"O jardim das delícias terrenas", Hieronymus Bosch. "Inferno" (detalhe)
Em 1512, Jean Bouchet, em sua obra Lamentos da Igreja Militante, escrevia: "Nossos grandes abusos são tão públicos que lavradores, mercadores e artesãos os vão cantando com grande regozijo". (Citado por DELAMEAU, J. La Reforma. Barcelona: Nova Clio, Editorial Labor, 1973. p. 6.)
O que significavam todos esses "abusos"?
Eles eram reflexo de verdadeira ruptura com as estruturas tradicionais. Ruptura que afetava profundamente as consciências individuais.
[...]
Nesse período ocorreram grandes desgraças, como a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos, a fome... Os homens da época se perguntavam: por que tudo isto está acontecendo? Será que Deus quer nos castigar? A resposta que encontraram foi afirmativa. Sim, Deus queria castigá-los pelos muitos pecados que cometiam. A solução seria então a purificação dos sentidos humanos. O homem precisava lutar para atingir a perfeição, para se purificar, pois afinal era feito à semelhança de Deus e dele deveria estar mais próximo.
Era sob esse aspecto que os homens da Igreja viam os problemas. Todas as desgraças que se abatiam sobre os homens geravam um clima de insegurança e desordem, que no entender da Igreja eram "desrespeito e abuso".
Mas, o que realmente deveria estar acontecendo?
Essas explicações carregadas de religiosidade satisfaziam os homens da Idade Média, cujas estruturas ideológicas estavam dominadas pela Igreja.
Se "a sociedade rural da Alta Idade Média havia permitido o florescimento de uma cristandade comunitária dominada pela hierarquia eclesiástica e abadias", a Baixa Idade Média oferecia um clima de insegurança; e por quê? (DELUMEAU, J. op. cit., p. 13.)
O desenvolvimento do comércio e do artesanato citadinos modificou a vida econômica da Europa. À medida que a interligação cidade-campo fortalecia a economia monetária e as transações financeiras, as atividades comerciais e artesanais dificultadas pelo feudalismo entravam em choque com esse sistema, de cuja desagregação dependiam os progressos do capital.
Compreende-se o apoio que esse capital, isto é, que a burguesia, ansiosa de privilégios, dava às ideias centralizadoras dos monarcas. "Assim os novos e poderosos comerciantes - como os Médici, os Függer (...) - ousaram encarnar o pecado, frente à moral da Igreja". (DELUMEAU, J. op. cit., p. 13.) Era a cobiça o grande "mal" da época...
E como se livrar desse mal?
"A cobiça era condenada pela Igreja. Mas a Igreja representava o velho (...) e agora (...), nesses novos tempos (...), a cobiça era a mola mestra do comércio que se desenvolvia. Quem estava tomado daquele mal tinha necessariamente possibilidades de ser rico. E os nobres e burgueses endinheirados faziam construir santuários privados, em que se rogava especialmente pelos mortos da própria família". (DELUMEAU, J. op. cit., p. 13.)
Crescia aí o germe de outro sentimento: o individualismo, que, em suas múltiplas formas, contribuiu para a ascensão da burguesia e, consequentemente, do espírito leigo.
"Nessa atmosfera de confusão de hierarquias e de valores, os fiéis já não eram capazes de distinguir com a clareza de outrora entre o sagrado e o profano, e entre o sacerdote e o leigo (...) Em canções profanas se mesclavam palavras litúrgicas, e se compunham missas com temas de canções profanas (...) Jean Michel, que narrou em 65 mil versos o segundo e o terceiro dias de 'La Pasión', de Gréban, não viu inconveniente em introduzir, para atrair a atenção do público, cenas cômicas e realistas, tais como as dos amores de Judas ou da vida mundana de Maria Madalena". (DELUMEAU, J. op. cit., p. 15-16)
Podia a figura do sacerdote conservar, em tal clima, pureza e seriedade, que eram a sua força?
Claro que não! E essa "crescente confusão entre o sagrado e o profano e a mútua influência entre ambos os domínios, religioso e civil", traziam consigo um clima de dúvida... (DELUMEAU, J. op. cit., p. 17.)
O que poderia salvá-los das desgraças terrenas e do julgamento divino?
"A Igreja ensinava que era necessário confessar e comungar para obter indulgências". No entanto, em meio ao desespero e à confusão de valores, temerosos e ignorantes, os povos do Ocidente medieval trataram de acreditar que podiam "comprar" sua salvação através de esmolas e doações para a Igreja. Os abusos não tardaram e a venda de indulgências, de cargos eclesiásticos e de imagens se tornou uma das vergonhas da Igreja.
Os humanistas se propuseram a solucionar esses males. Quiseram purificar a linguagem em que se transmitia a palavra de Deus, libertar as Escrituras do exclusivismo eclesiástico e apresentá-las sob uma nova visão. Pondo em dúvida a autoridade da Vulgata (versão latina da Bíblia, reconhecida como verdadeira pelo Concílio de Trento), e colocando as ciências filológicas acima de toda a autoridade dos bispos e papas, introduziram o método crítico nos temas religiosos. Insistiram na religião interior do homem, desvalorizando a hierarquia eclesiástica, o culto dos santos e as cerimônias.
A insegurança do homem aumentava. Ele começava a crer na compra da salvação. Mas a dúvida permanecia e, com ela, a angústia que Lutero, no século XVI, veio a amenizar, quando afirmou: "Só a fé salva".
"Aos que temiam o inferno, Lutero dizia: Deixai de vos atormentar! Deus não é um juiz severo, mas um pai compassivo. Fazei o que quereis, sois e sereis pecadores toda a vossa vida. Contudo se crerdes no Redentor, estais salvos. Tende confiança!" (Citado por DELUMEAU, J. op. cit., p. 12)
Começou com Lutero o movimento reformista. Foi na Alemanha, em 1517, que Lutero combateu duramente a Igreja Católica, dando origem à Reforma Protestante.
Se alguém lhe perguntasse quais as causas da Reforma Protestante, o que você diria?
Diante dessas questões muitos responderam que a Reforma surgiu porque a Igreja estava corrompida pela libertinagem, pelo abuso, desrespeito, enfim, estava dominada pela impureza.
Você concorda com essa explicação?
As causas da Reforma foram, então, mais profundas... Todas as inovações teológicas respondiam às necessidades da época, isto é, todas as transformações sociais, políticas e econômicas exigiam mudanças ideológicas.
Podemos dizer que a Reforma foi produto de uma multiplicidade de fatores políticos - oposição dos reis ao supranacionalismo papal -, econômicos - interesse da nobreza pelas terras da Igreja e da burguesia na extinção da doutrina do "justo preço" etc. -, e intelectuais - ação do Humanismo, na sua crítica à Igreja.
Sob um pretexto religioso, os interesses envolvidos no movimento levaram às Guerras de Religião, que ensanguentaram a Europa no século XVI. A Reforma se espalhou pelos países escandinavos (luteranismo), pelas cidades suíças (calvinismo) e pela Inglaterra (anglicanismo, presbiterianismo e puritanismo), chegou até a América do Norte através dos "Peregrinos do Mayflower", perseguidos na Inglaterra e que esperavam encontrar na América uma terra de liberdade e de tolerância... Nos Países Baixos e na Suíça, então colocados sob o domínio dos Habsburgo, a Reforma se mesclou com a luta pela independência nacional, de que resultou a formação da República das Províncias Unidas (sendo a Holanda a principal província) e a separação da Bélgica, que permaneceu católica e submetida ao Império dos Habsburgo.
A Igreja Católica reagiu ao movimento através da Contrarreforma, cuja expressão máxima foi o Concílio de Trento.
A autoridade real, o absolutismo, saiu reforçada com a Reforma, sendo exceção o imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
Em última análise, significou um formidável golpe na superestrutura feudal, enfraquecida com a divisão da Igreja Católica.
Era o sinal de novos tempos...
AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 128-132.
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