"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 17 de junho de 2012

A cidade e as multidões no século XIX

"A instabilidade do mercado de trabalho acentua a extrema exploração do trabalhador e força-o a residir no centro da cidade, próximo aos lugares onde sua busca de emprego ocasional acelera e piora as condições sanitárias das moradias. [...] É na região central da cidade que o problema se manifesta de forma mais aguda; seu excesso populacional transborda, entretanto, para os bairros próximos, até atingir o perímetro industrial ainda interno à área urbana." (BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 37.)

Ilustração de Gustave Doré

A contraposição à pujança e ao otimismo burguês era dada pelos mais impressionantes símbolos exteriores do novo mundo industrial: as cidades e multidões. A intensa migração e a explosão demográfica fizeram das grandes cidades - especialmente Londres e Paris, mas também Berlim, Viena e São Petersburgo, no continente europeu, e Chicago e Melbourne, no além-mar - espaços onde se concretizava o ritmo da transformação industrial. Esses locais tornaram-se a expressão maior da contradição que se desenvolvia, fazendo com que alguns observadores colocassem, de um lado, os "ricos-civilizados" e, de outro, os "pobres-selvagens".

No centro das cidades, milhares de pessoas se deslocavam por um emaranhado de edifícios, percorrendo longos trajetos a pé ou nos recém-criados transportes coletivos. À multidão misturavam-se a nova pequena burguesia dos escritórios e lojas de departamento, funcionários públicos, trabalhadores urbanos e inválidos, pedintes, mendigos profissionais, prostitutas, vendedores de empadas, tocadores de realejo, batedores de carteira, etc. A impressão caótica fazia com que observadores descrevessem essa situação como um espetáculo que causava, ao mesmo tempo, fascínio e terror.


No século XIX, a cidade foi sinônimo também de superpovoamento, insalubridade e proliferação de cortiços. Junto ao centro da cidade, bairros miseráveis tinham péssimas condições de moradia e uma superpopulação marcada pelo desenraizamento - perda de costumes seculares causada pela migração. Nesse amontoado de moradias precárias, com uma só peça e poucos móveis e objetos, a ausência de serviços públicos básicos, como saneamento e abastecimento de água, aumentava ainda mais os riscos decorrentes da poluição do ar e das águas, provocando, por exemplo, o aparecimento de doenças respiratórias e intestinais.

Grande parte dos operários europeus do século XIX viviam em bairros pobres, não muito distantes das fábricas. Moravam em habitações coletivas onde não havia água encanada, utilizando água dos chafarizes públicos, que carregavam em potes. Nessas moradias havia apenas uma latrina coletiva, que ficava na parte externa dos prédios.

Temendo os riscos de revolta em razão da miséria e da grande concentração de pessoas nos bairros operários, os burgueses procuravam solucionar o problema da moradia. Assim, por meio do financiamento de sociedades filantrópicas, patrocinavam a construção de vilas operárias. Essas vilas eram formadas por conjuntos de pequenas casas iguais e geminadas. Porém, muitos operários se recusavam a morar nessas vilas por considerar que elas eram uma forma de os patrões estenderem o controle e a disciplina exercidos na fábrica até o ambiente das casas de seus empregados.

Na maioria das casas operárias, um mesmo cômodo servia como local de refeições e dormitório para toda a família. Tal situação incomodava muito os operários - que procuravam separar seu quarto do das crianças tão logo conseguiam juntar algum dinheiro. (DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 125.)

Contudo, não era à condição das moradias que a maioria das reivindicações operárias se dirigia. Segundo a historiadora Michelle Perrot, os operários preferiam a liberdade de morar no centro e circular livremente pelo espaço público, mesmo tendo de viver em habitações precárias. Em tempos de instabilidade do mercado de trabalho, viver no centro poderia significar mais oportunidades de emprego que nas vilas operárias afastadas, ainda que estas oferecessem condições mais dignas. As principais reclamações nesses cortiços, expressas em manifestações geralmente lideradas pelas mulheres, diziam respeito aos valores dos aluguéis.

Além do trabalho doméstico na manutenção da família, do transporte da água, da alimentação e da criação dos filhos, para complementar a renda familiar, as mulheres das classes populares urbanas dedicavam-se a outros serviços. Lavagem de roupas, pequenos comércios em bancas na rua, vendas de porta em porta e trabalhos ligados à entrega, faxina, cozinha e costura tornavam-nas agentes de uma economia informal, fundamental na manutenção dos lares.

A tudo isso somava-se a administração do orçamento doméstico, que as deixava mais sensíveis ao problema do aumento do aluguel e do custo de vida em geral. Pontos de água coletivos tornavam-se locais de sociabilidade, onde se discutiam diversos assuntos, como o planejamento de manifestações públicas, expressão política decisiva dessas mulheres. Ao contrário do que o ideal burguês pregava, a princípio, o controle da circulação exterior, para elas, foi muito menos rígido.

Menos satisfeitos com a condição das moradias populares estavam os médicos sanitaristas. Escandalizados, esses reformadores sociais denunciavam as precárias condições de higiene e saneamento como prováveis focos de infecções. Algumas destas se alastraram e se tornaram epidemias, como as de febre tifóide e cólera.

Assim, em campanha aberta, defendiam uma intervenção mais drástica contra os cortiços e hábitos populares, que, ao seu ver, geravam outros grandes flagelos sociais, como a tuberculose, o alcoolismo e a sífilis. Grandes avenidas e bulevares foram projetados e executados, assim como outras medidas: o aumento do valor dos aluguéis, o deslocamento de bairros considerados infectos ou, até mesmo, a demolição deles, com o intuito de forçar os pobres a procurar habitação em outros lugares, longe do centro da cidade.

Com o crescente medo da revolução popular, das violentas manifestações de rua e dos ativistas urbanos, principalmente após a dura experiência da Comuna de Paris, as autoridades públicas passaram a ver a boa moradia como uma chave da paz social. Soluções filantrópicas, como a construção de vilas operárias mais bem projetadas, com creches, escolas, abastecimento de água e moradias amplas, foram tentadas nesse sentido.

[...] Nesse momento, houve uma diferenciação entre a classe operária, com emprego formal e alguns direitos garantidos, e uma massa sujeita a situações de pobreza extrema, com emprego casual e superexploração do trabalho.

Durante algum tempo, as multidões continuaram assustando. [...]

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 37.
DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 125.
MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010. p. 40-41.

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