"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A escrita, uma invenção que separou os homens

O escriba sentado (detalhe)

A escrita apareceu cerca de 3300 a.C. com o registro e o controlo dos bens armazenados que se encontravam no templo da cidade de Uruk.

Escrever é produzir um conjunto de sinais, de figuras, que referenciam objectos e acontecimentos. É um modo de fixar uma palavra ou um acontecimento. Para nós a escrita é indispensável. E os textos antigos são testemunhos insubstituíveis que nos dão informação sobre o passado.

[...]

[A escrita: uma invenção reservada aos instruídos] A escrita constituiu uma novidade extraordinária, um utensílio formidável que alterou a maneira de pensar e de compreender o mundo, para aqueles que tiveram a oportunidade de a utilizar. Transformou as relações entre os homens e as trocas entre os vivos. E também a comunicação entre os vivos e os mortos, graças aos escritos, aos textos transmitidos pelo passado.

Durante alguns milhares de anos, ela foi apenas praticada por uma pequena minoria de gente "instruída", em alguns lugares excepcionais. A grande maioria dos homens e das mulheres viveu fora dessa grande aventura. Os seus sentimentos, as suas alegrias, terrores, sofrimentos e esperanças estão para sempre condenados ao silêncio das tumbas e da terra.

[Os excluídos da história escrita] A partir do momento em que a escrita foi inventada, uma nova diferença apareceu entre os homens. Houve aqueles de quem a história reteve o nome e no-lo transmitiu, personagens poderosas, artistas, escritores... E houve milhões de outros dos quais jamais conheceremos os nomes. São os anónimos, os "nunca mencionados". Estes fazem parte da História, mas a história escrita ignorou-os durante muito tempo. Historiadores, hoje em dia, buscam meios de recuperar os vestígios desses excluídos.

[Os sinais antigos da escrita: os pictogramas] Nos primeiros tempos, a escrita consistia em milhares de sinais sem relação com a língua falada. Os pictogramas são os desenhos simplificados de um objecto, de um ser vivo ou de uma acção. Os ideogramas representam ideias. Ainda são usados hoje na China e no Japão. Os do Egipto chamavam-se "hieroglifos". Havia assim especialistas da escrita, os escribas. Eram funcionários dedicados aos sacerdotes e ao rei e encarregavam-se da contabilidade. Também relatavam os grandes feitos dos reis, os seus combates e as suas vitórias. Estavam, desse modo, do lado dos privilegiados que dominavam os camponeses, os artesãos e os escravos.

[O alfabeto e os novos sinais: as letras] Progressiva e lentamente, a escrita, inventada no Médio Oriente, transformou-se: os sinais serviram para representar não os objectos mas os sons. A lista destes novos sinais, as letras, é o alfabeto.

Cerca de - 1380, os cananeus, baptizados "fenícios" pelos gregos, tinham criado pontos na costa do Mediterrâneo oriental. Como eram grandes mercadores e navegadores, procuraram uma escrita mais simples. O alfabeto fenício foi adoptado, com algumas modificações, pelos hebreus, pelos gregos, pelos etruscos em Itália e pelos árabes. Há quem pense que foi o alfabeto etrusco que inspirou o alfabeto latino cujas letras são ainda as nossas. Outros pensam que o alfabeto latino deriva diretamente do alfabeto grego.

Trata-se de uma simplificação formidável, porque os sons das línguas humanas são limitados pela forma da nossa língua e das nossas cordas vocais. O número de letras pôde assim ser reduzido para menos de uma trintena.

[Os primeiros especialistas da escrita: os escribas] Na Mesopotâmia, no Egipto ou na China, os escribas estavam ao serviço dos reis e do Estado. Depois da invenção do alfabeto, os "letrados", os que conheciam as letras, tornaram-se um pouco mais numerosos. Mas ignoravam e desprezavam, em geral, os "iletrados", camponeses, artesãos e escravos que os rodeavam. Eles não os viam como homens e mulheres semelhantes a si mesmos, mas como animais estranhos ou como objectos. Se falavam deles nos seus escritos, era sem verdadeiramente os compreenderem, sem nunca se tentarem pôr no lugar destes.

[Os iletrados: contadores de histórias e portadores de memórias] Deste modo a escrita agravou a divisão existente entre aqueles que tinham o privilégio de ler e de escrever, e todos os outros.

Não esqueçamos, no entanto, que os inventores da agricultura, da criação de gado e da cerâmica eram "iletrados"! Durante milhares de anos, e ainda hoje, camponeses e artesãos transmitiram oralmente através da palavra, as suas tradições e experiências. Entre os inumeráveis grupos humanos que permaneceram e ainda hoje permanecem fora da escrita, certas personagens têm uma memória notável. Os contadores de histórias falam dos seus antepassados e as suas narrativas e lendas são uma outra maneira de reencontrar o passado. Pelos gestos e pela boca dos que falam, o passado permanece vivo e transmite-se de geração em geração.

CITRON, Suzanne. A História dos Homens. Lisboa: Terramar, 1999. p. 45-50.

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