Dança de negros, Zacharias Wagener
Texto 1: Calundu
No Brasil dos séculos XVII e XVIII, calundu representava a prática de curandeirismo e uso de ervas com a ajuda dos métodos de adivinhação e possessão. O termo calundu era associado à palavra "quibundo", de origem quimbundo (língua banto), que designa a possessão de uma pessoa por um espírito. As pessoas que praticavam o calundu eram conhecidas como curandeiras. Possuíam grande influência sobre a comunidade, pois eram consideradas importantes líderes religiosos. Por isso, eram sempre perseguidos pelas autoridades locais. Na cidade de São Paulo, por exemplo, algumas africanas curandeiras eram famosas, como Maria D'Aruanda e Mãe Conga, procuradas por serem "desinquietadoras de escravos".
Os curandeiros detinham o conhecimento de certas "técnicas medicinais". Na realidade, elas eram uma mistura de costumes africanos, portugueses e indígenas, que consistiam, basicamente, no uso de ervas, frutos e produtos naturais fáceis de encontrar. Com isso, os curandeiros atendiam a doentes de todas as camadas sociais, sobretudo os escravos, que possuíam poucos recursos. Além de produtos naturais, também sabiam manipular substâncias químicas, como venenos, sendo procuradas pelos escravos maltratados desejosos por matar os seus proprietários ou apenas por deixá-los mais tranquilos. Nesse caso, era-lhes dado algum calmante, que os tornavam inofensivos, parecendo estar sob efeito de encanto ou feitiço. Por isso, os curandeiros eram conhecidos como feiticeiros ou bruxos.
Esses indivíduos, na sua maioria africanos, eram considerados verdadeiros líderes, na medida em que conseguiam amenizar as agruras causadas pelo sistema escravista ao "amansar" ou até mesmo matar os senhores mais cruéis, curar as doenças dos cativos, prever-lhes um futuro melhor e, enfim, propiciar apoio e solidariedade aos seus companheiros. Dessa forma, eram perseguidos e controlados pelas autoridades locais.
Por conta de suas características, pode-se afirmar que a prática do calundu ou do curandeirismo recebeu influências das tradições da África Centro-Ocidental, nas quais, além dos ancestrais, outros indivíduos são dotados de caráter sagrado. É o caso dos reis, chefes, pais e os ligados à religião, como aqueles que praticam a adivinhação e o curandeirismo.
Nessas sociedades centro-ocidentais africanas, os valores positivos, como a saúde, a harmonia, a fecundidade e a riqueza eram considerados importantes. Tudo aquilo que era contrário, isto é, a doença, a inferioridade e a escravidão, resultava de feitiçarias provocadas por pessoas mal-intencionadas, por espíritos malévolos ou esquecidos pela comunidade. Para conseguir se livrar dos aspectos negativos e retomar a harmonia, era necessário, em primeiro lugar, descobrir a causa dos infortúnios. Por ser oculta, a causa só seria descoberta pelo curandeiro, que, dotado de um poder especial, se comunicava com os ancestrais, que a revelavam. Em segundo lugar, era preciso realizar cerimônias com danças, músicas e rituais de possessão, bem como utilizar símbolos, como os objetos sagrados e mágicos em homenagem aos ancestrais.
Para muitos africanos que estavam no Brasil, o calundu ou curandeirismo, além de ser uma oportunidade de expressar suas visões de mundo e crenças religiosas, era uma forma de luta e de resistência ao sistema escravista, uma tentativa de retomarem o que consideravam importante e que haviam perdido com a escravidão e a diáspora.
No conjunto de crenças africanas sobre o universo, em especial na região Centro-Ocidental, era (e ainda é até hoje) atribuída uma grande importância aos espíritos dos ancestrais, pois são considerados os seres intermediários entre o homem e o Ser Supremo, criador de todo o universo. Para tanto, os ancestrais são dotados de muita energia, chamada de energia vital, adquirida e acumulada durante a sua existência na Terra. Os ancestrais foram grandes homens, que tiveram uma existência repleta de ações dignas e realizações importantes. Deixaram, assim, uma lição, uma herança a ser seguida pelos seus descendentes.
Por isso, para se conseguir os valores positivos e levar uma vida com harmonia, não se poderia deixar de cultuar os seus ancestrais mortos, agradando-os com oferendas, sobretudo, aqueles que deram origem às comunidades. Ainda mais quando se acreditava que, com a morte, a energia vital poderia se dissipar. E, para que isso não ocorresse, era necessário realizar oferendas, preces e rituais fúnebres, objetivando a manutenção da energia vital mesmo depois da morte.
As oferendas e homenagens aos ancestrais eram oferecidas em lugares sagrados, em geral, no meio da natureza, debaixo de árvores, num bosque, em rios, ou mesmo em suas tumbas, nos cemitérios e altares construídos nas aldeias e nas encruzilhadas. Era muito comum oferecer alimentos e bebidas.
Além de serem cultuados e reverenciados, os mortos tinham que receber um enterro digno. Como verdadeiro rito de passagem, no qual acontece a separação física do mundo profano e a chegada do morto ao mundo sagrado dos ancestrais, os enterros deveriam ser realizados conforme as tradições, com velório, preparação do morto, sepultamento e luto.
MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 156-159.
Texto 2: Ilê Aiyê
Texto 2: Ilê Aiyê
Mulheres africanas, Surama Caggiano
Se me perguntares de que origem
eu sou
Eu sou de origem africana
Com muito orgulho, eu sou [...]
Pisando firme no chão, cantando alto, valorizando suas
raízes, o bloco Ilê Aiyê enche de alegria as ruas de Salvador,
na Bahia. E mostra o quanto o Brasil é preto. Mesmo tendo sido abafada durante
quatro séculos, a cultura negra espalha-se pelo país. E explode com força nos
terreiros religiosos, nas rodas de samba, nos afoxés baianos, como o Filhos
de Gandhi e o Badauê, no sonho de Buziga, compositor do
Ilê Aiyê:
O que será do Ilê Aiyê
Será integração negras raízes
Pisando firme no chão
Até que um dia haverá de alguém
Compreensão, meu povo
Nós somos todos irmãos [...]
Em diversas cidades, inúmeros grupos negros buscam afirmar o
valor de sua gente e denunciar as injustiças que vieram da escravidão. Eles
continuam a luta de Zumbi, Isidoro, Chico Dragão do Mar, Tonho Paciência, Nico
Mulungu, João Cândido e muitos outros. [...]
Dom José Maria Pires, negro, arcebispo da Igreja Católica de
João Pessoa, na Paraíba, resume num sermão os novos tempos:
- Pretos, meus irmãos! Como nossos antepassados, viemos
de vários lugares. Diferentes deles, trazemos na pele colorações variadas. Na
alma, crenças diferentes. Mas neles e em nós estão presentes as marcas da
negritude. Somos negros e não nos envergonhamos, não queremos mais nos
envergonhar de sê-lo!
ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo 2: a República.
Petrópolis: Vozes, 1991. p. 255.
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