"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 11 de setembro de 2011

"Às armas cidadãos!": o significado da Revolução Francesa

A queda da Bastilha, Artista desconhecido

"Marchemos, filhos da pátria,
Que chegou o dia da glória.
O sangrento estandarte da tirania
Contra nós já está levantado

Ouvis bramir pelos campos
Esses ferozes soldados?
Vêm degolar
Nossos filhos, nossas companheiras.

Às armas cidadãos!
Formai os batalhões!
Marchemos, marchemos,
Que um sangue impuro
Banha nosso solo!"
(A Marselhesa, letra e música de Claude-Joseph Rouget de Lisle)

Caricatura. O zênite da glória francesa, James Gillray  
"Felizmente, a Revolução Francesa ainda está viva, pois Liberdade, Igualdade e Fraternidade e os valores do Iluminismo - os valores que construíram a civilização moderna - são mais necessários do que nunca, na medida em que o irracionalismo, a religião fundamentalista, o obscurantismo e a barbárie estão, cada vez mais, avançando sobre nós".  
(HOBSBAWN, Eric. Ecos da Marselhesa: dois séculos reveem a Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 127.)


A Revolução Francesa foi um período decisivo na formação do Ocidente moderno. Ela implementou o pensamento dos filósofos, destruiu a sociedade hierárquica e corporativa do Antigo Regime, promoveu os interesses da burguesia e acelerou o crescimento do Estado moderno.


"A história 'moderna' termina em 1789, com aquilo que a Revolução batizou 'Antigo Regime'. [...] 1789 é a chave para o antes e para o depois. Separa-os, e, portanto, os define, os 'explica'." 
(FURET, François. Pensando a Revolução Francesa. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p. 17.)

Assim, a Revolução Francesa enfraqueceu a aristocracia. Eliminados seus direitos e privilégios feudais, os nobres tornaram-se simplesmente cidadãos comuns. Ao longo do século XIX, a França seria governada pela aristocracia e pela burguesia; as posses, e não a ascendência nobre, determinavam a composição da nova elite governante.

O princípio das carreiras abertas aos homens de talento deu à burguesia acesso às mais altas posições no Estado. Dotada de talento, riqueza, ambição e, agora, de oportunidades, a burguesia desempenharia um papel ainda mais importante na vida política da França. Em todo o continente europeu as reformas da Revolução Francesa serviram de modelo aos burgueses progressistas mais cedo ou mais tarde, desafiaram o Antigo Regime em seus respectivos países.

Além disso, a Revolução Francesa transformou o Estado dinástico do Antigo Regime no Estado moderno: nacional, liberal, secular e racional. Quando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmou que “a fonte de toda soberania reside essencialmente na nação”, o conceito de Estado assumiu um significado novo. O Estado já não era apenas um território ou federação de províncias; não era apenas a posse privada de reis que se diriam delegados de Deus na Terra. De acordo com a nova concepção, o Estado pertencia ao povo como um todo, e o indivíduo, antes súdito, era agora cidadão com direitos e deveres, governado por leis que não estabeleciam distinções baseadas na ascendência.

O pensamento liberal do Iluminismo encontrou expressão prática nas reformas da Revolução. O absolutismo e o direito divino da monarquia, repudiados em teoria pelos filósofos do século XVIII, foram rejeitados pelas constituições que impuseram limites aos poderes do governo e elegeram parlamentos que representavam os governados. Assegurando a igualdade perante a lei e a proteção dos direitos humanos – habeas corpus, julgamento pelo júri, liberdade de religião, de palavra e de imprensa -, a Revolução acabou com os abusos do Antigo Regime. Essas conquistas pareceram, por vezes, mais teóricas do que reais, devido a violações e interrupções, mas apesar disso esses ideais liberais brilharam por toda a Europa. No século XIX, o ritmo da reforma se intensificaria.

Negando qualquer justificativa divina para o poder do monarca e privando a Igreja de sua posição especial, a Revolução acelerou a secularização da vida política européia. Acabando com o caos administrativo do Antigo Regime, a Revolução procurou impor normas racionais ao Estado. A venda de cargos públicos, que dera origem a administradores ineficientes e corruptos, foi eliminada, e os mais altos cargos no país ficaram ao alcance de homens de talento, quaisquer que fossem as suas origens. A Revolução aboliu as obrigações senhoriais dos camponeses, que embaraçavam a agricultura; e eliminou as barreiras à expansão da economia; baseou os impostos na renda e simplificou a sua coleta. O fim dos remanescentes feudais, das tarifas internas e das guildas acelerou a expansão de uma competitiva economia de mercado. No século XIX, os reformadores no resto da Europa seguiram o exemplo dado pela França.

Ao disseminar os ideais e as instituições revolucionárias, Napoleão impediu que os governantes tradicionais conseguissem restaurar integralmente o Antigo Regime depois de sua queda. A secularização da sociedade, a transformação do Estado dinástico no Estado nacional moderno e o predomínio da burguesia estavam assegurados.

A Revolução Francesa também liberou duas forças potencialmente destrutivas, identificadas com o Estado moderno: a guerra total e o nacionalismo. Elas contrariavam os objetivos racionais e universais dos reformadores, tal como expressos na Declaração dos Direitos do Homem. Enquanto as guerras do século XVIII foram travadas por soldados profissionais e com objetivos limitados, a Revolução Francesa criou o recrutamento e a mobilização de todos os recursos do Estado para o conflito armado. As guerras mundiais do século XX são a realização terrível desse novo desenvolvimento da luta armada. A Revolução Francesa também deu origem ao nacionalismo moderno. A lealdade era dirigida para toda a nação, e não a uma aldeia ou província, ou à pessoa do rei. Toda a França se transformou na pátria. Sob os jacobinos, os franceses se converteram à fé secular, pregando a reverência total à nação.


A Revolução procurou reconstruir a sociedade tendo por base o pensamento iluminista. A Declaração dos Direitos do Homem, cujo espírito impregnou as reformas da Revolução, sustentava a dignidade do indivíduo, exigia respeito a ele, atribuía direitos naturais a cada pessoa e proibia ao Estado negar-lhes tais direitos. Insistia em que a sociedade e o Estado não têm dever maior do que promover a liberdade e a autonomia do indivíduo. A tragédia da experiência ocidental está no fato de se ter enfraquecido, nas gerações mais recentes, essa visão humanista, expressa de forma brilhante pelo Iluminismo e reconhecida pelas reformas da Revolução Francesa. E, ironicamente, estimulando a guerra total, o nacionalismo, o terror como política de governo e uma mentalidade revolucionária que buscou mudar o mundo pela coerção e pela violência, a própria Revolução Francesa contribuiu para apagar essa visão.


PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 348-349.

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