"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 30 de junho de 2012

Manifesto do Partido Comunista

"Proletários de todos os países, uni-vos". Cartaz de Dmitry Moor (1919)

[Texto 1] [...] Até hoje, a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da cidade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta.

Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma Antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, gradações especiais.

A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. [...]

As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia.

A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários. [...]

Ora, a indústria, desenvolvendo-se, não somente aumenta o número de proletários, mas concentra-os em massas cada vez mais consideráveis; sua força cresce e eles adquirem maior consciência dela. [...]

PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Alfa-Ômega, s.d., vol. III. p. 21-47.

[Texto 2] O Manifesto Comunista, de 1848, e sua sequência, O Capital, de 1867, parecem totalmente desacreditados atualmente. Os maiores governos baseados nos argumentos de O Capital ruíram (a União Soviética em 1991) ou fizeram concessões para a propriedade privada e o incentivo individual (a República Popular da China);

Mesmo assim, o impacto global deste tratado político-econômico de Karl Marx e Friedrich Engels foi incrível. O trabalho incitou diversas revoluções e remodelou drasticamente as sociedades.

O Manifesto Comunista ataca o governo, a religião e a cultura tradicional, vendo-as como ferramentas de uma classe capitalista repressora, composta pelos donos de fábricas e minas que usam outras pessoas para lucrar com suas propriedades. Marx e Engels apresentam o comunismo, com propriedade coletiva da indústria e das fazendas e distribuição igual de recursos entre todos, como o único sistema econômico justo para todos. Teoricamente, seus argumentos foram bastante fortes entre os trabalhadores do mundo todo no século XIX. Na prática, nenhuma sociedade chamada comunista conseguiu chegar nada perto deste ideal de uma sociedade sem classes, na qual todos são iguais e ninguém tem privilégios especiais. Os líderes do partido comunista da União Soviética, por exemplo, passaram a ser uma nova aristocracia, aproveitando-se das casas de veraneio confiscadas, que outrora pertenceram aos nobres russos.

Apesar dessas falhas, as ideias socialistas ligadas às teorias de Marx ainda são poderosas influências sobre os direitos dos trabalhadores e responsabilidade do governo em praticamente todos os países desenvolvidos. As nações da Europa Ocidental, com seus serviços públicos de saúde, generosos benefícios para os desempregados e diversos programas sociais do governo, são amplamente vistas como democracias socialistas. Até mesmo nos Estados Unidos, onde o socialismo foi considerado durante muito tempo uma palavra suja, a proteção das leis do trabalho e programas como o Medicare e o Seguro Social estão enraizados no conceito socialista de responsabilidade de uma sociedade pelos seus cidadãos.

HAUGEN, Peter. História do Mundo para Leigos. Alta Books: Rio de Janeiro, 2011. p. 368-369.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

La educación de niños y jóvenes mexicas

El calmecác fue el principal centro educativo de la nobleza mexica. Un sector de los sacerdotes del calmecác participaba en la guerra y podia ascender en la jerarquia militar. Quienes conseguian más de cuatro cautivos alcanzaban el estatus de tequihua, "el que tiene un trabajo". De esta élite se elegian a los funcionarios públicos y a los capitanes de guerra.

La educación, como en el presente, desempeñaba el papel de preparar a la niñez y a la juventud para las distintos oficios que requeria la sociedad: labradores, guerreros, sacerdotes y jefes. A las mujeres se les enseñaban las tareas domésticas, suas futuras obligaciones como esposas.

Desde el nacimiento hasta los quince años de edad, aproximadamente, la educación se impartia esencialmente en el hogar: el varón a cargo del padre y la niña a cargo de la madre. En los primeros años el niño aprendia a llevar agua, a recoger los granos de maiz desparramados por el suelo y acompañaba a su padre al mercado. La niña, entretanto, aprendia de su madre los quehaceres del hogar como cocinar o hilar. A partir de los siete años y hasta los catorce, aproximadamente, los varones aprendiam a labrar, a pescar, a conducir canoas sobre la laguna; en tanto que las mujeres hilaban algodón, barrían la casa, mollan el maiz y hacian las tortillas. Existian los castigos corporales con el fin de lograr la obediencia y alejar a los jóvenes del ocio, el robo o del chisme.

A los 15 años los jóvenes entraban en la escuela, de la que existian dos tipos: el telpuchcalli, "casa de solteros", donde los hijos de la gente común de los barrios aprendian las artes y los oficios así como el manejo de las armas, también la obediencia a las normas religiosas y a las tradiciones. Cuando alcanzaban el estatus de telpopochtin, jóvenes, servían de escuderos a guerreros experimentados hasta que ellos mismos comenzaban a pelear. El futuro como guerrero dependia de la cantidad de cautivos que lograban presentar en sacrificio, cuando alguno lo conseguía se convertia en tlamani, cautivador.

Al cumprir la edad de 20 años era común que los jóvenes se casaran y se convirtieran en jefes de familia. Quienes no properaban como guerreros quedaban alejados del ejército, aunque podian ser requeridos para cumplir servicio militar. La mayoria se convertia en tributario y en miembro de las cuadrillas que realizaban obras públicas al mando de los jefes de los barrios.

El otro tipo de escuela era llamado calmecác, "casa de lágrimas", donde los hijos de los nobles se instruían en los deberes sacerdotales, del gobierno y de la guerra; en el calmecác, además, se promovía el trabajo intelectual: ciencia, lectura y escritura, adivinación, poesia e historia.

Otra posibilidad para los jóvenes de ganar un lugar en la sociedad estaba en el oficio artesanal y en el comercio. Se iniciaban como ayudantes de mercadores experimentados a lo largo de las rutas comerciales, cumpliendo a veces funciones guerreras. Con el tiempo llegaban a acumular riquezas que en parte dedicaban al sacrificio ante los dioses. Gracias al éxito económico y al fervor religioso llegaban a convertirse en pochtecatlaloque, que significa señores mercadores. Estos personages formaban un consejo para normar la actividad comercial.

GÓMEZ MENDÉZ, Sergio Orlando. Historia 3: A través de los Tiempos de México. México: Prentice Hall, 1998. p. 35.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Código de conduta [Conselho Intertribal da América do Norte]


Levante-se com o sol para orar. Ore sozinho com frequência. O Grande Espírito o escutará, se você ao menos falar com Ele.

Seja tolerante com aqueles que estão perdidos pelo caminho. A ignorância, o convencimento, a raiva, o ciúme e a avareza originam-se de uma alma perdida. Ore para que eles reencontrem o caminho do Grande Espírito.

Procure conhecer-se a si mesmo. Não permita que outros façam seu caminho por você. É sua estrada e somente sua! Outros podem andar a seu lado, mas ninguém poderá andar por você.

Trate os hóspedes em sua casa com muita consideração. Sirva-lhes o melhor alimento, a melhor cama e trate-os com respeito e consideração.

Não tome o que não é seu, seja de uma pessoa, de sua comunidade, da natureza ou da cultura. Se não lhe foi dado, não é seu.

Respeite todas as coisas que foram colocadas sobre a Terra, sejam elas pessoas, plantas ou animais.

Respeite os pensamentos, os desejos e as palavras das pessoas. Nunca interrompa os outros, nem os ridicularize, nem rudemente os repreenda. Permita a cada pessoa o direito de se exprimir livremente.

A natureza não é para nós. Ela é uma parte de nós! Toda natureza faz parte da nossa família terrena.

As crianças são as sementes do nosso futuro. Plante amor em seus corações e regue com sabedoria e lições de vida. Quando forem grandes, dê-lhes espaço para que continuem crescendo.

Evite machucar o coração das pessoas. O veneno da dor causada aos outros retornará a você.

Seja sincero e verdadeiro em todas as situações. A honestidade é o grande teste para a nossa herança do Universo.

Respeite a privacidade e o espaço pessoal dos outros. Não toque o bem dos outros, especialmente os objetos religiosos e sagrados.

Comece sendo verdadeiro consigo mesmo. Se você não puder nutrir e ajudar a si próprio, não poderá nutrir e ajudar os outros.

Respeite outras crenças religiosas. Não imponha sua crença aos outros. 

Compartilhe seus bens com os outros e faça-o com amor.

CONSELHO INTERTRIBAL DA AMÉRICA DO NORTE*

* Este conselho é formado pelos povos das famílias macroalonquino e macro-sioux: cherokee, blackfoot, lumbee, comanche, mohawk, willou, cree, plains, tuscarora, sicangu, lakota, sioux, crow e cheyenne do norte.

GUARANI, Emerson; PREZIA, Benedito, (orgs.). A criação do mundo e outras belas histórias indígenas. São Paulo: Formato Editorial, 2011. p. 66.

domingo, 24 de junho de 2012

Os cultos e refinados filisteus

A Bíblia os descreveu como um povo belicoso e bárbaro, mas os arqueólogos têm uma opinião bem diferente acerca desses antigos habitantes de Canaã

por Elisabeth Yehuda*

Para o senso comum, a palavra “filisteu” designa um indivíduo inculto e carente de inteligência, com interesses vulgares e puramente materiais. Um sujeito convencional, desprovido de toda e qualquer capacidade intelectual. Porém, para os arqueólogos, o termo evoca algo muito diferente. 

No templo Medinet Habu, inscrição retrata prisioneiros filistinos libertados 

Ecron, Gath, Gaza, Ashcalon e Ashdod são nomes que os estudiosos da Bíblia e da história de Israel sabem de cor. Representam as localidades que constituíram, a certa época, a aliança política e econômica entre cinco cidades-estado autônomas na costa sul do Levante, conhecida como a pentápole filistina. A região era habitada por povos oriundos do Egeu, os filisteus, que se estabeleceram definitivamente no local durante a Idade do Bronze tardia. 

De Josué a Jeremias, o Antigo Testamento sistematicamente os descreve como inimigos mortais dos hebreus. São apresentados como guerreiros incansáveis, que combatem e humilham cruelmente os israelitas, oferecendo ao deus Dagan todos os bens alheios saqueados. Em uma das inúmeras guerras travadas entre os dois povos, os cadáveres degolados do rei Saul e de seus filhos ficaram friamente expostos diante das muralhas da cidade de Beth Shean. Porém, a vingança dos israelitas, ou melhor, de seu deus Jeová, não foi menos atroz: segundo a narrativa bíblica, o povo inimigo sofreu moléstias, ulcerações e chagas. Davi, por ocasião de seu casamento com Michal, filha de Saul, presenteou sua noiva com o prepúcio de 200 filisteus mortos. Nos tempos em que ainda pastoreava as ovelhas de seu pai, Jessé, ele já havia sido protagonista de um célebre embate, em que demonstrou ao amedrontado exército israelita que bastava uma funda para dobrar a força filistina, encarnada no gigante Golias. Outro personagem conhecido da querela, Sansão, escolhido de Deus, viveu a amarga experiência de que nem sempre é vantajoso desposar uma mulher da tribo inimiga. 

Não fossem os autores do Livro Sagrado judaico, os filisteus permaneceriam tão desconhecidos como inúmeros outros povos da época. Mas os escribas bíblicos consideraram-nos dignos de nota e desde então, graças ao caráter das descrições a eles dedicadas, os povos do mar gozam da inglória fama de incultos e bárbaros. No entanto, os achados arqueológicos trazem à luz a avançada cultura filistina e comprovam que a tribo sabia perfeitamente se portar como povo civilizado.

Em finais do século XII a.C., o faraó Ramsés III ergueu o templo mortuário em Medinet Habu. Ali, o governante quis perpetuar seu nome e feitos heróicos e, para tanto, decorou as paredes externas do mausoléu com preciosos relevos, representando as cenas de suas inúmeras glórias. Os frisos são acompanhados de textos explicativos, que descrevem minuciosamente cada uma das batalhas vencidas. Entre eles, a história das pelejas contra os povos do mar.


Por volta de 1190 a.C., no oitavo ano de reinado de Ramsés III, o Egito foi atacado por uma coalizão de povos marítimos. O faraó massacrou os invasores e contabilizou uma retumbante vitória. Entre os derrotados, havia tribos de nomes tão sonoros como Thekker, Shekelesh, Denyen, Wesheh e Peleset. Os estudiosos concordam que estes últimos são idênticos aos filisteus da Bíblia. 

O quadro é complementado pelo Papiro Harris, uma crônica da época de Ramsés IV – aproximadamente 1153 a.C. –, que detalha ainda mais os conflitos bélicos ocorridos durante o reinado de seu predecessor. Os documentos relatam o massacre empreendido por Ramsés III. Vencidos e aprisionados, os filisteus foram levados à força para guarnições no Egito. 

Mas a dúvida permanece: até que ponto os construtores de Medinet Habu e os escribas do papiro foram fiéis à realidade? Afinal, a narração de batalhas indecisas ou de vitórias dos rebeldes não seria benéfica à gloriosa memória do faraó. A ciência concorda que a questão é controversa. Há décadas, os estudiosos discutem o teor de verdade dos textos. Parte dos pesquisadores argumenta que não há exageros nos relatos, e que o faraó egípcio teria, de fato, trucidado os filisteus e colonizado as guarnições com os sobreviventes. As imagens e a narrativa que chegaram à atualidade demonstram que os povos do mar não avançaram rumo ao Egito somente com seus exércitos, mas com carruagens cheias de mulheres e crianças. Porém, se populações inteiras se mobilizaram em direção a terras estrangeiras, tendo sido interceptadas pelos egípcios e obrigadas a se estabelecer nos domínios do faraó, algum vestígio concreto dessa colonização deveria permanecer. E o Egito não guarda remanescentes da cultura filistina, que aparece mais nítida em outros locais.

Um segundo grupo de estudiosos considera a tese de assentamento compulsório dos povos do mar bastante plausível, mas argumenta que a descrição do local de colonização é muito vaga. Esses pesquisadores ponderam que os filisteus podem ter sido levados a algum lugar ao norte do reino egípcio. E como este era bastante vasto, não é impossível que a Terra de Canaã, sob domínio do Egito nos tempos de Ramsés III, tenha sido o local do desterramento. Os sepultamentos ao estilo egípcio lá encontrados, possivelmente herdados pelos recém-chegados de seus dominadores, e os objetos escavados na região juntamente com peças de cerâmica moldadas à moda filistina depõem a favor dessa teoria. 

Uma terceira linha de pesquisa coloca em dúvida as conquistas e relatos de glória de Ramsés III. Segundo seus defensores, os egípcios não saíram de modo nenhum vitoriosos das batalhas contra os filisteus e estes teriam colonizado a região de Canaã por conta própria. As marcas de destruição nos postos egípcios avançados, como em Tel el-Farah, nos quais foi encontrada cerâmica tipicamente filistina, parecem comprovar essa hipótese.

Fragmento esculpido em calcário encontrado no templo de Ramsés III

A origem dos povos do mar é mais um assunto de disputa entre os estudiosos, que concordam apenas sobre o espaço do Egeu como local de procedência. Alguns pesquisadores consideram a região micênica como berço dos filisteus. Outros, mais cuidadosos, defendem uma opinião conservadora: a pátria dos povos do mar seria Chipre. E há ainda os audazes, que consideram que a colonização de Canaã se deu a partir da Anatólia. Estes chegam a lançar mão da Ilíada de Homero como repositório de informações sobre a origem filistina. Afinal, se o famoso arqueólogo alemão Heinrich Schliemann conseguira encontrar Tróia guiado pelos versos do grande poeta grego, então não parece impossível que Menelau ou Odisseu, que depois de intermináveis périplos haviam atracado nas costas da Líbia e do Egito, tenham sido os ancestrais dos filisteus.

Em Medinet Habu, o faraó perpetuou sua suposta vitória sobre os povos do mar

O registro arqueológico só reconstitui a origem filistina até Chipre, a última estação inquestionavelmente pertencente aos povos do mar em sua peregrinação rumo ao sul. Depois disso, qualquer tentativa de relacionar os diversos achados fracassa em função da semelhança dos supostos vestígios com os remanescentes de outras culturas oriundas do Egeu.


No Levante, os recém-chegados filisteus realizaram mais do que simplesmente amedrontar os nativos. Traziam na bagagem sua própria cultura e esforçaram-se por estabelecê-la no novo lar. Mas eis que surge nova matéria de controvérsia entre os estudiosos. Uns acreditam que o desenvolvimento que se seguiu representa mera assimilação, com a crescente dissolução dos costumes filistinos. Outros consideram tratar-se de uma aculturação, isto é, uma troca ativa entre duas ou mais culturas, resultando na modelagem de cada uma delas. 


De todo modo, o que parece certo é que, embora os filisteus tenham vindo como conquistadores, logo trataram de se arranjar com os hábitos de Canaã. Adotaram os elementos que consideraram bons e práticos e mantiveram aquilo que lhes era caro. Assim, seus deuses são todos de origem cananéia, bem como os parâmetros de guerra que passaram a usar, como se pode verificar pela armadura ostentada por Golias no relato bíblico. A cerâmica, no entanto, foi considerada demasiadamente simples, e os filisteus continuaram a moldar suas peças de acordo com suas antigas técnicas e tradições. As escavações na pentápole filistina trouxeram à tona uma enorme quantidade de peças em estilo micênico. Porém, um século depois do assentamento inicial, parece haver ocorrido o reconhecimento do valor da cerâmica cananéia e a incorporação de novos elementos estilísticos, levando a uma produção que unia os estilos micênico, cipriota, cananeu e egípcio.

Possivelmente, a ojeriza bíblica aos filisteus se relaciona menos com sua propalada violência bélica e mais com os seus hábitos. Seu cardápio incluía – além de boi, carneiro, aves e cabra – carne de porco, ingrediente culinário impensável para os hebreus e não encontrado nas montanhas vizinhas, habitadas pelos israelitas.

Se considerarmos que os filisteus não veneravam um único deus patriarcal mas uma grande quantidade de deuses e deusas, a indignação sacerdotal hebraica se torna ainda mais compreensível. A segunda mais importante divindade filistéia respondia ao sonoro nome de Baal-Zebub e os israelitas consideravam esse deus a personificação do paganismo. Hoje, belzebu é um nome corriqueiro para o diabo.

Embora sua engenhosidade não tenha sido reconhecida pelos moradores da montanha, os invasores destacaram-se na arte da construção naval, introduzindo grandes inovações tais como a âncora de pedra com braços de madeira, a vela móvel para as embarcações e o cesto da gávea.

A arquitetura também pôde se beneficiar: até então, a construção fazia uso apenas de pedras brutas e tijolos. Os povos do mar trouxeram a técnica de esculpir grandes blocos rochosos. Além disso, desenvolveram e aperfeiçoaram o processamento de metais.

Em XI a.C., as cidades filistéias floresceram e destacavam-se pelos espaços amplos e pelas generosas construções. Os templos, erguidos em veneração a Dagan, impressionavam pela vastidão de suas galerias, cujas pilastras sustentavam tetos semi-abertos. Em seu interior, ardiam fogos sagrados, e altares móveis, nichos e plataformas de oração guarneciam os locais de culto. Em Ashcalon, vinhos exóticos eram produzidos e exportados. Numerosas garrafas foram desenterradas no local, comprovando que os habitantes dessa cidade gostavam de consumir a bebida, além da tradicional cerveja. Ecron, por sua vez, alcançou fama nacional e talvez até internacional pela produção de outro líquido precioso: o óleo de oliva, que se destacou na época pela excepcional qualidade.

No século X a.C., quando da unificação das tribos israelitas sob o rei Davi, os filisteus foram colocados diante de uma grande dificuldade, com a força multiplicada dos hebreus ameaçando-os. Além destes, os arameus, babilônios e assírios foram de igual importância para sua decadência. Os arameus, por exemplo, não mediram esforços para conquistar a cobiçada Gath e, no século IX a.C., chegaram a sitiá-la, escavando um poço com mais de seis metros de profundidade e sete de largura. Após ser tomada, a cidade nunca mais se recuperou da destruição, desaparecendo dos registros por volta do século VII a.C. A última menção a ela ocorre em 712 a.C., quando foi conquistada pelos assírios e obrigada a pagar pesados tributos ao rei Sargão II, que no mesmo período dobrou Ecron ao seu jugo. Ashdod já havia se tornado província assíria um ano antes. Em 701 a.C. , o soberano de Ecron, o filisteu Padi, foi levado a Jerusalém por Hezekiah, rei judaico que se rebelara contra os assírios.

A derrocada ocorreu ao final do século VII a.C. A batalha de Karkemish, travada em 605 a.C., derrubou o domínio assírio sobre as províncias da costa mediterrânea e abriu caminho ao rei babilônio Nabucodonosor. Com sua chegada, Ecron, Ashdod e Ashcalon, sofreram a derradeira destruição. As escavações testemunham o cenário de horror que se estabeleceu. Ashcalon, com suas ruas de comércio, templos e palácios, foi inteiramente incendiada. Nada nem ninguém foi poupado, e os sítios arqueológicos atestam a existência somente de escombros de guerra. Em Ecron, o fogo dos conquistadores ardeu com tamanha intensidade que arrebentou as pedras calcárias das construções. Nenhuma peça de cerâmica permaneceu inteira, comprovando a violência do assalto que se abateu como uma catástrofe natural sobre a cidade. Depois da completa destruição, os poucos moradores sobreviventes foram aprisionados e deportados para a Babilônia.

A cultura filistina chegava, assim, ao seu ponto final. E, ao contrário dos israelitas, que haviam sofrido destino semelhante mas aos quais, depois de 70 anos de prisão, foi aberta a possibilidade de retornar a sua pátria, os filisteus que não haviam sucumbido ao massacre nunca mais voltaram à Palestina natal. Deles resta somente o relato antipático da Bíblia e o papel de personificação do mal e da estupidez.

* Elisabeth Yehuda é arqueóloga do Instituto Israelita de Arqueologia. In: Revista História Viva

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Era Vargas III: o mito Vargas

Como todos os mitos políticos, Vargas não surgiu do vazio. Vargas foi, ou é ainda, o mito que representava o Estado nacional organizado, a legislação trabalhista, a soberania, o nacionalismo, a brasilidade, a defesa dos humildes. Era o "pai dos pobres" e o chefe com qualidades excepcionais. Como se deu esta criação? Como um político parecido com tantos outros pôde ser transformado em um tipo único, superior e exemplar? Isso só pode ser explicado pelo longo e sofisticado processo de propaganda e pelas muitas providências tomadas pelo poder centralizados e autoritário do Estado Novo.

O mito Vargas começou a ser construído pelo Estado Novo quando foi montada uma ampla rede de censura e propaganda. O DIP, órgão que se encarregava dessas tarefas, dedicou-se com afinco a promover a imagem do ditador. Eram produzidos filmes mostrando, de forma heróica, a obra e a vida de Getúlio Vargas, as inaugurações que fazia e as homenagens que recebia. Esses filmes eram exibidos nos cinemas e nas escolas. Várias festividades foram criadas e constituíam ocasiões especiais em que o presidente se dirigia às massas e era por elas saudado. Exemplos disso eram as festividades do Dia do Índio e do aniversário do presidente (19 de abril), do Dia do Trabalho (1º de maio), do Dia da Raça (10 de junho) e do Dia da Pátria (7 de setembro).

Nessas datas costumava haver, normalmente em estádios de futebol, grandes desfiles de crianças e jovens, uniformizados e devidamente treinados para que a parada fosse uma demonstração de grandiosidade da Pátria e de seu chefe. Retratos de Vargas eram distribuídos entre os que desfilavam e por eles carregados de modo que ele fosse a imagem mais presente na cerimônia. As músicas evocavam também a liderança do chefe e o patriotismo do povo, e tudo era preparado para que a beleza estética das cores, dos movimentos, das imagens fosse também grandiosa. [...]

Livros como Getúlio Vargas para crianças e História de um menino de São Borja [sua cidade natal] mostravam regularmente uma ideia pejorativa das atividades políticas democráticas e a "coragem" de Getúlio em destruí-las quando se transformou em ditador. A ditadura, que silenciava a todos, era apresentada como obra do gênio para proteger seu povo, e os que a ela se opunham eram tratados como inimigos da nação.

Propaganda do Estado Novo, mostrando Vargas ao lado de crianças

Além da propaganda oficial, registrada em documentos escritos e audiovisuais, foram surgindo aos poucos manifestações da cultura popular que evidenciavam aqueles sentimentos de exaltação a Vargas e ao povo brasileiro. É possível, por exemplo, encontrar um amplo conjunto de músicas que enaltecem a figura de Vargas. A literatura de cordel foi abundante nesse sentido.


No imaginário popular, predominou a imagem de um chefe protetor, qualidade indicada como superior, ou até mesmo independente, de suas tendências e de sua trajetória política. De certa forma, o mito Vargas teria cumprido o papel sonhado por seus mentores: tornou-se uma forma simbólica de comunicação entre o líder e seus liderados, uma maneira de relacionamento entre a massa e o chefe de governo, uma especial modalidade de patriotismo e de obediência política. [...]

D'ARAÚJO, Maria Celina. A Era Vargas. São Paulo: Moderna, 1997. p. 91-95.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Era Vargas II: "Trabalhadores do Brasil"

Trabalhadores homenageiam Getúlio Vargas na Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro, 1940

A permanência de Getúlio Vargas no poder dificilmente teria sido possível sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu primeiro governo. Para se ter noção do significado profundo dessa afirmação, basta mencionarmos que, por volta de 1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras palavras: pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassava a agrícola como a principal atividade da economia. Nesse mesmo período, também assistimos ao surgimento da indústria de base, ou seja, aquela dedicada à produção de máquinas e ferramentas pesadas, à siderurgia, à metalurgia e à indústria química.

[...]

A industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na cidade seu espaço privilegiado. Por isso mesmo, a Era Vargas - incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 - pode ser caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por exemplo, apenas dois em cada dez brasileiros residiam em cidades; vinte anos mais tarde essa mesma relação era de três para dez; nos anos 1940, tal proporção tornara-se equilibrada: quatro em cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. A formação de novas cidades e o crescimento das já existentes estimulavam, por sua vez, a multiplicação de trabalhadores, não vinculados às tradicionais atividades agrícolas e de industriais não-fazendeiros [...].

Getúlio Vargas, na esperança de se contrapor ao poder oligárquico, valorizou a aliança com os grupos urbanos e, paralelamente, manteve sua aproximação com o exército. Para cada segmento específico foi traçada uma estratégia política. No caso dos trabalhadores urbanos, em 1930 era criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Dois anos mais tarde, Vargas começa a implementar mudanças na legislação, favoráveis ao operariado: estabelece, por exemplo, a semana de oito horas. [...] no mesmo ano que era atendida uma reivindicação defendida pelo movimento operário desde fins do século XIX, estabeleciam-se os primeiros traços do sindicalismo corporativo. [...] 

Tal mudança foi acompanhada pela criação do imposto sindical, através do qual se descontava anualmente um dia de trabalho da folha de pagamento dos operários, com a finalidade de financiar a estrutura sindical. O ditador generalizava, dessa forma, o modelo corporativo para o conjunto das entidades representativas dos trabalhadores. De instrumentos de luta, os sindicatos dos anos 1940 passam à condição de agentes promotores da harmonia social e instituições prestadoras de serviços assistenciais.

Com certeza, os líderes sindicais formados na antiga tradição anarquista viam criticamente essas mudanças, encarando-as como uma maneira de cooptação e de manipulação dos interesses da classe trabalhadora. Porém, entre a massa operária, a postura parecia ser outra. Para muitos, familiarizados com as associações mutualistas, Getúlio Vargas atendia a certas expectativas, como no caso da generalização dos institutos de previdência, garantindo assim aos trabalhadores o direito à aposentadoria. [...] Vargas conseguiu sensibilizar inúmeros militantes oriundos das lutas socialistas. A Consolidação das Leis Trabalhistas, firmada em 1943, viabilizava isso. Nela determinava-se que, a partir de então, o trabalhador dispensado deveria ser indenizado, a mulher operária teria o direito de proteção à maternidade, assim como ao menor restringia-se a exploração através do trabalho. [...] Getúlio Vargas, dessa maneira, surgia aos olhos de muitos como um protetor [...].

Os empresários também viram parte de suas expectativas serem atendidas. [...]

Getúlio Vargas em muito se diferenciava dos presidentes da República Velha. [...] Em certas ocasiões, o ditador aproveitava-se da tensa situação internacional do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir vantagens. Oscilando entre apoiar ora os aliados, ora os países do eixo, o governo brasileiro conseguiu apoio norte-americano para instalação, em 1941, da Companhia Siderúrgica Nacional, cujos efeitos na área industrial foram extremamente benéficos. Getúlio foi hábil em descobrir e integrar a seu projeto político-econômico intelectuais descontentes e reformistas. [...]

Em relação à área econômica mais desenvolvida do país, a política getulista foi generosa. No início dos anos de 1930, era retomada a política de valorização do café [...]. Graças à manutenção do elevado nível de renda local, coube a São Paulo liderar o processo de formação do mercado nacional voltado para a substituição das importações. [...] A importância dos empresários paulistas cresce a olhos vistos: nos anos de 1940 eles passam a ser responsáveis por metade da produção fabril brasileira [...].

Não foi somente na economia que a intervenção estatal getulista se nobalilizou. Em certas áreas registraram-se, igualmente, mudanças profundas. Esse foi o caso da educação. Durante a gestão de Gustavo Capanema - Ministério da Educação e Saúde entre 1934 e 1945 [...] -, foram planejadas e implementadas importantes alterações, como a ampliação de vagas e a unificação dos conteúdos das disciplinas no ensino secundário e universitário. Isso para não mencionarmos ainda a criação do ensino profissional, consubstanciado em instituições como o Senai, o Sesi, o Senac e o Sesc.

A aproximação de Getúlio com o que havia de mais moderno na época [...] expressou-se através da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Voltado para a propaganda política através dos novos meios de comunicação, como o rádio e o cinema, o DIP era responsável pela organização de rituais totalitários de culto à personalidade do ditador. Essa organização [...] tentou controlar até a produção cultural popular, conforme ficou registrado nas alterações impostas às letras de sambas. [...]

Como seria de esperar, Getúlio esteve longe de agradar a todos os segmentos da elite dominante. Os setores agrários acusavam a indústria de desviar braços do campo, ao mesmo tempo em que percebiam estarem financiando as importações de insumos fabris e investimentos do Estado na infra-estrutura industrial. Mesmo entre os empresários, o fundador do Estado Novo estava longe de ter unanimidade. A legislação trabalhista onerava a atividade industrial, reduzindo o ritmo de acumulação nesse setor. [...]

Não é de estranhar, portanto, que, ao longo do Estado Novo, ampliassem as vozes descontentes frente ao rumo tomado pelo governo. A própria legislação que acompanhou o golpe facultava à oposição uma alternativa de poder.A ditadura instalada em 1937, curiosamente, tinha data marcada para acabar. Segundo a constituição então outorgada, previa-se, para 1943, um plebiscito em que o regime seria posto à prova nas urnas. Um ano antes, a decretação do "estado de guerra" - ou seja, de preparação do Brasil para lutar na Europa contra o nazi-fascismo - permitiu que esse prazo fosse transferido para o período imediatamente posterior ao término dos conflitos.

Em 1941, já estavam sendo feitas as primeiras articulações para garantir a transição política. O próprio ditador tentava organizar um partido nacional. Dois anos mais tarde, o descontentamento das elites marginalizadas pelo Estado Novo veio a público através do Manifesto dos Mineiros. Nesse texto, amplamente divulgado de norte a sul do país, políticos de renome nacional [...] criticavam o caráter autoritário do governo, ao mesmo tempo que, manifestando uma nostalgia pelo regionalismo que tanto caracterizou o sistema de poder da República Velha, o acusavam de "espoliação do poder político de Minas Gerais". Em 1944, a estrutura partidária que comandaria a transição já estava praticamente constituída. [...] Entre as elites dissidentes, que desde a Revolução de Trinta haviam sido marginalizadas, agrupam-se na União Democrática Nacional (UDN). Paralelamente a essa oposição, Vargas promove a reunião dos interventores no Partido Social Democrático (PSD). Enquanto isso, a estrutura sindical e previdenciária por ele criada servem de base para a formação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Tais organização, que estavam se esboçando em 1944, são legalizadas no ano seguinte. A UDN lança candidato próprio às eleições  previstas para 1946, o mesmo ocorrendo com o PSD. A posição do PTB é outra. Não lança candidato, mas defende a convocação de uma assembléia constituinte ainda no governo de Getúlio, que seria por isso mesmo prolongado um pouco mais. Tal movimento ganhou as ruas - sendo popularmente denominado na época como "queremismo", ou seja, "queremos Getúlio" - e contou com o apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB); apoio esse, aparentemente, surpreendente. Como vimos, Vargas foi responsável por uma feroz repressão aos comunistas. No entanto, é necessário lembrar que foi no seu governo que o Brasil entrou em guerra contra o nazi-fascismo, em uma aliança na qual participou a antiga União Soviética. No final de sua gestão houve também a anistia e a legalização do PCB. Mais ainda: para os comunistas, os inimigos políticos de Vargas reunidos na UDN representavam o que havia de mais atrasado na sociedade brasileira.

Além de mobilizar as massas urbanas, o ditador começa a fazer modificações no comando da polícia do distrito federal. Crescem as suspeitas de que as eleições seriam manipuladas em prol da continuidade do governo. [...]

Em 1945, as forças armadas, embora tivessem enviado "apenas" 23.344 soldados para a Segunda Guerra Mundial, aproveitaram a justificativa do conflito internacional para formar um contingente interno de 171.300 homens. [...] Getúlio experimentava agora o sabor amargo de uma prática intervencionista feita por uma instituição que ele mesmo havia ajudado a crescer. Em 29 de outubro de 1945, sob pressão do exército, o criador do Estado Novo deixava o poder. [...]

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 320-323, 325-331.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Era Vargas I: revoluções e golpes

Cena da Revolução de 1930. Ao centro, Getúlio Vargas. Foto de Claro Jansson

Para os leitores de jornais da época, o golpe que depôs Washington Luís e, consequentemente, impediu a posse de seu sucessor, Júlio Prestes, parecia ser um típico confronto entre chefes políticos da República Velha. Muitos achavam que o novo governo não duraria, pelo fato de a sustentação política da Revolução de 1930 ser bastante frágil. O movimento [...] havia desafiado o domínio de poderosas oligarquias, a começar pela paulista, formada por influentes fazendeiros e industriais [...].

Para enfrentar tal coligação de interesses, Vargas articulou em torno de si vários grupos que, desde o início da década de 1920, vinham dando mostra de descontentamento frente ao domínio oligárquico. A história política brasileira de 1930 a 1954 passa, então, a ser marcada por uma série de alianças, rupturas, aproximações e perseguições entre o novo presidente e os diversos segmentos da sociedade [...].

[...] em 3 de outubro de 1930 começa a revolução. Os primeiros levantes tiveram como base os estados em que a Aliança Liberal havia melhor se implantado. Assim, nas 24 horas após o início da rebelião, Rio Grande do Sul e Paraíba já estavam dominados. Nos dias seguintes, o mesmo ocorreria no Ceará, em Pernambuco, em Minas Gerais e no Paraná. Como foi possível tão rápido sucesso? Ora, paralelamente aos bandos de jagunços dos grupos dissidentes, os oposicionistas contavam com o fundamental apoio dos militares descontentes. Os políticos da Aliança Liberal, com habilidade, selaram um pacto com os jovens oficiais do exército. Para os tenentistas, a revolução parecia atender a certas expectativas: ela permitiria combater a política oligárquica, através de um governo centralizados, além de garantir a muitas vezes anistia aos militares que haviam participado das revoltas ocorridas entre 1922 e 1927.

Duas semanas após o início do movimento, já havia sido submetida parte do território paulista. A revolução avançava agora em direção ao Rio de Janeiro. A situação era de tal maneira favorável aos revoltosos que a cúpula do exército se apressou, ela própria, a depor [...] o presidente Washington Luís. Os generais davam assim um golpe dentro do golpe [...].

A partir dessa data tem início a presidência de Getúlio Vargas. Contudo, ela parecia destinada a durar pouco. Já nos primeiros dias, o novo presidente enfrentou forte oposição paulista. [...] Segundo os democratas paulistas, a finalidade do governo provisório era garantir a reforma política através da convocação de uma assembléia constituinte.

Apoiado nos velhos tenentistas e nos novos generais, Getúlio Vargas dava a entender que tal convocação abriria caminho para o retorno das oligarquias ao poder. Descontentando ainda mais o PD, Vargas escolhe um membro das fileiras tenentistas como interventor de São Paulo. [...] Esses políticos também articulam-se com grupos políticos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, descontentes com os rumos do governo provisório. Nessa altura dos acontecimentos, Getúlio cede às pressões, convocando para breve a assembléia constituinte. [...] Em julho de 1932, os paulistas revelam do que seriam capazes para defender uma constituinte liberal: pegam em armas contra o governo. [...]

A denominada Revolução Constitucionalista, embora derrotada, alcançou parte importante de seus objetivos. No ano seguinte a seu término, além da confirmação da convocação da assembléia constituinte, os paulistas conseguiram influenciar na escolha do interventor local [...]. O mérito de Getúlio foi ter conseguido permanecer no poder. Sua situação, porém, era frágil. [...] O presidente teve de aceitar uma constituição de cunho liberal, que em muito restringia seu poder. [...]

É nesse contexto que o futuro ditador aproxima-se mais e mais do exército. A instituição, além de abrangência nacional, tinha o poder de fogo contra as oligarquias [...]. No entanto, as forças armadas continuaram divididas. Uma parcela dos antigos tenentes havia sido integrada ao governo provisório, outra parte permaneceu na oposição, radicalizando cada vez mais suas posições políticas. Exemplo disso foi Luís Carlos Prestes. No ano em que findou a revolta tenentista que levava seu nome - Coluna Prestes -, o Partido Comunista do Brasil, futuro PCB, começou a contatá-lo. Tal agremiação, nascida em 1922, era, em grande parte, resultado do impacto político da Revolução Russa. Pela primeira vez, o comunismo deixava se ser uma utopia distante [...] para se transformar em uma forma de governo [...].

[...] Entre 1917 e 1922, assiste-se à progressiva conversão de um grande número de anarquistas e socialistas brasileiros às concepções leninistas. [...]

Nesse contexto, a dissidência radical tenentista passa a ser vista como aliada em potencial do PCB, que, para selar tal aproximação, cria em 1929 o Comitê Militar Revolucionário. Apesar desses esforços, Prestes recusa-se inicialmente a se filiar ao partido. Porém, ao longo de 1930, sua posição política irá se alterar, a ponto de, no ano seguinte, rumar para o exílio em Moscou, de onde retornará como membro do PCB, em 1934. Junto a ele ingressam no partido, importantes lideranças do antigo movimento tenentista [...], além de uma massa silenciosa que permaneceu nos quartéis e que será protagonista do Levante Comunista ocorrido no ano seguinte.

Entre 1928 e 1935, observa-se, portanto, o surgimento, no interior do PCB, de uma esquerda de origem militar. Nessa última data, os comunistas brasileiros, acompanhando a tendência internacional do movimento, implementam uma política de frente popular, que, no Brasil, recebeu a designação de Aliança Nacional Libertadora (ANL). Tratava-se não só de uma aproximação com os grupos socialistas e nacionalistas, antiimperialistas e contrários ao nazi-fascismo, como também de uma tentativa de defesa das camadas populares frente à crise econômica de 1929. [...] Contudo [...] a política frentista da ANL apresentava desde seu início um forte desequilíbrio a favor dos comunistas. [...] O PCB [...] assumiu posturas cada vez mais radicais contra Getúlio Vargas, abrindo caminho para que fosse decretado, em julho de 1935, o fechamento de nossa primeira experiência de front populaire. Extinta a ANL, os comunistas [...] partem para o confronto com o governo federal. Em novembro de 1935 [...] os quartéis se levantam contra Getúlio Vargas. Em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro, os conflitos acabam resultando em mortes de oficiais e soldados.

Com oportunismo, Getúlio Vargas explora o novo momento político. A quartelada serve de pretexto para perseguição não só de comunistas como também de grupos que não pertenciam à ANL, mas faziam oposição ao governo; entre eles havia anarquistas remanescentes, sindicalistas independentes e até mesmo liberais. Mais importante ainda: a revolta consolida a aliança entre o presidente e as forças armadas. [...] Os comunistas passaram a ser vistos como inimigos viscerais, enquanto isso, as fileiras do Exército são alvo de um escrupuloso expurgo: cerca de 1.100 oficiais e praças são expulsos em razão de posições políticas. [...]

Apoiado nas forças armadas, Vargas também prepara caminho para decretar o Estado Novo. Em 1937, faz veicular pela imprensa a existência do Plano Cohen, suposta conspiração comunista, que acabou servindo de justificativa para o golpe. Tal era o plano sabidamente falso, de autoria de grupos de extrema-direita, que nele previa-se, por exemplo, o desrespeito sistemático "à honra e aos sentimentos mais íntimos da mulher brasileira", ou seja, o estupro generalizado.

Sob a alegação de que uma nova intentona estava sendo tramada, Getúlio revoga a constituição sancionada três anos antes. O golpe, porém, contrariava importantes interesses políticos, que levariam, alguns anos mais tarde, o Estado Novo ao colapso. Para 1938 haviam sido previstas eleições presidenciais. Portanto, no momento em que Getúlio impunha seu governo ditatorial, três candidatos já haviam sido lançados: Armando de Salles Oliveira, congregando facções políticas paulistas, gaúchas, assim como segmentos de oligarquias baianas e pernambucanas; José Américo de Almeida, representando grupos políticos de Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco, além de facções oligárquicas de São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul; e Plínio Salgado, chefe da Ação Integralista Brasileira, versão nacional do fascismo europeu.

Os dois primeiros candidatos articularam protestos na Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Sul [...]. O candidato integralista tem uma posição bem diversa, procurando uma aproximação com o ditador, o que não causava surpresa uma vez que várias características do Estado Novo lembravam as formas de governo nazi-fascistas. A tônica anti-semita era uma delas. O Plano Cohen, por exemplo, era muitas vezes definido como uma conspiração judaico-comunista. Mais importante ainda do que a retórica racista eram os objetivos do golpe. Previam-se, por exemplo, o fechamento do congresso, a extinção dos partidos políticos e a criação de um sistema centralizado de poder. Em outras palavras, era a ditadura contra as oligarquias, a ditadura contra os comunistas, a ditadura contra os democratas liberais.  Contudo, a tentativa de aproximação com o ditador não só falhou, como também não impediu o fechamento da Ação Integralista Brasileira. Tal ação levou os integralistas a implementarem, em 1938, um novo golpe contra Getúlio. Seu fracasso permitiu ao ditador fazer outros expurgos nas forças armadas, excluindo agora os segmentos tenentistas que haviam se encaminhado para o radicalismo de direita. Desta forma, entre 1937 e 1945, Getúlio Vargas, com a capa institucional que lembrava os governos fascistas europeus, torna-se um caudilho em escala nacional. [...]

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 311-316, 318-319.

terça-feira, 19 de junho de 2012

La familia y la moral personal mexica

La mujer ocupaba un lugar importante en el cuidado de la casa. Escena del Códice Mendocino

Al cumprir veinte años de edad, los varones podian casarse; la mayor parte de ellos lo hacia al poco tiempo con mujeres de 16 y 18 años. De manera formal, una esposa se tomaba por petición, función que cumplian algunas mujeres maduras conocidas como casamenteras. En ocasiones la pareja se unia libremente y luego se formalizaba el matrimonio. A partir de entonces quedaban sujetos a los derechos y obligaciones de todos los adultos.

El hombre era el jefe de la familia, de su trabajo dependia la produción agrícola que daba el sustento, conservaba la poseción de la parcela asignada y pagaba el tributo. La familia estaba integrada por el grupo que habitaba la casa; se les denominaba celcatin, "los de una casa". Cuando varias casas mantenian relaciones económicas y de parentesco y estaban agrupadas alrededor de una misma parcela se les llamaba cemithualtin, "los de un patio".

Al consumarse el matrimonio, la mujer pasaba a formar parte del calpulli de su esposo. Cuando envidaba con hijos, el hermano del difunto la tomaba como esposa adicional. La esposa común tenía, como en la actualidad, muchas ocupaciones: el cuidado de los hijos, la cocina y el tejido. Además se hacía cargo de los animales domésticos y ajudaba en las faenas agrícolas.

La mujer conservaba sus proprios bienes y podia hacer negocios confiando sus mercadorias a los pochtecas, es decir, comerciantes. También podia ejercer alguna actividad: era partera y curandera. En estas condiciones disfrutaba de una gran independencia.

Por lo general la familia era monógama. Entre los macehualli el adulterio sólo era castigado si lo cometia la mujer, pero ésta podia solicitar el divorcio si el hombre no trabajaba. La poligamia estaba limitada a las clases altas: el tlatoani y los tecuhtli poseían varias concubinas a la vez.

Al llegar a la vejez ambos, hombre y mujer, tenían los mismos derechos y su opinión era escuchada por todos.

GÓMEZ MENDÉZ, Sergio Orlando. História 3: A través de los Tiempos de México. México: Prentice Hall, 1998. p. 34.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

The begginnings of man


The solar system in which the Earth lies came into being 4.7 - 4.6 billion years ago out of the gas clouds and dust left over from the formation of the Sun. The Earth itself began to form 4.5 - 4.4. billion years ago, subject to heat and pressure so intense that it was at first a molten planet. The earliest stage of Earth's history is known as the pre-Cambrian period, divided into three separate sections: the Hadean, Archean, and Proterozoic.

[Earth's formation] It was during the firt period, the Hadean, that Earth was, formed, began to cool, and fell into a regular orbit around the Sun. The cooling process gave rise to the Earth's first atmosphere, which consisted of gases produced by the constant eruptions on the surface, but did not contain any free oxygen. The cooling of the Earth's crust also produced vast clouds that gave out the enormous volume of rainwater requerid to create the oceans of the word. This led to the Archean period, from 4.0 to 2.5 billion years ago, which saw the first appearance of life on Earth, initially in the form of simple bacteria. By the beginning of the Proterozoic period, simple algae were beginning to photosynthesize and create oxygen; this period also saw the formation of the first super-continent, known as Rodinia, about 1.1. billion years ago.

[Life forms] The end of the Proterozoic period and beginning of the Paleozoic era (542 to 251 million years ago) saw a massive upsurge in new forms of life, as shown in the fossil record. This "Cambrian explosion" led to the development of most of the major animal groups that survive today. While many of these species were to become extinct at the end of the Cambrian period, ca 488 million years ago, the Paleozoic period saw the increased specialization of organisms, with the separate development of fish, amphibians, and then mammals, birds, and reptiles.

It was this last group of creatures which was to provide the best-known life forms of the following period, the Mesozoic (250 - 65.5 million years ago). During it, reptiles developed into dinosaurs, the dominant species of the era, which came to an abrupt end with a mass extinction some 65.5 million years ago. It marked the end of the Paleozoic era and the commencement of the Cenozoic era, which continues to the present day. This period saw Earth's continents drift to the positions they currently occupy, while the disappearence of the dinosaurs led to the rise of the mammals - most notably our own species, Homo sapiens - as the dominant class of creatures.

[Demise of the dinosaurs] Around 65.5 million years ago, many of the species that had developed during the "Cambrian explosion" were wiped out, including the dinosaurs. This event, known to scientists as the Cretaceous-Tertiary extinction event (or K-T Extinction, from the German), wiped out some 85 percent of the species alive on Earth. Its causes are uncertain, but one plausible theory is that a massive asteroid or comet hit the Earth, creating a mass cloud of vaporized rock and steam in the atmosphere, blocking out the Sun, and causing a catastrophic drop in temperature. This would have caused many plants to die out, discrupting the food chain and possibly causing the mass extinction.

[The earliest humans] The human race belongs to the genus Homo, which first appeared around 2.5 million years ago. The earliest member of this genus, Homo habilis, developed in Africa and used simple tools. Homo ergaster, who existed some 1.65 million years ago, developed more complex tools, including axes and cleavers, and also spread beyond Africa for the first time. It was not, however, until the time of Homo erectus, some 1.8 to 1.5 million years ago, that man spread throughout Asia in any kind of numbers. The first known Europeans were Homo antecessor or Homo heidelbergensis, dating from some 800.000 years ago. Another species of Homo, the Neanderthais, also thrived in Europe from 200.000 to 25.000 years ago, when they finally became extinct, with their place being taken by Homo sapiens, modern humans.

COWPER, Marcus. History book: an interactive journey. National Geografhic. Carlton Books Limited: Washington D.C., 2010. p. 6-7.

domingo, 17 de junho de 2012

A cidade e as multidões no século XIX

"A instabilidade do mercado de trabalho acentua a extrema exploração do trabalhador e força-o a residir no centro da cidade, próximo aos lugares onde sua busca de emprego ocasional acelera e piora as condições sanitárias das moradias. [...] É na região central da cidade que o problema se manifesta de forma mais aguda; seu excesso populacional transborda, entretanto, para os bairros próximos, até atingir o perímetro industrial ainda interno à área urbana." (BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 37.)

Ilustração de Gustave Doré

A contraposição à pujança e ao otimismo burguês era dada pelos mais impressionantes símbolos exteriores do novo mundo industrial: as cidades e multidões. A intensa migração e a explosão demográfica fizeram das grandes cidades - especialmente Londres e Paris, mas também Berlim, Viena e São Petersburgo, no continente europeu, e Chicago e Melbourne, no além-mar - espaços onde se concretizava o ritmo da transformação industrial. Esses locais tornaram-se a expressão maior da contradição que se desenvolvia, fazendo com que alguns observadores colocassem, de um lado, os "ricos-civilizados" e, de outro, os "pobres-selvagens".

No centro das cidades, milhares de pessoas se deslocavam por um emaranhado de edifícios, percorrendo longos trajetos a pé ou nos recém-criados transportes coletivos. À multidão misturavam-se a nova pequena burguesia dos escritórios e lojas de departamento, funcionários públicos, trabalhadores urbanos e inválidos, pedintes, mendigos profissionais, prostitutas, vendedores de empadas, tocadores de realejo, batedores de carteira, etc. A impressão caótica fazia com que observadores descrevessem essa situação como um espetáculo que causava, ao mesmo tempo, fascínio e terror.


No século XIX, a cidade foi sinônimo também de superpovoamento, insalubridade e proliferação de cortiços. Junto ao centro da cidade, bairros miseráveis tinham péssimas condições de moradia e uma superpopulação marcada pelo desenraizamento - perda de costumes seculares causada pela migração. Nesse amontoado de moradias precárias, com uma só peça e poucos móveis e objetos, a ausência de serviços públicos básicos, como saneamento e abastecimento de água, aumentava ainda mais os riscos decorrentes da poluição do ar e das águas, provocando, por exemplo, o aparecimento de doenças respiratórias e intestinais.

Grande parte dos operários europeus do século XIX viviam em bairros pobres, não muito distantes das fábricas. Moravam em habitações coletivas onde não havia água encanada, utilizando água dos chafarizes públicos, que carregavam em potes. Nessas moradias havia apenas uma latrina coletiva, que ficava na parte externa dos prédios.

Temendo os riscos de revolta em razão da miséria e da grande concentração de pessoas nos bairros operários, os burgueses procuravam solucionar o problema da moradia. Assim, por meio do financiamento de sociedades filantrópicas, patrocinavam a construção de vilas operárias. Essas vilas eram formadas por conjuntos de pequenas casas iguais e geminadas. Porém, muitos operários se recusavam a morar nessas vilas por considerar que elas eram uma forma de os patrões estenderem o controle e a disciplina exercidos na fábrica até o ambiente das casas de seus empregados.

Na maioria das casas operárias, um mesmo cômodo servia como local de refeições e dormitório para toda a família. Tal situação incomodava muito os operários - que procuravam separar seu quarto do das crianças tão logo conseguiam juntar algum dinheiro. (DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 125.)

Contudo, não era à condição das moradias que a maioria das reivindicações operárias se dirigia. Segundo a historiadora Michelle Perrot, os operários preferiam a liberdade de morar no centro e circular livremente pelo espaço público, mesmo tendo de viver em habitações precárias. Em tempos de instabilidade do mercado de trabalho, viver no centro poderia significar mais oportunidades de emprego que nas vilas operárias afastadas, ainda que estas oferecessem condições mais dignas. As principais reclamações nesses cortiços, expressas em manifestações geralmente lideradas pelas mulheres, diziam respeito aos valores dos aluguéis.

Além do trabalho doméstico na manutenção da família, do transporte da água, da alimentação e da criação dos filhos, para complementar a renda familiar, as mulheres das classes populares urbanas dedicavam-se a outros serviços. Lavagem de roupas, pequenos comércios em bancas na rua, vendas de porta em porta e trabalhos ligados à entrega, faxina, cozinha e costura tornavam-nas agentes de uma economia informal, fundamental na manutenção dos lares.

A tudo isso somava-se a administração do orçamento doméstico, que as deixava mais sensíveis ao problema do aumento do aluguel e do custo de vida em geral. Pontos de água coletivos tornavam-se locais de sociabilidade, onde se discutiam diversos assuntos, como o planejamento de manifestações públicas, expressão política decisiva dessas mulheres. Ao contrário do que o ideal burguês pregava, a princípio, o controle da circulação exterior, para elas, foi muito menos rígido.

Menos satisfeitos com a condição das moradias populares estavam os médicos sanitaristas. Escandalizados, esses reformadores sociais denunciavam as precárias condições de higiene e saneamento como prováveis focos de infecções. Algumas destas se alastraram e se tornaram epidemias, como as de febre tifóide e cólera.

Assim, em campanha aberta, defendiam uma intervenção mais drástica contra os cortiços e hábitos populares, que, ao seu ver, geravam outros grandes flagelos sociais, como a tuberculose, o alcoolismo e a sífilis. Grandes avenidas e bulevares foram projetados e executados, assim como outras medidas: o aumento do valor dos aluguéis, o deslocamento de bairros considerados infectos ou, até mesmo, a demolição deles, com o intuito de forçar os pobres a procurar habitação em outros lugares, longe do centro da cidade.

Com o crescente medo da revolução popular, das violentas manifestações de rua e dos ativistas urbanos, principalmente após a dura experiência da Comuna de Paris, as autoridades públicas passaram a ver a boa moradia como uma chave da paz social. Soluções filantrópicas, como a construção de vilas operárias mais bem projetadas, com creches, escolas, abastecimento de água e moradias amplas, foram tentadas nesse sentido.

[...] Nesse momento, houve uma diferenciação entre a classe operária, com emprego formal e alguns direitos garantidos, e uma massa sujeita a situações de pobreza extrema, com emprego casual e superexploração do trabalho.

Durante algum tempo, as multidões continuaram assustando. [...]

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 37.
DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 125.
MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010. p. 40-41.

sábado, 16 de junho de 2012

Público e privado no mundo burguês da "belle époque"

"O século burguês foi uma era de melhoramentos, mais para os burgueses, talvez, do que para qualquer outro grupo de pessoas. Sua ideologia carregada de esperanças não era apenas uma máscara para encobrir o desespero, mas uma crença sincera no progresso." (GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 55.)

O Palácio de Crystal no Hyde Park foi uma imensa estrutura de ferro e vidro que abrigou a grande exposição de 1851. Ele simbolizava as glórias burguesas do progresso e da industrialização. Litografia de Louis Haghe.

A partir de 1848, uma nova era de expansão capitalista entrou em vigor. Mesmo com oscilações políticas, a sociedade europeia, desse período até a Primeira Guerra Mundial, assistiu ao triunfo dos valores burgueses. Uma minoria de países tornou-se potência industrial e lançou as bases de uma economia mundial sob sua influência. Internamente, essa expansão econômica garantiu uma alta taxa de emprego (amenizando, por certo tempo, o descontentamento popular e diminuindo os movimentos revolucionários) e uma situação mais próspera às classes médias.

Apesar de a maioria da população europeia da época se concentrar no campo, era no mundo urbano, em crescimento constante, que irradiavam novos valores sociais e formas de viver. A razão, a ciência, o progresso e a ética do trabalho tornaram-se bases sólidas dos discursos políticos e as máximas expressões de uma burguesia orgulhosa de seus sucessos. [...]

Esse foi um período de confiança no liberalismo econômico e político. À maior igualdade de direitos e oportunidades e ao governo representativo somavam-se a busca do lucro e a defesa da livre iniciativa competitiva e de sua metáfora da guerra: a luta pela existência e sobrevivência dos melhores. [...]

[...]

Como ponto mais visível, o desenvolvimento técnico e científico tornava-se a expressão simbólica e material de toda essa força econômica europeia. [...] A máquina e a produção em massa proporcionavam a vulgarização dos produtos industriais, tornando-se acessíveis a um conjunto maior da população. [...] Às locomotivas e navios a vapor juntavam-se a fotografia, o telefone, a bicicleta e, no final do século, os automóveis, o gramofone e a lâmpada elétrica. Inaugurando a era da propaganda industrial e, ao mesmo tempo, celebrando os progressos técnico e científico, a partir de 1851, grandes exposições universais de novidades industriais passaram a acontecer em diversas cidades, como Londres, Viena, Paris e Filadélfia.

Enfim, aos olhos de boa parte da sociedade, o progresso não era uma evidência apenas pela sua produção técnica. A maior produtividade no campo trouxe a melhoria da nutrição e as pesquisas científicas propiciaram avanços também no campo da saúde. Com elas, vieram o declínio da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida para muitos europeus.

No final do século, os progressos técnicos e uma relativa paz e estabilidade social marcaram uma época que ficou conhecida como Belle Époque, em que o otimismo e o luxo refletiam uma burguesia confiante em si mesma e no seu futuro.

O novo mundo burguês veio acompanhado por uma separação mais profunda entre o público e o privado. O mundo privado e a subjetividade foram consolidados por uma avalanche de diários, biografias e confissões e pelo novo "sonho de consumo" do século XIX: a possibilidade de se ter um quarto próprio. Os avanços da higiene e da medicalização da família influenciaram na distinção entre o dentro e o fora de casa e na consolidação da ideia de mundo privado do "lar, doce lar".

A moradia passou a ter um peso importante tanto como confinamento residencial e apresentação pública do status quanto como fundamento material do ideal de família. Ter uma casa com jardins, rodeada de verde e afastada do centro da cidade, tornou-se um ideal para a burguesia europeia ascendente. Internamente, os objetos e a decoração demonstravam e possibilitavam a aspiração a um lar harmonioso, cercado por símbolos de status e sucesso. Enfeites, tecidos, cortinas, almofadas, papéis de parede e, para os mais abastados, um piano e uma pequena biblioteca compunham um ambiente acolhedor. Esses objetos, somados aos novos costumes de higiene (sabonete, latrina e banheira), propiciaram algum conforto aos burgueses, segundo Eric Hobsbawn, somente no final do século.

Essa sociabilidade mais íntima dos espaços domésticos veio acompanhada por um discurso que revalorizava a família como unidade social básica. Nos discursos do século XIX, a família nuclear, que  emergia de sistemas de parentesco mais amplos, era fortalecida em sua dignidade e seu poder. Era dela que dependiam a transmissão de todo um patrimônio material e simbólico de reputação e, ao mesmo tempo, o funcionamento de toda a sociedade, pois o lar era a representação do acolhedor lugar da felicidade e da paz, em oposição à competição constante do mundo externo.

Como chave da felicidade universal e do bem público, a família foi projetada sob uma autocracia patriarcal. [...] O ideal de mulher burguesa passou a preconizar, então, um estilo de vida essencialmente doméstico, em que a feminilidade estava assentada na dependência econômica do marido.

Entretanto, foi no seio dessa mesma sociedade burguesa que os ideais de emancipação das mulheres se desenvolveram. O crescimento do planejamento familiar, com a diminuição do índice de natalidade e o aumento do espaço feminino no mercado de trabalho - em lojas, escritórios e no magistério do ensino primário -, no final do século, criou novas oportunidades para as mulheres da pequena burguesia.

Embora a condição para a maioria das mulheres não tenha mudado intensamente no século XIX, nesse período, assistiu-se aos primeiros passos do desenvolvimento do feminismo sistemático, que lutava especialmente pelos direitos de participação política. [...]

A nova realidade da família proporcionava também um investimento maior - afetivo e, principalmente, econômico e educativo - nos filhos. Com um ensino primário, financiado ou promovido pelo Estado, cada vez mais universalizado, a continuidade da educação formal tornou-se um sinal de distinção para aqueles que tinham condição de adiar a tarefa de ganhar a vida.

De fato, a educação secundária e, depois, a universitária cresceram rapidamente entre a classe média e o grau de instrução somava-se à prática do esporte, às ligações sociais e às propriedades como mais um fator de diferenciação em tempos de direitos iguais perante a lei.

MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010. p. 37-39.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A escrita, uma invenção que separou os homens

O escriba sentado (detalhe)

A escrita apareceu cerca de 3300 a.C. com o registro e o controlo dos bens armazenados que se encontravam no templo da cidade de Uruk.

Escrever é produzir um conjunto de sinais, de figuras, que referenciam objectos e acontecimentos. É um modo de fixar uma palavra ou um acontecimento. Para nós a escrita é indispensável. E os textos antigos são testemunhos insubstituíveis que nos dão informação sobre o passado.

[...]

[A escrita: uma invenção reservada aos instruídos] A escrita constituiu uma novidade extraordinária, um utensílio formidável que alterou a maneira de pensar e de compreender o mundo, para aqueles que tiveram a oportunidade de a utilizar. Transformou as relações entre os homens e as trocas entre os vivos. E também a comunicação entre os vivos e os mortos, graças aos escritos, aos textos transmitidos pelo passado.

Durante alguns milhares de anos, ela foi apenas praticada por uma pequena minoria de gente "instruída", em alguns lugares excepcionais. A grande maioria dos homens e das mulheres viveu fora dessa grande aventura. Os seus sentimentos, as suas alegrias, terrores, sofrimentos e esperanças estão para sempre condenados ao silêncio das tumbas e da terra.

[Os excluídos da história escrita] A partir do momento em que a escrita foi inventada, uma nova diferença apareceu entre os homens. Houve aqueles de quem a história reteve o nome e no-lo transmitiu, personagens poderosas, artistas, escritores... E houve milhões de outros dos quais jamais conheceremos os nomes. São os anónimos, os "nunca mencionados". Estes fazem parte da História, mas a história escrita ignorou-os durante muito tempo. Historiadores, hoje em dia, buscam meios de recuperar os vestígios desses excluídos.

[Os sinais antigos da escrita: os pictogramas] Nos primeiros tempos, a escrita consistia em milhares de sinais sem relação com a língua falada. Os pictogramas são os desenhos simplificados de um objecto, de um ser vivo ou de uma acção. Os ideogramas representam ideias. Ainda são usados hoje na China e no Japão. Os do Egipto chamavam-se "hieroglifos". Havia assim especialistas da escrita, os escribas. Eram funcionários dedicados aos sacerdotes e ao rei e encarregavam-se da contabilidade. Também relatavam os grandes feitos dos reis, os seus combates e as suas vitórias. Estavam, desse modo, do lado dos privilegiados que dominavam os camponeses, os artesãos e os escravos.

[O alfabeto e os novos sinais: as letras] Progressiva e lentamente, a escrita, inventada no Médio Oriente, transformou-se: os sinais serviram para representar não os objectos mas os sons. A lista destes novos sinais, as letras, é o alfabeto.

Cerca de - 1380, os cananeus, baptizados "fenícios" pelos gregos, tinham criado pontos na costa do Mediterrâneo oriental. Como eram grandes mercadores e navegadores, procuraram uma escrita mais simples. O alfabeto fenício foi adoptado, com algumas modificações, pelos hebreus, pelos gregos, pelos etruscos em Itália e pelos árabes. Há quem pense que foi o alfabeto etrusco que inspirou o alfabeto latino cujas letras são ainda as nossas. Outros pensam que o alfabeto latino deriva diretamente do alfabeto grego.

Trata-se de uma simplificação formidável, porque os sons das línguas humanas são limitados pela forma da nossa língua e das nossas cordas vocais. O número de letras pôde assim ser reduzido para menos de uma trintena.

[Os primeiros especialistas da escrita: os escribas] Na Mesopotâmia, no Egipto ou na China, os escribas estavam ao serviço dos reis e do Estado. Depois da invenção do alfabeto, os "letrados", os que conheciam as letras, tornaram-se um pouco mais numerosos. Mas ignoravam e desprezavam, em geral, os "iletrados", camponeses, artesãos e escravos que os rodeavam. Eles não os viam como homens e mulheres semelhantes a si mesmos, mas como animais estranhos ou como objectos. Se falavam deles nos seus escritos, era sem verdadeiramente os compreenderem, sem nunca se tentarem pôr no lugar destes.

[Os iletrados: contadores de histórias e portadores de memórias] Deste modo a escrita agravou a divisão existente entre aqueles que tinham o privilégio de ler e de escrever, e todos os outros.

Não esqueçamos, no entanto, que os inventores da agricultura, da criação de gado e da cerâmica eram "iletrados"! Durante milhares de anos, e ainda hoje, camponeses e artesãos transmitiram oralmente através da palavra, as suas tradições e experiências. Entre os inumeráveis grupos humanos que permaneceram e ainda hoje permanecem fora da escrita, certas personagens têm uma memória notável. Os contadores de histórias falam dos seus antepassados e as suas narrativas e lendas são uma outra maneira de reencontrar o passado. Pelos gestos e pela boca dos que falam, o passado permanece vivo e transmite-se de geração em geração.

CITRON, Suzanne. A História dos Homens. Lisboa: Terramar, 1999. p. 45-50.