamente causadas por Satã e seus representantes, fossem feiticeiros, adivinhos ou judeus. Havia um imaginário frenético de um mundo em mudança, onde os homens assistiam perplexos à traição do costumeiro, ou seja, da pacífica continuidade que deveria levar o mundo de sempre à bem-aventurança da Jerusalém Celeste. Eles se perguntavam "chorando e gemendo neste vale de lágrimas": por que os diabos agora se apoderam de tudo e de todos, destruindo o rebanho cristão, com a misteriosa permissão de Deus?

Deste modo, a partir do século XIV, o medo do fim do mundo e da danação eterna é intensificado e difundido na Europa de forma jamais vista. Mas esta angústia em relação ao mal não produziria efervescência sem a ação dos pregadores mendicantes, especialmente franciscanos e dominicanos. Conclamando todos ao arrependimento e à penitência, eles evocavam os horrores dos castigos eternos para obter a cura espiritual da cristandade.

Os esforços didáticos da pregação, em vez de tranquilizar as consciências, acabaram impondo, através do diabo, um rígido código ético e moral a partir do final do século XV. Resultado: todos os fatos da vida coletiva foram justificados pela sombria e inescapável mediação do Maligno.

A humanidade era atormentada pela cólera divina, o Dies Irae, e pelo medo de Satã, estreitamente associado à espera do fim dos tempos no senso comum. O Martelo das Bruxas, o "Manual de Caça às Bruxas", assim o enuncia: "Em meio às calamidades de um século que desmorona, o mundo em seu ocaso desce para seu declínio e a malícia dos homens aumenta". E Satã "sabe em sua raiva que tem pouco tempo".

Assim, foi no início dos Tempos Modernos, e não na Idade Média, que o diabo e seus seguidores ocuparam o cenário principal do imaginário europeu. A era das reformas, o período das dissidências religiosas na cristandade que deu origem ao Protestantismo, correspondeu ao momento máximo da repressão à bruxaria. A presença do diabo era necessária para justificar o árduo e ininterrupto esforço missionário, ao mesmo tempo em que a existência de um Satã todo-poderoso servia de fundamento para toda sorte de medidas repressivas e de violências, transformadas em luta contra o diabo, seus agentes e suas armadilhas.


Cena de execução: queima de uma mulher - bruxa - em Willisau, Suíça, 1447. Crônica de Schilling de Lucema (1513)

Esse é o momento do "triunfo de Satã". Herdando os conceitos e as imagens modeladas pelas consciências medievais, o início da modernidade emprestou ao demônio uma coerência e uma difusão jamais alcançadas. O medo desmesurado e onipresente do demônio estava associado, na mentalidade popular, à espera do fim do mundo. A luta religiosa conferiu ao diabo o seu estatuto de grandiosidade: ele é o grande rebelde. As reformas confirmaram seu direito de existir em toda a sua potência, em toda a sua majestade. E as perseguições, os processos inquisitoriais, acabaram materializando as ilusões - por que não dizer decepções? - e os medos de uma cristandade que se sentia permanentemente ameaçada pelo mal.

Carlos Roberto Nogueira. Assim nasceu a bruxaria. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 5, nº 56, maio de 2010. p. 18-20.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Cultura afro-brasileira

Dança de negros, Zacharias Wagener

Texto 1: Calundu

No Brasil dos séculos XVII e XVIII, calundu representava a prática de curandeirismo e uso de ervas com a ajuda dos métodos de adivinhação e possessão. O termo calundu era associado à palavra "quibundo", de origem quimbundo (língua banto), que designa a possessão de uma pessoa por um espírito. As pessoas que praticavam o calundu eram conhecidas como curandeiras. Possuíam grande influência sobre a comunidade, pois eram consideradas importantes líderes religiosos. Por isso, eram sempre perseguidos pelas autoridades locais. Na cidade de São Paulo, por exemplo, algumas africanas curandeiras eram famosas, como Maria D'Aruanda e Mãe Conga, procuradas por serem "desinquietadoras de escravos".

Os curandeiros detinham o conhecimento de certas "técnicas medicinais". Na realidade, elas eram uma mistura de costumes africanos, portugueses e indígenas, que consistiam, basicamente, no uso de ervas, frutos e produtos naturais fáceis de encontrar. Com isso, os curandeiros atendiam a doentes de todas as camadas sociais, sobretudo os escravos, que possuíam poucos recursos. Além de produtos naturais, também sabiam manipular substâncias químicas, como venenos, sendo procuradas pelos escravos maltratados desejosos por matar os seus proprietários ou apenas por deixá-los mais tranquilos. Nesse caso, era-lhes dado algum calmante, que os tornavam inofensivos, parecendo estar sob efeito de encanto ou feitiço. Por isso, os curandeiros eram conhecidos como feiticeiros ou bruxos.

Esses indivíduos, na sua maioria africanos, eram considerados verdadeiros líderes, na medida em que conseguiam amenizar as agruras causadas pelo sistema escravista ao "amansar" ou até mesmo matar os senhores mais cruéis, curar as doenças dos cativos, prever-lhes um futuro melhor e, enfim, propiciar apoio e solidariedade aos seus companheiros. Dessa forma, eram perseguidos e controlados pelas autoridades locais.

Por conta de suas características, pode-se afirmar que a prática do calundu ou do curandeirismo recebeu influências das tradições da África Centro-Ocidental, nas quais, além dos ancestrais, outros indivíduos são dotados de caráter sagrado. É o caso dos reis, chefes, pais e os ligados à religião, como aqueles que praticam a adivinhação e o curandeirismo.

Nessas sociedades centro-ocidentais africanas, os valores positivos, como a saúde, a harmonia, a fecundidade e a riqueza eram considerados importantes. Tudo aquilo que era contrário, isto é, a doença, a inferioridade e a escravidão, resultava de feitiçarias provocadas por pessoas mal-intencionadas, por espíritos malévolos ou esquecidos pela comunidade. Para conseguir se livrar dos aspectos negativos e retomar a harmonia, era necessário, em primeiro lugar, descobrir a causa dos infortúnios. Por ser oculta, a causa só seria descoberta pelo curandeiro, que, dotado de um poder especial, se comunicava com os ancestrais, que a revelavam. Em segundo lugar, era preciso realizar cerimônias com danças, músicas e rituais de possessão, bem como utilizar símbolos, como os objetos sagrados e mágicos em homenagem aos ancestrais.

Para muitos africanos que estavam no Brasil, o calundu ou curandeirismo, além de ser uma oportunidade de expressar suas visões de mundo e crenças religiosas, era uma forma de luta e de resistência ao sistema escravista, uma tentativa de retomarem o que consideravam importante e que haviam perdido com a escravidão e a diáspora.

No conjunto de crenças africanas sobre o universo, em especial na região Centro-Ocidental, era (e ainda é até hoje) atribuída uma grande importância aos espíritos dos ancestrais, pois são considerados os seres intermediários entre o homem e o Ser Supremo, criador de todo o universo. Para tanto, os ancestrais são dotados de muita energia, chamada de energia vital, adquirida e acumulada durante a sua existência na Terra. Os ancestrais foram grandes homens, que tiveram uma existência repleta de ações dignas e realizações importantes. Deixaram, assim, uma lição, uma herança a ser seguida pelos seus descendentes.

Por isso, para se conseguir os valores positivos e levar uma vida com harmonia, não se poderia deixar de cultuar os seus ancestrais mortos, agradando-os com oferendas, sobretudo, aqueles que deram origem às comunidades. Ainda mais quando se acreditava que, com a morte, a energia vital poderia se dissipar. E, para que isso não ocorresse, era necessário realizar oferendas, preces e rituais fúnebres, objetivando a manutenção da energia vital mesmo depois da morte.

As oferendas e homenagens aos ancestrais eram oferecidas em lugares sagrados, em geral, no meio da natureza, debaixo de árvores, num bosque, em rios, ou mesmo em suas tumbas, nos cemitérios e altares construídos nas aldeias e nas encruzilhadas. Era muito comum oferecer alimentos e bebidas.

Além de serem cultuados e reverenciados, os mortos tinham que receber um enterro digno. Como verdadeiro rito de passagem, no qual acontece a separação física do mundo profano e a chegada do morto ao mundo sagrado dos ancestrais, os enterros deveriam ser realizados conforme as tradições, com velório, preparação do morto, sepultamento e luto.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 156-159.

Texto 2: Ilê Aiyê

Mulheres africanas, Surama Caggiano


Se me perguntares de que origem 
eu sou
Eu sou de origem africana
Com muito orgulho, eu sou [...]

Pisando firme no chão, cantando alto, valorizando suas raízes, o bloco Ilê Aiyê enche de alegria as ruas de Salvador, na Bahia. E mostra o quanto o Brasil é preto. Mesmo tendo sido abafada durante quatro séculos, a cultura negra espalha-se pelo país. E explode com força nos terreiros religiosos, nas rodas de samba, nos afoxés baianos, como o Filhos de Gandhi e o Badauê, no sonho de Buziga, compositor do Ilê Aiyê:

O que será do Ilê Aiyê
Será integração negras raízes
Pisando firme no chão
Até que um dia haverá de alguém
Compreensão, meu povo
Nós somos todos irmãos [...]

Em diversas cidades, inúmeros grupos negros buscam afirmar o valor de sua gente e denunciar as injustiças que vieram da escravidão. Eles continuam a luta de Zumbi, Isidoro, Chico Dragão do Mar, Tonho Paciência, Nico Mulungu, João Cândido e muitos outros. [...]

Dom José Maria Pires, negro, arcebispo da Igreja Católica de João Pessoa, na Paraíba, resume num sermão os novos tempos:

- Pretos, meus irmãos! Como nossos antepassados, viemos de vários lugares. Diferentes deles, trazemos na pele colorações variadas. Na alma, crenças diferentes. Mas neles e em nós estão presentes as marcas da negritude. Somos negros e não nos envergonhamos, não queremos mais nos envergonhar de sê-lo!

ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 255.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

A Inquisição no Brasil

Instrumento de tortura "Roda da Fortuna"

Texto 1: O que a Inquisição veio fazer no Brasil? A Inquisição portuguesa só passou a frequentar as terras brasileiras no final do século XVI. Entre os anos 1540 e 1560, só houve dois casos: o do donatário de Porto Seguro, o blasfemo Pero do Campo Tourinho, e o do francês calvinista Jean de Bolés. O primeiro foi enviado para Lisboa a ferros, e o segundo, preso pelo bispo da Bahia, que tinha jurisdição sobre as heresias. Foram ocorrências isoladas e desvinculadas da preocupação maior do Santo Ofício lusitano e sua criação: perseguir os cristãos-novos judaizantes.

A estreia da Inquisição no Brasil ocorreu em 1591, com a primeira visitação do Tribunal de Lisboa à Bahia e a Pernambuco. Justifica-se: na segunda metade do século XVI, o Brasil recebeu muitos cristãos-novos envolvidos com a nascente economia açucareira. Eles viveram em paz durante décadas. Muitos continuaram a professar o judaísmo nas sinagogas domésticas, além de se unirem, pelo matrimônio, com os cristãos-velhos. A ameaça de índios na terra e de piratas no mar funcionava como força de coesão.

Tudo mudou com a chegada da visitação, que integrou nova estratégia inquisitorial, em tempo da União Ibérica, voltada para o Atlântico hispano-português. A estreia do Santo Ofício no Brasil amedrontou mais do que prendeu os cristãos-novos, embora tenha destroçado a sinagoga de Matoim, no Recôncavo Baiano. Em todo caso, deixou um rastro deletério, rompendo a solidariedade cotidiana que unia cristãos-velhos e novos da Colônia.

Ao longo do século XVII, outras visitações deram seguimento à ação inquisitorial, reforçada, no século XVIII, pela consolidação de uma rede de familiares e comissários, além da justiça eclesiástica, que pinçava suspeitos de heresia em suas visitas diocesanas. Foi esta a máquina que viabilizou a Inquisição no Brasil, resultando no seguinte balanço: 1.074 presos, sendo 776 homens e 298 mulheres; 48% deles e 77% delas eram cristãos-novos acusados de judaizar: a grande maioria os homens presos (62%) morava na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, enquanto a maioria das mulheres (54%) vivia em terra fluminense, seguidas de longe pelas mulheres da Bahia (14%).

O auge da ação inquisitorial ocorreu na primeira metade do século XVIII (51% dos presos). Vinte homens e duas mulheres da Colônia foram queimados em Lisboa, todos por judaizar. Dentre eles, o dramaturgo carioca Antônio José da Silva (1739) e a octogenária Ana Rodrigues, matriarca do engenho de Matoim. A velha sinhá embarcou para Lisboa acompanhada de uma escrava e morreu no cárcere em 1593. Nem assim ela escapou da fogueira. O Santo Ofício desenterrou seus ossos para queimá-los em auto de fé, no Terreiro do Paço. (Ronaldo Vainfas)

Texto 2: Por que os homossexuais eram perseguidos?  Depois dos cristãos-novos judaizantes, os homossexuais foram os mais perseguidos pela Inquisição portuguesa: trinta homens "sodomitas" foram queimados na fogueira. Proporcionalmente, os gays constituíram o grupo social tratado com maior intolerância por esse Monstrum Terriblem. Foram mais torturados e degredados que os outros condenados e, não bastasse, receberam as penas mais rigorosas. Metade foi condenada a remar para sempre nas galés del Rei.

Mas somente os praticantes do que a Inquisição classificava como "sodomia perfeita" ardiam nas fogueiras. Esta perfeição consistia "na penetração do membro viril desonesto no vaso traseiro com derramamento de semente de homem". Os demais atos homoeróticos eram considerados pecados graves ou "molice".

A sodomia, entretanto, não foi estigmatizada e perseguida em todos os tribunais do Santo Ofício da Espanha, nem mesmo pela Inquisição portuguesa em seus primeiros anos de instalação. Isso demonstra que inexplicáveis fatores históricos, políticos e culturais estariam por trás do maior ou menor radicalismo da homofobia católica.

Variações e contradições da condenação moral dos desvios sexuais refletem a condição pantanosa, imprecisa e ilógica do catolicismo em relação ao amor entre pessoas do mesmo sexo. As razões cruciais que levaram a Inquisição a perseguir os homossexuais masculinos teriam sido duas. Ao condenar à fogueira apenas os praticantes da cópula anal, os inquisidores reforçavam a mesma maldição bíblica que condenava ao apedrejamento "o homem que dormir com outro homem como se fosse mulher". Ou seja, o crime é derramar o sêmen no vaso "antinatural", uma vez que judaísmo, cristianismo e islamismo se definem como essencialmente pronatalistas, quando o ato sexual se destina exclusivamente à reprodução. Daí a perseguição àqueles que ousassem ejacular fora do vaso natural da fecundação, uma insubordinação antinatalista inaceitável para povos dominados pelo dogma demográfico do "crescei e multiplicai-vos como as estrelas do céu e as areias do mar".

A segunda razão tem a ver com o estilo de vida andrógino e irreverente, quiçá revolucionário, dos próprios sodomitas, chamados de "filhos da dissidência". Eis o trecho de um discurso homofóbico lido num sermão de um Auto de Fé de Lisboa em 1645: "O crime de sodomia é gravíssimo e tão contagioso, que em breve tempo infecciona não só as casas, lugares, vilas e cidades, mas ainda Reinos inteiros! Sodoma quer dizer traição. Gomorra, rebelião. É tão contagiosa e perigosa a peste da sodomia, que haver nela compaixão é delito. Merece fogo e todo rigor, sem compaixão nem misericórdia!" (Luiz Mott)

Texto 3: Houve queima de bruxas e autos de fé por aqui? Nos tempos da Inquisição, muitos compartilhavam várias crenças mágico-religiosas misturando práticas cristãs, indígenas e africanas em nossa terra. Considerados hereges pelo Tribunal do Santo Ofício português, foram acusados de firmar pacto com o diabo e tachados de feiticeiros pela Igreja.

Adivinhações, sortilégios, uso de amuletos protetores, feitiços para relações amorosas, confecção de unguentos e poções mágicas, práticas curativas que fugiam aos padrões da medicina oficial, cerimônias de culto a ídolos pagãos, comunicação com os mortos, benzeduras, evocações ao diabo - enfim, todo este universo de crenças e práticas encantou a população colonial. No entanto, jogou seus protagonistas nos temidos cárceres inquisitoriais.

Mas, dentre os delitos heréticos do foro da Inquisição, a feitiçaria foi um dos menos perseguidos, tanto no Brasil como em Portugal, representando apenas cerca de 3,6% os acusados deste crime nos séculos XVII e XVIII. Nenhuma bruxa foi queimada no Brasil, porque todos os casos de réus acusados pelo Santo Ofício eram enviados para Portugal e lá julgados. E, na verdade, pouquíssimos bruxos e bruxas foram queimados. A maioria deles foi penalizada com degredo e prisão. Os que receberam a sentença de morte na fogueira corresponderam a cerca de 0,6% de todos os réus daquele período. Isto prova que Inquisição não é sinônimo de fogueira. A maioria dos que subiram aos cadafalsos portugueses era de cristãos-novos, supostamente judaizantes, ou seja, judeus convertidos ao cristianismo suspeitos de professarem sua fé original em segredo, alvo principal do Tribunal.

As outras penas inquisitoriais não foram menos atrozes: degredos para regiões inóspitas em Portugal, no Brasil ou na África, trabalhos forçados nas embarcações do rei, confiscos de bens, levando muitos à pobreza e à miséria, e ainda penas socialmente humilhantes e infamantes, como açoites públicos, uso de trajes típicos de condenados pela Inquisição e exposição à porta de uma igreja com uma vela na mão.

Os autos de fé eram símbolos inequívocos do poderio do Santo Ofício junto à população. Num domingo, saíam em procissão as autoridades inquisitoriais, eclesiásticas e também o rei, até chegarem a uma praça pública, onde estava montado um grande anfiteatro para o evento. Os condenados ouviam os sermões dos sacerdotes e, depois, a leitura pública de suas sentenças. O ápice do espetáculo era a execução dos "hereges": alguns agonizavam nas fogueiras, por serem renitentes em suas crenças, e outros eram queimados já mortos, estrangulados antes por terem se rendido à fé católica nos últimos instantes. Mas, aqui no Brasil, não tivemos nenhum auto de fé desta natureza, uma vez que o Tribunal de Lisboa centralizou todos os trabalhos dos casos relativos ao Brasil, desde o início do processo dos réus até sua sentença final. (Daniela Buono Calainho)

Texto 4: Assim como os católicos, os protestantes perseguiram seus fiéis? A Inquisição não foi o único caso de intolerância movida em nome de Deus na Época Moderna. Embora não houvesse a institucionalização de tribunais similares aos do Santo Ofício, também foram usadas estratégias de controle de fé nos locais em que o protestantismo era dominante, levando à perseguição por crimes como adultério, discordância dos dogmas protestantes e bruxaria.

Na Alemanha, o líder protestante Martinho Lutero (1483-1546) exigiu perseguições aos anabatistas, grupo cristão mais radical da Reforma, porque, entre outras questões, eles não aceitavam as regras da Igreja Evangélica e divergiam sobre o batismo. A decisão causou a expulsão, o encarceramento, a tortura e a execução de milhares de pessoas. Lutero também divulgou textos com críticas aos judeus - embora sem maiores repercussões na época, estes escritos acabariam utilizados pela Alemanha nazista, em pleno século XX.

Em Genebra, um dos berços da Reforma Protestante e onde ela se mostrou bastante radical, funcionou uma verdadeira "polícia da fé". João Calvino (1509-1564), devido à sua autoridade sobre os protestantes suíços, era conhecido como o "papa de Genebra". Ao organizar a Igreja Presbiteriana, instaurou comissões compostas de religiosos e leigos: a Venerável Companhia, responsável pelo magistério, e o Consistério, que zelava pela disciplina religiosa. Para isso, promovia confissões, denúncias, espionagens e visitas às residências, levando muitos à prisão, à tortura, ao julgamento e, em alguns casos, à morte.

A população era proibida de cultivar certos hábitos, como jogar, dançar e representar. Alguns pensadores foram perseguidos, como o médico e humanista espanhol Miguel Servet Griza. Ele foi preso, condenado e queimado em efígie - representado por um boneco. Fugiu em direção à Itália, mas acabou preso em Genebra, onde foi processado pelo Conselho presidido por Calvino e queimado por causa de proposições vistas como antibíblicas e heréticas, entre outras culpas.

Na Inglaterra, uma verdadeira caça às bruxas levou à morte centenas de mulheres acusadas de feitiçaria. A experiência persecutória inglesa foi ainda "exportada" para as colônias na América do Norte, como no famoso episódio das "bruxas de Salem", ocorrido em Massachusetts, em fins do século XVII, em que várias adolescentes foram mortas, acusadas de promover reuniões em torno de uma fogueira, nas quais, supostamente, invocavam espíritos.

Sem dúvida, não são poucos os exemplos de intolerância religiosa nos variados espaços que vivenciaram a Reforma Protestante, mas nada que representasse o equivalente dos estruturados tribunais inquisitoriais católicos. (Angelo Adriano Faria de Assis)

Texto 5: Os índios também foram perseguidos? Quando as epidemias grassaram nas Américas, dizimando numa guerra bacteriológica boa parte das populações indígenas; quando a exploração do trabalho dos nativos pelos colonos levou à escravização indiscriminada; quando a atuação das ordens religiosas reduziu os índios nas missões, ainda assim não foram esses todos os desafios que os povos indígenas enfrentaram. Outro ainda estava por vir: a atuação do Tribunal do Santo Ofício.

Estudos indicam que 33 índios e mamelucos foram prisioneiros da Inquisição em Lisboa entre os séculos XVI e XVIII. Mas, se levarmos em conta as denúncias, o número de casos é bem maior. Somente no século XVIII foram registradas 273 denúncias entre índios e descendentes mestiços de diferentes procedências étnicas por diversas razões.

Uma índia de nome Narcisa, por exemplo, foi acusada em Vila Borba Nova, em 1755, de fazer um malefício: uma boneca, com cabelos, ossos de peixes, retalhos de roupas rotas e amarrilhos, tudo cravado com agulhas e alfinetes. Ao desmanchar a boneca, a irmã da enferma, Benta de Souza, teve as mãos feridas em chagas sem que houvesse curativo, a não ser com exorcismos e azeite bento.

Narcisa e mais 157 índios acusados de feitiçaria e práticas mágicas não escaparam dos agentes da Inquisição. Outros foram envolvidos em roubo, venda de hóstias consagradas para a produção de amuletos - as populares bolsas de mandinga - ou cartas de tocar, que são os escritos usados como magia amorosa para seduzir o amado.

Havia ainda índios que, por virtuosismo, descobriram os malefícios com adivinhações, por meio de quibando, uma prática de adivinhação, recorrendo a peneiras e tesouras. Nomeavam seus malfeitores e desenterravam as velhacarias. Um caso célebre é o de outra índia, Sabina, em Belém, que atendia o próprio governador do Grão-Pará, João de Abreu Castelo Branco.

O Tribunal foi mais rigoroso com aqueles que se consagraram em verdadeiros rituais gentílicos, tão mais espantosos aos ouvidos do inquisidor. Vários índios foram acusados de beber jurema e "descer demônios", enquanto o mestre tocava o maracá entoando a dança embalada pela cantoria indígena. Uma dessas descrições é a de D. Souza e Castro, índio principal dos tabajaras, que foi dar conta pessoalmente à Mesa do Santo Ofício, em Lisboa, em 1720. Contava por meio de seu intérprete, o padre Antônio Leal, que a índia Antônia Guiragasu "invocava os demônios que lhe respondiam várias perguntas do outro mundo". Para isso, "tomava umas grandes fumaças de tabaco de cachimbo até ficar como fora de si".

Outro motivo de delações foi a bigamia. Das 78 denúncias, 24 foram processados, mas não há sentença final em 17 deles. Outros seis foram tomados como "casos extraordinários de absolvição" pela "ignorância e rusticidade" dos índios. Essa sentença "benevolente" não poupou Custódio da Silva, em 1741. Aos 28 anos, prestou seu depoimento por meio de um intérprete. Foi julgado e qualificado como bígamo. Condenado, abjurou de leve, por ser suspeito de ferir os preceitos da fé católica. Sob o olhar de uma multidão, fez auto da fé na forma costumeira. Foi açoitado pelas ruas de Lisboa até a Igreja de São Domingos, onde, na presença do rei D. João V, do príncipe e dos infantes D. Pedro e D. Antônio, inquisidores, ministros e toda a nobreza, foi sentenciado ao degredo por cinco anos para trabalhar nas galés de Sua Majestade. [...] (Maria Leônia Chaves de Resende)

Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, nº 73, outubro 2011. p. 21-23, 26, 31.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Viver em colônias

Entrudo no Rio de Janeiro, Augustus Earle

[Festas na cultura popular] Desde a Antiguidade, as festas são conhecidas por seu caráter de inversão da ordem. Ou seja, enquanto duram, regras e obrigações cotidianas são abandonadas; é como colocar o mundo de ponta-cabeça. Você citaria algum exemplo? Provavelmente, lembrou-se do carnaval aqui no Brasil. Durante os dias de festa, muitas pessoas não trabalham, brincam todo o tempo e cometem até alguns excessos.
     
No Brasil colonial, as festas também exerciam esse papel. Mas as mais comuns eram as relacionadas ao calendário religioso católico, frequentemente iniciadas por procissões organizadas para homenagear ou relembrar eventos cristãos.
     
Não só as datas religiosas eram motivo para a realização de festas públicas; também serviam de pretexto as aclamações de um soberano, os casamentos reais ou aristocráticos e outros acontecimentos de caráter político. Era comum nessas festas misturarem-se rituais das culturas negra e indígena. Ocorriam, por exemplo, as congadas, ou festas do rei Congo. Trata-se de um ritual que inclui a coroação de um rei e uma rainha negra; rememoravam-se tradições africanas e utilizavam-se vestimentas e danças tipicamente africanas.
     
Nos dias de festa, as diferenças entre ricos e pobres, brancos e negros pareciam diminuir. Era a ocasião em que se ofereciam alimentos ao povo da rua. Ao contrário do que ocorria no cotidiano, a comida era farta e consumida por todos. Assim, a festa extrapolava o seu motivo oficial para transformar-se em um momento de negação das regras do dia a dia.

Lundu, Rugendas
     
No entrudo, festa introduzida no Brasil pelos portugueses fabricavam-se limões de cheiro –bolas de cera cheias de água perfumada -, com os quais se organizavam batalhas entre os passantes nas ruas das cidades. Os negros substituíam o limão de cheiro (mais caro) por polvilho e água. Era comum, nesse dia, eles vestirem-se com roupas típicas européias, fato proibido em circunstâncias normais.

Entrudo, Debret
     
Nas vilas e cidades, o calendário de festas públicas era bastante extenso, podendo haver mais de uma dezena delas por ano, o que ocorre ainda em muitas cidades brasileiras.

[Religiosidade e feitiçaria] Ao colonizarem a América, os europeus trouxeram consigo toda a cultura herdada do cristianismo católico. Essa cultura foi também um importante instrumento de dominação das populações locais. Os jesuítas promoveram a catequese, organizaram os aldeamentos e lutaram pela conversão dos índios em cristãos. Com isso, desmantelaram seu modo de vida e fizeram com que negassem suas crenças. Houve resistência, mas a religião católica conseguiu penetrar no Novo Mundo.
     
As práticas religiosas de indígenas e negros não desapareceram, mas conviveram com o pensamento cristão. Nos dois casos, a vida religiosa era marcada pela presença de vários deuses ligados a fenômenos da natureza. Para cada situação específica, recorria-se a um deus correspondente. Assim, quando se quisesse chuva para irrigar a plantação, eram organizados rituais de evocação ao deus relacionado com as chuvas ou com as águas. Eram religiões em que os deuses intervinham diretamente na vida cotidiana dos homens.
     
Para os portugueses, essas práticas religiosas eram atos de bruxaria, manifestações ligadas ao demônio, que deveriam ser condenadas. Por isso, essas religiões foram proibidas. Se índios e negros fossem pegos praticando-as, seriam considerados bruxos e condenados à morte; se colonos, homens brancos europeus, fossem surpreendidos durante esses cultos, poderiam ser multados, excomungados, degredados para a África ou processados e condenados à morte. Apesar das punições, essas práticas religiosas foram mantidas.
     
As simpatias e benzeduras também eram condenadas; eram consideradas feitiçaria porque apelavam para o poder mágico. (Você conhece alguma simpatia? Sabe qual sua origem?)
     
Uma prática que confirma a mistura de diferentes tradições culturais e religiosas no Brasil era a “bolsa de mandinga”, pequeno recipiente no qual se guardavam vários amuletos com o objetivo de oferecer proteção e sorte a quem a carregava. Dentro da bolsa encontravam-se objetos das culturas européia, africana e indígena; podia conter enxofre, pólvora, pedras, ossos de defunto, papéis com dizeres religiosos ou símbolos, folhas, alho e outros elementos, conforme o uso a que ela se destinava.
     
[Moradas coloniais] Viajantes e cronistas que percorreram o Brasil durante os séculos XVI a XIX deixaram inúmeros registros sobre as moradas coloniais. Nos primeiros tempos da colonização, as casas das cidades e vilas eram geralmente construções simples, e seus moradores, pessoas de poucos recursos. No entanto, no século XVII, no Nordeste, já era possível distinguir a posição social de uma pessoa pelo tipo de morada que possuía.
     
As casas dos proprietários de engenho e altos funcionários do rei, por exemplo, eram sobrados e solares feitos de adobe (tijolo cru) e possuíam muitos cômodos, além de senzala, que geralmente ficava nos porões. Os pequenos comerciantes, pequenos funcionários públicos e soldados habitavam casas térreas.
     
Os grandes sobrados coloniais estão associados a um período de diversificação da economia. Os sobrados maiores abrigavam em seu interior uma loja ou escritório no piso térreo, evitando que estranhos se misturassem com o espaço de convívio da família, reservado ao piso superior. Os arquitetos Francisco Salvador Veríssimo e William Seba M. Bittar explicam:

(...) contemporânea dos engenhos, de menor prestígio social, desenvolve-se a residência urbana – inicialmente simples residências térreas, de porta e janela – que, gradativamente, amplia suas fachadas, abre portas para o comércio, crescendo para o modelo assobradado, tão comum em Portugal na época do descobrimento. Aqui não encontramos porões ou preocupações formais. A praticidade é fundamental. Este modelo torna-se tão adequado às condições socioculturais que permanece inalterado por cerca de três séculos. VERÍSSIMO, Francisco Salvador, BITTAR, William Seba M. 500 anos de casa no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 22.

A maioria das moradas coloniais simples tinha paredes de taipa de pilão ou de mão. No primeiro caso, conforme o arquiteto Carlos Lemos:

(...) os construtores colocavam os pranchões afastados entre si conforme a espessura da parede desejada e dentro do vão livre era socado o primeiro bloco de terra pilada (...). A terra socada se transformava em uma verdadeira pedra (...). LEMOS, Carlos. Casa paulista. São Paulo: Edusp, 1999. p. 41.

Já a taipa de mão, chamada também de pau a pique, era um entrelaçado de ripas de madeira ou varas e barro. Os telhados eram cobertos de sapé (palha).
     
As casas de taipa eram típicas da região de São Paulo e parte de Minas Gerais, onde prevaleceram até o século XIX. Existem várias obras jesuíticas e bandeirantes construídas com essas técnicas. Nessa região, a falta de pedras apropriadas para a construção e de matéria-prima para a fabricação de cal favoreceu o uso do barro em construções. Apenas os sobrados mais suntuosos tinham telhas em suas coberturas. O interior das casas mais simples possuía poucos móveis e alguns objetos, como mesa, tamboretes [bancos], baú, arca, um leito e esteiras de palha ou redes. Os ricos sobrados coloniais tinham em seu interior tapetes, cortinas, piano e móveis de madeira nobre. Além de local de moradia, muitas casas coloniais eram o local de trabalho de sapateiros, carpinteiros e marceneiros, entre outros.

CABRINI, Conceição et al. História temática - Diversidade cultural e conflitos. São Paulo: Scipione, 2010. 

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A perseguição da bruxaria

Cena do filme "As bruxas de Salem", Nicholas Hytner

Ainda que nascida na camada de baixo, da própria sociedade camponesa europeia, como reflexo das tensões internas existentes em suas comunidades, a perseguição à bruxaria foi utilizada, também, pelas altas camadas sociais para controlá-las.

A bruxaria, conhecida desde a Idade Média como uma mescla de religião popular, tradições pagãs e baixa magia, não era considerada perigosa, sendo aceita, parcialmente, pela própria Igreja. A sociedade medieval mostrou-se condescendente com ela até que a crise do século XIV deu início às primeiras perseguições, que se tornariam mais agudas em fins do século XVI.

O que inicialmente se havia considerado como uma simples política de conjuros e malefícios camponeses alterou-se desde que, em 1486, dois dominicanos alemães, Heinrich Krämer e Jakob Sprenger, publicaram o Malleus maleficarum, convertendo a bruxaria em "uma conspiração diabólica para derrubar o cristianismo". Isto foi o início de uma ampla literatura demonológica que floresceu em fins do século XVI e começo do XVII, em pleno período das guerras de religião, e que serviu de base às grandes perseguições destes anos (a maioria dos processos se desenvolveram entre 1580-1630).

O núcleo central da perseguição situou-se na zona fronteira entre França, Alemanha e Suíça, entre católicos e protestantes que se dedicavam a esta tarefa, com igual zelo (Lutero dissera que não se devia consentir que as bruxas vivessem). Houve perseguições na Inglaterra, Escócia e Holanda e, em menor escala, na Escandinávia, Rússia e País Basco. As execuções continuaram, ainda que diminuindo, até o século XVIII: a última conhecida da Europa ocorreu na Suíça, em 1782, quando a servente Anna Göldi foi decapitada, acusada por uma criança endemoniada, e, cinco anos mais tarde, nos Estados Unidos, nos mesmos dias em que se redigia a carta de independência, a multidão ainda matou uma bruxa na Filadélfia.

As mulheres constituíam 80% das vítimas, quase todas humildes e independentes e, em sua maioria, com mais de quarenta anos. Para explicar este fato, devemos começar recordando a misogenia tradicional do cristianismo, que atribui o pecado original à mulher. Na atitude da Igreja, influiu, sem dúvida, o papel que a mulher tinha na sociedade camponesa como transmissora de muitos elementos da cultura popular, manifestada no fato de ser curandeira e parteira, rival da cura do povoado na influência e muito distante do modelo cristão de mulher ideal, submetida ao marido e frequentadora de atos religiosos.

Diferentemente da perseguição à heresia, a das bruxas não parece ter surgido da iniciativa eclesiástica, mas, sim [...] da própria sociedade camponesa numa época de crise econômica e social, ainda que tenha sido aproveitada pelos grupos dirigentes, tanto pela utilidade que representava, em tempos difíceis, de ter um bode expiatório a quem atribuir os males coletivos, quanto pelo reforço da coesão social que produz a luta contra o inimigo externo (uma luta que o Estado acabou utilizando para controlar estas mesmas sociedades).

[...]

A perseguição da bruxaria não é mais que uma das tantas manifestações, no passado e no presente, do perigo que encerra uma mobilização de massas alimentada por preconceitos de qualquer índole - religiosos, raciais, sociais - que acabam sendo utilizados como uma arma de sujeição coletiva. Ao término do século atual, que viu perseguições tão monstruosas como a da bruxaria, porém em escala muito maior - o gulag, o holocausto, o macartismo, as limpezas étnicas - é preciso entender que não basta a condenação do que, para um observador fora do contexto, aparece como irracional, mas é necessário denunciar a irracionalidade que forma parte de nossa própria cultura. Porque, como disse um estudioso da caça às bruxas: "a bruxa pode ser o outro, mas a crença na bruxaria está em nós mesmos". (BRIGGS, Robin. Witches and Neighboors. New York: Viking, 1996. p. 411.)

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 355-7.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O demônio ataca: o surto de Salem (os puritanos de Massachusetts)

Imagem fantasiosa dos julgamentos de Salem. Enquanto a moça depõe, raios caem do céu.

A colônia de Massachusetts recebera puritanos descontentes com a Igreja inglesa. Sua disposição era contrária à tolerância religiosa que caracterizava outros grupos protestantes. Na colônia, esses puritanos de influência calvinista acreditavam numa Igreja forte que tivesse poderes civis.

Para a construção dessa Igreja-Estado tomaram-se várias providências. Primeiro estabeleceu-se que somente os membros da Igreja Puritana poderiam votar e ter cargos políticos. Depois, tornou-se obrigatória a presença na igreja para as cerimônias, fato que não acontecia no resto das Igrejas protestantes. Todos os novos credos deveriam ser aprovados pela Igreja e pelo Estado. Por fim, estabeleceu-se que Igreja e Estado atuariam juntos para punir as desobediências a essas e outras normas. Essa colônia aproximava-se, dessa forma, dos ideais católicos da teocracia.

[O demônio ataca: o surto em Salem] Um dos fatos mais significativos derivado do ideal de Igreja-Estado foi a perseguição às bruxas. O autoritarismo de uma religião que se pretendia única desencadearia, naturalmente, na perseguição de todas as formas de contestação - fossem reais ou imaginárias.

As acusações de bruxaria, uma constante em todo o mundo cristão da época, existiam desde o início da colonização. No entanto, um surto de feitiçaria como o de Salem, em 1692, assumia proporções inéditas. Nesse ano, um grupo de adolescentes acusou várias pessoas de enfeitiçá-las. O processo acabou envolvendo muitos membros da comunidade, entre homens e mulheres.

A cidade de salem viveu uma histeria coletiva. Havia surtos frequentes: moças rolavam gritando, caíam doentes sem causa aparente, não conseguiam acordar pela manhã, animais morriam, árvores cheias de frutos secavam. As razões, no entender dos habitantes de Salem, só poderiam ter ligação com uma ação demoníaca.

Alguém era acusado de feitiçaria e comparecia diante do juiz. O juiz fazia o acusado e as vítimas (as moças aflitas, como eram usualmente chamadas) ficarem frente a frente. Era comum as moças terem novo ataque histérico diante do suposto feiticeiro. os acusados eram enviados à prisão. A acusação caía sobre gente de todas as categorias sociais e sobre pessoas que gozavam da confiança da comunidade há anos. O acusado era examinado, Havia uma crença generalizada de que a associação com o demônio produzia marcas no corpo: um tumor, uma mancha, regiões que não sangravam, polegar deformado. Submetidos a "tratamentos especiais", muitos réus acabavam confessando que, de fato, estavam associados ao demônio e realizavam feitiços contra a comunidade.

A histeria das feiticeiras não seria possível sem as ardentes pregações de pastores como Cotton Mather (1663-1728). Esse pastor, nascido em Boston, escreveu o livro As maravilhas do mundo invisível, em que o leitor é levado a conhecer as grandes forças maléficas que agem sobre o mundo. Como no mundo católico, a crença num mal real e com ação efetiva era um dado social que unia desde o rei James I (autor de livro sobre feitiçaria) até o mais humilde camponês.

Os processos de Salem já receberam várias explicações. Algumas, de caráter mais psicológico, lembram as tensões entre mães e filhas, estas fazendo coisas que não poderiam normalmente fazer e alegando estarem enfeitiçadas. Em outras palavras, alegando o poder do demônio, uma jovem poderia gritar com sua mãe ou mesmo ficar nua! Afinal, era tudo obra do demônio... A moral puritana de oração e trabalho era tão forte que os jovens não podiam, por exemplo, praticar esportes de inverno como patinar, pois isso era considerado imoral. Assim, diante dessa vida dura, a possessão passou a ser uma boa saída.

Outras explicações remetem às tensões internas das colônias - entre as principais famílias - em que acusar o membro de uma família rival de bruxo ou bruxa tinha um grande peso político.

Conflitos entre indígenas e puritanos, como a chamada Guerra do Rei Filipe (nome que os colonos deram a um líder indígena em 1675-78), tinham deixado a Nova Inglaterra em tensão permanente. Muitos colonos haviam sido mortos ou capturados. As tensões entre vizinhos vinham se acumulando. Tudo isso colaborava para explicar o ambiente que gerou o surto de Salem.

Por fim, sem esgotar as explicações, há de se levar em conta todas as frustrações dos protestantes no Novo Mundo, onde o sonho de uma comunidade perfeitamente construída de acordo com as leis de Deus e da Bíblia não havia se realizado. Os pastores puritanos viram no aparente surto de feitiçaria uma maneira de recuperar o controle e o entusiasmo do grupo. Os habitantes de Massachusetts haviam se dado conta de que não apenas a Bíblia e as boas intenções haviam atravessado o oceano, mas todas as suas mesquinharias, maledicências e tensões. Melhor seria, assim, atribuir esses problemas ao demônio e a seus seguidores.

Ao final da crise, quase 200 pessoas tinham sido presas e 14 mulheres e 6 homens executados. A teocracia puritana tinha deixado um saldo trágico na memória dos colonos. Quase 100 anos depois, a primeira emenda à Constituição dos EUA estabelecia que o Congresso não faria leis sobre o livre exercício da religião.

KARNAL, Leando (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2010. p. 51-53.

Galeria de imagens: Cenas do filme "As bruxas de Salem" (Nicholas Hytner, EUA, 1996)