"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

Que país é esse?


“Nas favelas, no senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse? [...]
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão
Que país é esse?”
(Legião Urbana, 1978)


A corrupção, a desigualdade social, o racismo, o fundamentalismo religioso evangélico, a violência urbana e o conservadorismo político estão presentes nesse primeiro quartel do século XXI. Como contraponto há a resistência dos povos indígenas, dos afro-descendentes, as lutas do MST, do movimento LGBTT e tantos outros que nos mostram que a sociedade brasileira está em efervescência e luta por uma cidadania que tem sido negada.

Para responder a questão-título faz-se necessário uma retrospectiva de nossa trajetória. O historiador Chico Alencar, na excelente obra Br-500: um guia para a redescoberta do Brasil, traça um panorama das lutas, alegrias, tristezas e esperanças do povo brasileiro:



“Quase 2/3 de nossa História a partir de 1500 foram marcados pelo trabalho escravo [...]. Fomos a maior sociedade escravista dos tempos modernos – quatro milhões de africanos trazidos à força para cá – e somos o maior país negro fora da África.

[...]

Cantamos nossa luminosa negritude apesar da dominação cultural do hemisfério norte. Celebramos nossa africanidade a despeito da imposição que transformou os afro-brasileiros em “peças de ébano”, “fôlegos vivos”, “pés e mãos dos senhores de engenho”, seres só reconhecidos como gente quando infringiam a lei dos brancos... para serem punidos no tronco, com gargalheiras, mordaças, chibatas. [...] Isso não é bonito nem suave, mas é cantável e dançável, inclusive como quilombo e capoeira, protesto e libertação. A resistência ao autoritarismo também pode ter poesia e lirismo.

Cantos de trabalho: versejou-se a lida pesada, de sol a sol, dos cabras do eito, nos canaviais: “tem açúcar na mão / tem açúcar no pé / só não tem no seu café”. [...]

[...]

[...] do golpe de 1964 até a eleição indireta de um presidente civil [...] houve perseguição política, censura, tortura e ditadura. [...] houve também uma belíssima resistência cívica e cultural. Não só da estudantada nas ruas contra o regime neofascista tupiniquim, mas a de artistas, como os jovens Nara Leão [...]. Milton Nascimento, Elis Regina, Geraldo Vandré, Paulinho da Viola [...], Chico Buarque, Rita Lee e os Mutantes, Caetano Veloso [...] e tantos outros, nos festivais de música.

Do lado de fora das casas de espetáculos, a pesada mão do regime aumentava a perseguição [...]. Sumidos assim como Tito de Alencar, Rubens Paiva, Herzog, Sônia Angel, Stuart, brasileiros de mil origens e um sonho comum de justiça e democracia.

[...]

Há muito o que se contar, na ética dos que deram a vida pela liberdade e pelo socialismo, armas guerrilheiras na mão contra o tanque e o canhão – Lamarca, Mariguella, Caparaó, Araguaia, ações urbanas e rurais repletas de coragem, incertezas e utopia. [...]

Há plasticidade e brasilidade também na [...] irreverente insolência dos jornalistas na imprensa chamada “nanica”, na arte de vanguarda de um [...] Hélio Oiticica. [...] e na inventiva do cinema novo de Glauber Rocha, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos [...].

Aquele Brasil não era só trevas: havia luz nas conferências de religiosos, colocando afinal suas igrejas em defesa dos humilhados, nas greves operárias de Contagem e Osasco, e na luta camponesa retomada, apesar do latifúndio ter listado tantos “cabras marcados para morrer” [...] Continuidades de opressão e resistência, de plantio e queimadas...

[...]

Na nossa história [...] há muito o que cantar e contar [...]. É preciso que não sejam “esquecidos” [...] as comunidades nativas do período pré-cabralino até hoje, celebrado por Martinho da Vila no índio que “cantou o seu canto de guerra, não se escravizou mais está sumindo da face da terra”. Pindorama [...].

Que desfile animado o Brasil negro, mestiço, que Caetano Veloso traduziu melhor quando afirmou [...] que “quem descobriu o Brasil foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda assim produziu milagres de fé no extremo-ocidente”. Brasil negro originário de muitas paragens [...]. Brasil da escravidão que, apesar de proibida por lei, ainda perdura em umas tantas fazendas, com trabalhadores pobres, migrantes [...].

Brasil quilombola, na fuga para a vida digna de ser vivida. Brasil Zumbi [...]. Brasil do preto Cosme, das liberdades bentevis [...], Chica da Silva [...].

Guerreiros moçambicanos e minas. Crioulos: afro-brasileiros. [...] Brasil que caiu na capoeira [...].

E o Brasil da saga violenta e ambiciosa dos bandeirantes, “vergando a vertical de Tordesilhas”, na “sede do ouro sem cura” versejada por Cecília Meireles. E o Brasil das casas-grandes e senzalas, dos sobrados e mocambos, do patriarcalismo autoritário e da etnia forte sertaneja e cabocla, rebelde e resignada, de Gilberto Freyre e Euclides da Cunha.

[...] E da Independência que não foi, pois que, após o grito do Ipiranga, continuou o gritante escândalo da escravidão [...], do latifúndio, da monocultura e da dependência externa.

[...] E do generoso e ousado Abolicionismo, com suas lutas no campo e nas cidades que iam minando o regime servil. Do outro lado, nos salões do baronato, “macaqueando a sintaxe lusíada”, no dizer de Manuel Bandeira, o longo império do “rei café”. [...]

Vão passar, com energia, os movimentos populares de afirmação da nossa dignidade, contra os podres poderes [...]. “Glória a todas as lutas inglórias”.

Que desfile também o Brasil romântico das Iracemas, Guaranis, Ubirajaras [...], Navios Negreiros, Espumas Flutuantes, e o Brasil de Machado de Assis [...].

E o Brasil iletrado dos messianismos [...], onde “maiores são os poderes do povo” [...]. Brasil em que o Reino dos Céus é ali nos sulinos pampas dos Muckers ou nas terras nordestinas, e no direito a um pé de chão, que não pode ser “para as gentes das Oropa”, como pregaram [...] beatos, conselheiros, místicos. Como gritou, na sede de vingança e justiça com as próprias mãos, a espingarda do cangaço violento, acoitado nas veredas do grande sertão, com muita poeira e um ou outro baile perfumado [...].

E o Brasil da República sem povo, que a assistiu chegar “bestializado”, e da industrialização retardatária, onde coronéis donos de gado e gente viravam capitães de fábricas emergentes. O Brasil da revolta contra as chibatas (“salve o almirante negro!”), dos anarco-sindicalistas, dos tenentes que se rebelam e dos artistas modernistas que se revelam (“tupi or not tupi, that’s the question!”). Pátria-macunaíma que procura seu destino [...].

[...]

Brasil “antropófago”, que devora todas as influências externas mas produz uma cultura muito sua, muito singular e nossa [...].

Cante-se o Brasil da Era Vargas, que legou Estado e teceu Nação. [...] Foi então que o samba começou a ser disciplinado [...]; o Brasil-raiz brotando na pena de [...] Graciliano Ramos, Lins do Rego, [...] Guimarães Rosa, [...] e muito mais, universalizando os regionalismos.

Cante-se, num lamento, um novo cheio de antigas sofrências: brasileira cicatriz do desengano, da apartação, do elo perdido. A continuidade do povo negro exilado e do povo índio dizimado, com famílias destroçadas, na agonia da jovem alemã Olga Benário [...] que escolheu o Brasil para sua militância comunista sem fronteiras.

Entregue aos nazistas para o moderno calvário, Olga despediu-se do seu querido companheiro Luis Carlos Prestes [...] testemunhando na última carta, às vésperas da câmara de gás [...] a dor maior, síntese de seculares e impostas perdas e terríveis separações [...].

Brasil, pátria partida, escolhida de muitos, que não se rende. [...] Brasil marmiteiro e candango, dos trabalhadores que produziram bens de consumo, estradas e cidades aos quais teriam pouco acesso, por onde pouco circulariam, na periferia das quais morariam. O Brasil dos “anos dourados”, nacional-populista [...].

[...]

[...] cada um reinventando o país de um belo ponto de vista: Cipriano Barata e Anita Garibaldi, [...] Leila Diniz [...], Vinícius de Moraes [...] que, parceiro de Jobim, deu o tom brasileiro [...], tão timbrado, na busca angustiada e feliz, pela voz de Elis. Brasil de Clarice Lispector, Cecília Meireles [...], Clara Nunes. Brasil-Henfil: “amar os amigos, desarmar os inimigos!”. [...] O direito de Sobral Pinto, a nativíssima aquarela de Ari Barroso. Carmem Miranda com seus balangandãs no país distante, e Raul Seixas, metamorfose ambulante. [...] Lima Barreto, Noel Rosa, Chiquinha Gonzaga, Pagú [...], Garrincha [...], Pixinguinha. [...] No riso, o belo: Oscarito [...], Mazaropi, Grande Otelo. [...]

Nestas pessoas [...] está a face viva, feminina, masculina, pessoal e plural do Brasil. [...]

[...] uma nação permanentemente em construção, como versejou o poeta indomável Paulo Leminsky [...]: “distraídos venceremos”. A imprevisível marcha de um povo que [...] vai aprendendo a ler e escrever sua realidade, solidariamente, como ensinou mestre Paulo Freire: “ninguém se liberta sozinho, ninguém liberta ninguém: as pessoas se libertam em comunhão”.

[...]

[...] Não um descobridor, mas muitas mulheres e homens que, com engenho e arte, recriaram e reinventam nossa civilização. [...] Marias loucas, Pedros descobridores ou imperadores, e, sobretudo, Marias marias com sua “estranha mania de ter fé na vida” e Pedros pedreiros, colocando, discretos, os alicerces de nossa sociedade. Sem luxo mas com a fantasia da utopia de uma nação justa e fraterna.

[...] Brasil da cidadania dura e parcialmente conquistada, a preço de sangue e lágrimas. Saga de uma gente ferida e alegre, excluída [...]”. ALENCAR, Chico. Br-500: um guia para a redescoberta do Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 155-175. (Coleção 500 anos de Brasil)

© 2015 by Orides Maurer Jr.

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