A colheita, Pieter Bruegel
"... não existe uma Idade Média: existem idades médias."
Henri Berr
"O quadripartismo tem como resultado privilegiar o papel do Ocidente na história do mundo e reduzir quantitativa e qualitativamente o lugar dos povos não europeus na evolução universal. [...] Os marcos escolhidos não têm significado algum para a imensa maioria da humanidade [...]". (CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a História e os historiadores. São Paulo: Ática, 1995. p. 26.)
De acordo com a historiografia tradicional, a Idade Média foi delimitada por dois grandes marcos, ou fatos históricos, definidos por alguns estudiosos: a "queda" do Império Romano do ocidente em 476 e a "tomada" de Constantinopla, ou Bizâncio [...] pelos turcos otomanos em 1453.
Assim, o período medieval se insere no modelo tradicional de periodização [...] que se fundamenta numa perspectiva eurocêntrica ocidental. Esse modelo foi elaborado, inicialmente, na modernidade europeia [...], no contexto do Renascimento e do Iluminismo.
Inicialmente, essa divisão [...] apresentava apenas três períodos: Antiga, Medieval e Moderna. A origem dos termos utilizados é filológica [...] e não histórica. O humanismo renascentista do século XV dividiu o latim em três categorias: o latim clássico, o latim bárbaro e o latim dos humanistas. Isso significa dizer que, entre o latim clássico e a sua redescoberta no século XV, houve um período de existência de um latim que fugia dos padrões da Antiguidade Clássica (foi "distorcido" pelos dialetos "bárbaros". Ele foi denominado de latinitas media).
Em pouco tempo, a expressão medievo passou a designar todo o período compreendido entre os séculos V e XV, tornando-se comum a sua utilização entre os humanistas, que não menosprezavam apenas o latim do "período intermediário". Criticavam e contestavam também a arte, a vida religiosa, a filosofia e a organização política e social. [...] toda a Idade Média, a partir de então, foi, de uma maneira geral, percebida de forma preconceituosa, como um período marcado pela superstição e pela ignorância, uma verdadeira "idade das trevas" ou uma "noite de mil anos".
A consagração da expressão Idade Média ocorreu em 1688, quando o humanista alemão Cellarius (C. Kepler) publicou um livro dedicado ao período [...].
As visões que foram construídas sobre a Idade Média variaram ao longo do tempo e modificaram-se de acordo com as premissas de cada época. Assim, para os homens do Renascimento, o medium aevum representou uma longa interrupção no progresso da humanidade.
Esse conceito, predominante nos séculos XVII e XVIII, na verdade um preconceito, resultou da percepção de múltiplos sujeitos históricos da época (religiosos protestantes, soberanos absolutistas, burgueses e intelectuais).
Ainda na segunda metade do século XVIII, à luz do racionalismo iluminista, criticou-se a influência da Igreja Católica no campo político e o forte apelo religioso da época medieval. Voltaire [...] afirmou que "as religiões são como pirilampos, só brilham onde há escuridão". O forte anticlericalismo de vários pensadores iluministas [...] explica, em boa parte, o reforço ao preconceito contra a Idade Média.
Foi apenas no século XIX, no contexto do Romantismo, que se iniciou a "reabilitação" do período medieval, pois as identidades nacionais, tão caras aos românticos, encontravam aí suas raízes.
No entanto, é importante destacar que essa "reabilitação" também foi marcada pelo preconceito, uma vez que se idealizou a Idade Média como a época dos "grandes cavaleiros" e da "nobreza", de seus valores, princípios e sentimentos; do "amor cortês"; da ação "descomprometida" da Igreja Católica, que impunha a ordem através da "trégua de Deus" e amparava os "fracos e oprimidos"; dos "heróis nacionais", etc. Construía-se, dessa forma, um "preconceito às avessas", já que a Idade Média era concebida de forma idealizada [...].
Conforme observou o filósofo alemão Walter Benjamin, "o passado estudado está carregado do presente em que vivem os historiadores".
No século XX, particularmente nas últimas décadas, muitos historiadores se preocuparam [...] com os estudos referentes à Idade Média. Os medievalistas [...] têm sido responsáveis pela revisão de conceitos e pela abordagem de temas até então inexplorados pela historiografia tradicional, tais como a sexualidade, a relação dos homens com a morte, a condição feminina, a infância, os cultos agrários, a religiosidade popular, a feitiçaria, a loucura, etc.
Nessa perspectiva, tem-se construído uma nova visão da Idade Média, sem os preconceitos característicos que até então permeavam [...]. (BERUTTI, Flávio. Caminhos do Homem. Curitiba: Base, 2010. p. 102-104, 107-108.)
Menestréis da Cantiga de Santa Maria. Anônimo espanhol.
"Esta longa Idade Média é [...] o contrário do hiato visto pelos humanistas do Renascimento e [...] pelos homens das luzes. [...] Criou a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência e, finalmente, a revolução". (LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. p. 12.)
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