“Nas
favelas, no senado
Sujeira
pra todo lado
Ninguém
respeita a Constituição
Mas
todos acreditam no futuro da nação
Que
país é esse? [...]
Terceiro
mundo, se for
Piada
no exterior
Mas
o Brasil vai ficar rico
Vamos
faturar um milhão
Quando
vendermos todas as almas
Dos
nossos índios num leilão
Que
país é esse?”
(Legião
Urbana, 1978)
A
corrupção, a desigualdade social, o racismo, o fundamentalismo religioso
evangélico, a violência urbana e o conservadorismo político estão presentes
nesse primeiro quartel do século XXI. Como contraponto há a resistência dos
povos indígenas, dos afro-descendentes, as lutas do MST, do movimento LGBTT e
tantos outros que nos mostram que a sociedade brasileira está em efervescência
e luta por uma cidadania que tem sido negada.
Para
responder a questão-título faz-se necessário uma retrospectiva de nossa
trajetória. O historiador Chico Alencar, na excelente obra Br-500: um guia para a redescoberta do Brasil, traça um panorama
das lutas, alegrias, tristezas e esperanças do povo brasileiro:
“Quase
2/3 de nossa História a partir de 1500 foram marcados pelo trabalho escravo
[...]. Fomos a maior sociedade escravista dos tempos modernos – quatro
milhões de africanos trazidos à força para cá – e somos o maior país negro
fora da África.
[...]
Cantamos
nossa luminosa negritude apesar da dominação cultural do hemisfério norte.
Celebramos nossa africanidade a despeito da imposição que transformou os
afro-brasileiros em “peças de ébano”, “fôlegos vivos”, “pés e mãos dos
senhores de engenho”, seres só reconhecidos como gente quando infringiam a
lei dos brancos... para serem punidos no tronco, com gargalheiras, mordaças,
chibatas. [...] Isso não é bonito nem suave, mas é cantável e dançável,
inclusive como quilombo e capoeira, protesto e libertação. A resistência ao
autoritarismo também pode ter poesia e lirismo.
Cantos
de trabalho: versejou-se a lida pesada, de sol a sol, dos cabras do eito, nos
canaviais: “tem açúcar na mão / tem açúcar no pé / só não tem no seu café”.
[...]
[...]
[...]
do golpe de 1964 até a eleição indireta de um presidente civil [...] houve
perseguição política, censura, tortura e ditadura. [...] houve também uma
belíssima resistência cívica e cultural. Não só da estudantada nas ruas
contra o regime neofascista tupiniquim, mas a de artistas, como os jovens
Nara Leão [...]. Milton Nascimento, Elis Regina, Geraldo Vandré, Paulinho da
Viola [...], Chico Buarque, Rita Lee e os Mutantes, Caetano Veloso [...] e
tantos outros, nos festivais de música.
Do
lado de fora das casas de espetáculos, a pesada mão do regime aumentava a
perseguição [...]. Sumidos assim como Tito de Alencar, Rubens Paiva, Herzog,
Sônia Angel, Stuart, brasileiros de mil origens e um sonho comum de justiça e
democracia.
[...]
Há
muito o que se contar, na ética dos que deram a vida pela liberdade e pelo
socialismo, armas guerrilheiras na mão contra o tanque e o canhão – Lamarca,
Mariguella, Caparaó, Araguaia, ações urbanas e rurais repletas de coragem,
incertezas e utopia. [...]
Há
plasticidade e brasilidade também na [...] irreverente insolência dos
jornalistas na imprensa chamada “nanica”, na arte de vanguarda de um [...]
Hélio Oiticica. [...] e na inventiva do cinema novo de Glauber Rocha, Cacá
Diegues, Nelson Pereira dos Santos [...].
Aquele
Brasil não era só trevas: havia luz nas conferências de religiosos, colocando
afinal suas igrejas em defesa dos humilhados, nas greves operárias de
Contagem e Osasco, e na luta camponesa retomada, apesar do latifúndio ter
listado tantos “cabras marcados para morrer” [...] Continuidades de opressão
e resistência, de plantio e queimadas...
[...]
Na
nossa história [...] há muito o que cantar e contar [...]. É preciso que não
sejam “esquecidos” [...] as comunidades nativas do período pré-cabralino até
hoje, celebrado por Martinho da Vila no índio que “cantou o seu canto de
guerra, não se escravizou mais está sumindo da face da terra”. Pindorama
[...].
Que
desfile animado o Brasil negro, mestiço, que Caetano Veloso traduziu melhor
quando afirmou [...] que “quem descobriu o Brasil foi o negro que viu a
crueldade bem de frente e ainda assim produziu milagres de fé no
extremo-ocidente”. Brasil negro originário de muitas paragens [...]. Brasil
da escravidão que, apesar de proibida por lei, ainda perdura em umas tantas fazendas,
com trabalhadores pobres, migrantes [...].
Brasil
quilombola, na fuga para a vida digna de ser vivida. Brasil Zumbi [...].
Brasil do preto Cosme, das liberdades bentevis [...], Chica da Silva [...].
Guerreiros
moçambicanos e minas. Crioulos: afro-brasileiros. [...] Brasil que caiu na
capoeira [...].
E
o Brasil da saga violenta e ambiciosa dos bandeirantes, “vergando a vertical
de Tordesilhas”, na “sede do ouro sem cura” versejada por Cecília Meireles. E
o Brasil das casas-grandes e senzalas, dos sobrados e mocambos, do
patriarcalismo autoritário e da etnia forte sertaneja e cabocla, rebelde e
resignada, de Gilberto Freyre e Euclides da Cunha.
[...]
E da Independência que não foi, pois que, após o grito do Ipiranga, continuou
o gritante escândalo da escravidão [...], do latifúndio, da monocultura e da
dependência externa.
[...]
E do generoso e ousado Abolicionismo, com suas lutas no campo e nas cidades
que iam minando o regime servil. Do outro lado, nos salões do baronato,
“macaqueando a sintaxe lusíada”, no dizer de Manuel Bandeira, o longo império
do “rei café”. [...]
Vão
passar, com energia, os movimentos populares de afirmação da nossa dignidade,
contra os podres poderes [...]. “Glória a todas as lutas inglórias”.
Que
desfile também o Brasil romântico das Iracemas, Guaranis, Ubirajaras [...],
Navios Negreiros, Espumas Flutuantes, e o Brasil de Machado de Assis [...].
E
o Brasil iletrado dos messianismos [...], onde “maiores são os poderes do
povo” [...]. Brasil em que o Reino dos Céus é ali nos sulinos pampas dos
Muckers ou nas terras nordestinas, e no direito a um pé de chão, que não pode
ser “para as gentes das Oropa”, como pregaram [...] beatos, conselheiros,
místicos. Como gritou, na sede de vingança e justiça com as próprias mãos, a
espingarda do cangaço violento, acoitado nas veredas do grande sertão, com
muita poeira e um ou outro baile perfumado [...].
E
o Brasil da República sem povo, que a assistiu chegar “bestializado”, e da
industrialização retardatária, onde coronéis donos de gado e gente viravam
capitães de fábricas emergentes. O Brasil da revolta contra as chibatas
(“salve o almirante negro!”), dos anarco-sindicalistas, dos tenentes que se
rebelam e dos artistas modernistas que se revelam (“tupi or not tupi, that’s
the question!”). Pátria-macunaíma que procura seu destino [...].
[...]
Brasil
“antropófago”, que devora todas as influências externas mas produz uma
cultura muito sua, muito singular e nossa [...].
Cante-se
o Brasil da Era Vargas, que legou Estado e teceu Nação. [...] Foi então que o
samba começou a ser disciplinado [...]; o Brasil-raiz brotando na pena de
[...] Graciliano Ramos, Lins do Rego, [...] Guimarães Rosa, [...] e muito
mais, universalizando os regionalismos.
Cante-se,
num lamento, um novo cheio de antigas sofrências: brasileira cicatriz do
desengano, da apartação, do elo perdido. A continuidade do povo negro exilado
e do povo índio dizimado, com famílias destroçadas, na agonia da jovem alemã
Olga Benário [...] que escolheu o Brasil para sua militância comunista sem
fronteiras.
Entregue
aos nazistas para o moderno calvário, Olga despediu-se do seu querido
companheiro Luis Carlos Prestes [...] testemunhando na última carta, às
vésperas da câmara de gás [...] a dor maior, síntese de seculares e impostas
perdas e terríveis separações [...].
Brasil,
pátria partida, escolhida de muitos, que não se rende. [...] Brasil
marmiteiro e candango, dos trabalhadores que produziram bens de consumo,
estradas e cidades aos quais teriam pouco acesso, por onde pouco circulariam,
na periferia das quais morariam. O Brasil dos “anos dourados”,
nacional-populista [...].
[...]
[...]
cada um reinventando o país de um belo ponto de vista: Cipriano Barata e
Anita Garibaldi, [...] Leila Diniz [...], Vinícius de Moraes [...] que,
parceiro de Jobim, deu o tom brasileiro [...], tão timbrado, na busca
angustiada e feliz, pela voz de Elis. Brasil de Clarice Lispector, Cecília
Meireles [...], Clara Nunes. Brasil-Henfil: “amar os amigos, desarmar os
inimigos!”. [...] O direito de Sobral Pinto, a nativíssima aquarela de Ari
Barroso. Carmem Miranda com seus balangandãs no país distante, e Raul Seixas,
metamorfose ambulante. [...] Lima Barreto, Noel Rosa, Chiquinha Gonzaga, Pagú
[...], Garrincha [...], Pixinguinha. [...] No riso, o belo: Oscarito [...],
Mazaropi, Grande Otelo. [...]
Nestas
pessoas [...] está a face viva, feminina, masculina, pessoal e plural do
Brasil. [...]
[...]
uma nação permanentemente em construção, como versejou o poeta indomável
Paulo Leminsky [...]: “distraídos venceremos”. A imprevisível marcha de um
povo que [...] vai aprendendo a ler e escrever sua realidade, solidariamente,
como ensinou mestre Paulo Freire: “ninguém se liberta sozinho, ninguém
liberta ninguém: as pessoas se libertam em comunhão”.
[...]
[...]
Não um descobridor, mas muitas mulheres e homens que, com engenho e arte,
recriaram e reinventam nossa civilização. [...] Marias loucas, Pedros
descobridores ou imperadores, e, sobretudo, Marias marias com sua “estranha
mania de ter fé na vida” e Pedros pedreiros, colocando, discretos, os
alicerces de nossa sociedade. Sem luxo mas com a fantasia da utopia de uma
nação justa e fraterna.
[...]
Brasil da cidadania dura e parcialmente conquistada, a preço de sangue e
lágrimas. Saga de uma gente ferida e alegre, excluída [...]”. ALENCAR, Chico. Br-500: um guia para a redescoberta do
Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 155-175. (Coleção 500 anos de Brasil)
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© 2015 by Orides Maurer Jr.
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