Imagem 1
Imagem 2
As relações estabelecidas entre as informações históricas fornecidas por meio de diferentes fontes (pinturas, fotografias, mapas e outras) exercem papel fundamental no complexo processo de construção e constituição da ideia de contextos históricos.
Ao longo do século XX, a noção de fonte histórica ampliou-se tanto que os historiadores passaram a utilizar as palavras vestígio e registro para denominar, genericamente, tudo aquilo que pudesse revelar importantes informações acerca da atividade humana, tanto no presente quanto no passado, tais como fotografias, canções, provérbios, mapas, filmes, pinturas, obras arquitetônicas, armas, sepulturas e outros.
Essa nova dimensão que as fontes documentais passaram a ter foi assim evidenciada pelo historiador Lucien Febvre:
"A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e a maneira de ser do homem." (FEBVRE, Lucien apud LE GOFF, Jacques. ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. p. 98.)
A seguir, são apresentadas duas pinturas, aqui entendidas como fontes iconográficas que têm como tema a proclamação da independência.
A imagem 1, intitulada A Proclamação da Independência, foi produzida em 1844, pelo pintor francês René François Moreaux (1807-1860), no contexto das comemorações dos 20 anos da proclamação da independência. A ideia central da obra é a construção de uma imagem de D. Pedro como um líder com forte apelo popular, uma vez que ele é retratado em meio ao povo que, de maneira idealizada, é representado como se fosse um ator importante dos acontecimentos do 7 de setembro.
Ainda assim, D. Pedro é a figura central, sendo ressaltado pelo fato de estar em primeiro plano mais elevado do que outros personagens. O pintor também faz cair sobre sua figura uma luz que vem do céu, como a indicar uma orientação divina em sua ação histórica.
A presença de personagens populares indica que o artista se inspirou na Revolução Francesa em sua composição, uma vez que esta também contribuiu, no plano das artes, para que pintores, como Davi, por exemplo, colocassem o povo como modelo e referência.
No entanto, apesar de o povo estar representado na obra, é sobre D. Pedro que recai a luz divina, indicando que a proclamação da independência não foi uma ação coletiva. Afinal, é D. Pedro quem está armado, em traje de gala, e iluminado, um sinal de que foi divinamente escolhido para executar esta missão histórica.
Ainda em relação à imagem 1, é preciso destacar os seguintes detalhes:
* em relação à paisagem, esta é de difícil percepção, considerando-se o grande número de pessoas representadas;
* quanto ao lugar que as pessoas ocupam na imagem, pode-se ver D. Pedro montado a cavalo, o que o deixa (e os oficiais também) numa posição superior em relação à multidão;
* as pessoas, exceto as crianças em mangas de camisa e descalças, estão bem vestidas e calçadas, revelando um paradoxo em relação à efetiva condição das camadas populares na época;
* enquanto os oficiais saúdam a multidão, D. Pedro saúda os céus, como que agradecido por ter sido escolhido para uma determinada missão;
* ainda em relação ao vestuário, D. Pedro e os oficiais foram representados em uniforme de gala;
* no canto direito do quadro, há uma personagem olhando diretamente para o espectador, "convidando-o" a fazer parte da cena.
Já a imagem 2, uma pintura intitulada Independência ou Morte, também conhecida como O grito do Ipiranga, foi produzida 66 anos após o fato a que faz referência. A obra foi pintada, em 1888, pelo artista brasileiro Pedro Américo (1843-1905), membro da Academia de Belas-Artes, e feita sob encomenda de D. Pedro II. O imperador pretendia melhorar a imagem do governo junto à elite e ao povo relembrando o ato da independência como um momento glorioso e fundamental para o Brasil. Esse quadro visava reproduzir fielmente, a partir de determinadas concepções, o momento da proclamação.
Em relação à imagem 2, é preciso destacar os seguintes elementos:
* a casa representada à direita teria sido construída por volta de 1850 e, portanto, não existia em 1822, data na qual ocorreu a proclamação da independência;
* D. Pedro está à frente de um grupo, empunhando sua espada, ocupando o lugar mais alto na representação;
* os uniformes dos soldados que formam a guarda e do grupo de nobres também representados são inadequados para o contexto histórico que permeou o 7 de setembro, uma vez que não eram apropriados ao tipo de viagem que o príncipe regente estaria fazendo, isto é, uma subida de serra, na qual eram utilizadas como vestimentas básicas grandes camisolões de algodão;
* a presença de cavalos na composição da obra também entra em contradição com a realidade, uma vez que estes animais não eram utilizados em subidas de serras, mas sim mulas;
* em relação ao lugar que as pessoas ocupam na imagem, também há uma hierarquia: em primeiro plano, ao centro e à direita, os soldados ocupam o sopé do terreno levemente acidentado; ao centro, em posição elevada, um grupo de homens em trajes de gala está representado à esquerda da figura de D. Pedro;
* um personagem popular conduzindo um carro de bois e trajando roupas simples pode ser visto no canto inferior esquerdo;
* o primeiro grupo de soldados foi representado empunhando as espadas, saudando D. Pedro, enquanto alguns, no canto direito, estão subindo em seus cavalos, reforçando a impressão de que o quadro é um instantâneo, uma "fotografia", ou seja, aquilo que "realmente aconteceu";
* os soldados estão trajando um uniforme que é utilizado pelos "Dragões da Independência", uma licença estética do artista, uma vez que este uniforme e a própria guarda foram criados em 1824, portanto dois anos após o episódio retratado.
BERUTTI, Flávio. Caminhos do Homem. Curitiba: Base, 2010. p. 190-194.
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