"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 10 de junho de 2012

Quase um único mundo

A história recente da raça humana é como um maravilhoso renascimento. Quase todas as partes do corpo ganharam um substituto.

Há dois mil anos atrás, as pernas humanas eram indispensáveis. Não havia substituto, exceto um cavalo ou um navio veleiro. Em todos os lugares, as pernas conduziam as pessoas quando trabalhavam e quando passeavam. As pessoas ficavam em pé durante a maior parte do tempo em que permaneciam acordadas, exceto uma pequena parcela daquelas que executavam serviços sentadas, como por exemplo, os agiotas e os estudiosos, que talvez pudessem se sentar enquanto trabalhavam; o resto ficava em pé, fosse semeando ou trabalhando na colheita, para serem sacerdotes, soldados ou para cozinhar. Até mesmo o hábito da escrita era geralmente executado ficando-se em pé, perante uma carteira mais alta. Hoje, porém, as aeronaves, os trens, os carros, as motocicletas e os ônibus tornaram-se os substitutos das pernas.

Da mesma forma, há 2000 anos atrás, os braços e os seus músculos eram essenciais na maioria das tarefas. No mar, o vento ajudava, mas os braços eram necessários para içar as pesadas velas ou para remar o navio em águas paradas. A força dos bois era fundamental na aragem, mas a força dos braços humanos era necessária para guiar o arado. Os músculos do braço e os dedos eram fundamentais para produzir alimentos, abrigo e segurança.

Foi então que surgiu uma corrente de mudanças drásticas, com o braço e a mão humanos sendo auxiliados ou substituídos pela roda hidráulica e a máquina a vapor, pelo carrinho de mão, pela pólvora e a dinamite, pelo guindaste hidráulico, pelo quebrador de concreto, pela máquina de terraplanagem, pela máquina de rebitagem, pela máquina de lavar roupas e o aspirador de pó, pela máquina de costura, escavadeiras, máquinas de sondagem, teclados de computadores e inúmeros outros substitutos. O braço e os dedos humanos foram transformados ainda mais que as pernas. Os dedos, por exemplo, podem enviar mísseis nucleares de um continente a outro.

A cabeça humana também sofreu mudanças inimagináveis. A visão foi realçada pelo telescópio, pelo microscópio, pela televisão, pelo radar, pelos óculos e pela imprensa. Os ouvidos escutam mais, fala-se com mais clareza e a voz viaja chegando longe através do rádio, do microfone, do telefone e das fitas de música. A criatividade do cérebro humano foi auxiliada e refletida pelo computador. As atividades sexuais foram alteradas pela pílula. A eficácia dos dentes foi prolongada não só pela odontologia e pelo dente artificial, mas pelas mudanças na dieta e no processamento dos alimentos. O conhecimento do corpo humano foi ampliado ainda mais pelo estudo dos genes.

Da mesma forma, a memória dos seres humanos, especialmente a memória coletiva, foi ampliada pelas bibliotecas e pelos arquivos. Curiosamente, essa ampliação da memória humana já era significativa bem antes da ascensão do Império Romano, graças à inovação da contagem, à invenção do calendário, ao surgimento da arte da escrita e a uma forma criativa de retenção da memória, a capacidade da rima. Em contraposição, a maior parte dos surpreendentes ganhos na eficiência das pernas, braços, boca, dentes, olhos, ouvidos, memória e o diagnóstico de doenças humanas vieram após o século XV.

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Nenhuma dessas profundas mudanças alterou a vontade humana, a inquietação humana, o desejo humano de liberdade e de conformidade. Tantos triunfos da ciência e da tecnologia foram superficiais. Era mais fácil, nessa era de produção em massa, no interior e na cidade, satisfazer ao estômago do que à mente. Era mais fácil dominar as doenças do que dominar o comportamento humano e colocar um fim aos conflitos de guerra.

Os avanços na tecnologia aumentaram o poder dos líderes ou grupos específicos. Há dez mil anos atrás, o líder de uma tribo era raramente capaz de exercer influência a mais de 100 quilômetros de casa. O mundo era como um lago, com espaço para milhares de pequenas ondulações em sua superfície, cada uma refletindo a minúscula esfera de influência de uma tribo. O raio das ondulações tornava-se maior após o surgimento de impérios maiores, da China, da Índia, da Grécia, de Roma e dos Astecas.

A esfera de influência de cada um desses impérios ainda era pequena. A tecnologia predominante da guerra e do transporte era tão grande que praticamente não havia outra forma de alcançar o controle central da disseminação de uma população civil por todos os cantos. Há dois mil anos atrás, nenhum império podia se estender a tão longe assim. Roma, em seu auge, poderia ter conquistado e governado partes da Índia e, até a China, mas seu reino teria sido breve. Hitler, se tivesse saído vitorioso, provavelmente não teria conseguido controlar o mundo inteiro: a tecnologia da guerra, das comunicações e da censura não o permitiriam.

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BLAINEY, Geoffrey. Breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 264-265.

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