"O espelho quebrou. A história universal morreu, está morta por ter sido a miragem da Europa, que a dimensionou na medida de sua própria mudança. Os outros povos dela só participavam, a título de passageiros, quando a Europa andou por eles; no Egito, por exemplo, antes de nascer, depois sob Roma, no tempo da Cruzada ou de Bonaparte, de Mehmet-Ali ou de Nasser. Verdade para o Egito, verdade também para a Índia, a Armênia e que sei eu: a história deles só era História quando se cruzava com a nossa." (FERRO, Marc. A manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: Ibrasa, 1983. p. 290.)
"A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz".
Ferreira Gullar
A
história popular e plural é uma história vista de baixo, que dá vez e voz a todos os sujeitos
históricos que durante séculos ficaram à margem dos processos históricos. Isso
ocorreu/ocorre porque os historiadores que selecionaram/selecionam os fatos históricos e fizeram/fazem os registros nos anais foram/são homens com visões preconceituosas e estigmatizadas
sobre as mulheres, os índios, os jovens, os ciganos, os favelados, os camponeses e tantos
outros grupos marginalizados.
A
história escrita até as primeiras décadas do século XX era uma história de viés
político, diplomático, das batalhas, dos reis, dos generais... Era uma história quase assexuada, ou melhor, apenas uma certa visão masculina. O cotidiano, as
mentalidades, as sociabilidades, o trabalho não faziam parte do discurso histórico.
Os diversos povos não-europeus eram vistos como selvagens, primitivos, exóticos, de costumes bárbaros, idólatras e antropófagos. A visão que se construiu do mundo
extra-europeu era uma forma de dominar essas regiões riquíssimas em recursos
naturais e minerais, mão-de-obra abundante para trabalhar em regime de trabalho
escravo e/ou servil, potenciais consumidores dos produtos manufaturados
e/ou industrializados produzidos nas metrópoles e, como "missão civilizadora", salvá-los de sua estupidez, cristianizá-los.
Temos,
portanto, uma visão elitizada, verticalizada e
preconceituosa em relação a todos esses sujeitos/povos citados, ou seja, todos aqueles que foram "escalados" para participar da vida social
apenas com o trabalho braçal. Sujeitos/povos banidos da história.
Quem tem medo de uma história popular e plural são as elites, as forças de conservação do status quo, que impedem as forças de transformação - revolucionárias, libertadoras - de chegarem ao poder e as mantêm oprimidas e subjugadas. Destarte, essa população é constituída, na maioria dos países africanos, latino-americanos e asiáticos, de pouco ou nenhum conhecimento crítico de suas identidades histórico-culturais - haja vista a péssima qualidade de Educação oferecida pelas elites aos seus povos - e, dessa forma, são o alvo predileto de políticos corruptos e de lideranças religiosas espúrias que arrebanham um contingente gigantesco de eleitores como massa de manobra para seus projetos de manutenção perpétua do poder.
O
historiador, em seu ofício, tem a árdua tarefa de pesquisar e registrar todas as
experiências vividas coletivamente. Entretanto, ainda há muitos historiadores
vinculados a determinados instituições que detêm o poder em certos Estados
autoritários, escrevendo a história sob o ponto de vista oficial. Cabe ao historiador evitar essa perpetuação.
Ao registrar a história vivida o
historiador deve sempre questionar onde está a história dos que não puderam eles
próprios escrever -como, por exemplo, os quilombolas - e qual a possibilidade
desses sujeitos, registrando suas experiências, poderem modificar sua
atual situação. O historiador deve pesquisar e registrar essas vivências, ou seja, dar voz ao silêncio dos vencidos.
As informações que temos a
respeito dos homossexuais,
por exemplo, são construções realizadas pelas mãos dos detentores do poder de
cada época. Portanto, revelam-nos o pensamento daquele momento, com todos os
seus preconceitos e estigmas.
Em tempos de globalizações precisamos de uma história popular e plural, considerando que a realidade atual está pontuada por uma onda avassaladora de xenofobia, fundamentalismos e exclusão social.
Concluamos com as palavras do historiador britânico Edward H. Carr: "O historiador nada mais é do que um figurante caminhando com dificuldade no meio da procissão. E à medida que a procissão serpenteia, desviando-se ora para a direita e ora para a esquerda, algumas vezes dobrando-se sobre si mesma, as posições relativas das diferentes partes da procissão estão constantemente mudando... Novas perspectivas, novos ângulos de visão constantemente aparecem à medida que a procissão - e o historiador com ela - se desloca. O historiador é parte da História. O ponto da procissão em que ele se encontra determina seu ângulo de visão sobre o passado." CARR, E. H. Que é a História? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
MAURER JUNIOR, Orides. Ecos do
tempo: uma viagem pela história. Joinville: Letradágua, 2015. p. 11-13.
© 2015 by Orides Maurer Jr.
Pois é o que fizeram da História da democracia no Brasil hoje?
ResponderExcluirExato Maria José Speclich.
Excluir