"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos
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domingo, 5 de junho de 2016

Dos descobrimentos à colonização - Parte 5

[As sociedades coloniais americanas]


Escravos trabalhando numa plantação de tabaco na Virgínia, 
ca. 1670, Artista desconhecido



Em busca de novas terras e riquezas, homens brancos, armados de arcabuzes e mosquetes, lançaram-se ao mar em grandes embarcações de madeira, com velas feitas para navegar com qualquer vento e chegaram às costas da América, pouco tempo depois da histórica viagem de Cristóvão Colombo. Eram os espanhóis, que iniciavam, no final do século XV, a Conquista e a Colonização do Novo Mundo. Imagine-se um deles, fazendo parte da tripulação desses navios, vestido em reluzente armadura e montado a cavalo, desembarcando nas ilhas antilhanas, no México ou no Panamá. Sendo um desses aventureiros, sua sede de conquista não teria limites, e então você avançaria até os altiplanos do Peru e da Bolívia, ou penetraria a foz do Nhamundá, em plena Floresta Amazônica, lutando contra lendárias mulheres guerreiras! Em busca do fabuloso Eldorado, atingiria a encantada lagoa de Guatavitá, na Colômbia, ou procuraria em vão a Fonte da Juventude, na Flórida. Talvez descesse ao extremo meridional do continente, atraído pelas riquezas que diziam existir no Rio da Prata.

Poucos povos têm uma história tão fantástica quando a do Novo Mundo. Aqui desenvolveram-se sociedades indígenas que rivalizavam com as antigas civilizações do Egito, da Índia e da China: os astecas, os incas e os maias. Como aconteceu com os conquistadores espanhóis, você certamente se surpreenderia com o elevado grau de cultura desses povos, e provavelmente também se horrorizaria com os seus costumes e sacrifícios religiosos, considerados bárbaros pelos europeus, que, no entanto, não hesitavam em cometer as maiores atrocidades.

Os conquistadores estavam sequiosos de puro e de outras riquezas metálicas, atendendo às suas ambições pessoais e aos interesses da política mercantilista da Coroa espanhola. Revolveram as montanhas do México, do Peru e da Bolívia em busca dos metais preciosos, e encontraram muito ouro e prata. Arrasaram as antigas cidades, templos e monumentos e, em seu lugar, ergueram novas cidades, nos moldes europeus.

Cumpria-se a antiga profecia indígena:

"Um dia virão homens brancos do Leste, com barbas compridas e trarão desgraça."

Com a destruição física e cultural das sociedades indígenas, teve início a Colonização espanhola, que se estenderia por mais de três séculos. A América Espanhola atraía cada vez mais aventureiros, sobretudo por causa das minas de ouro e prata. Não tardou que a mão-de-obra indígena empregada no trabalho minerador e na agricultura fosse reduzida a um regime de servidão coletiva.

O controle da metrópole espanhola era rígido, utilizando o sistema das frotas anuais e dos portos exclusivos. Apesar disso, o contrabando era prática regular, assim como eram frequentes os ataques de piratas e corsários, entre eles o famoso Francis Drake, aos galeões espanhóis carregados de metais preciosos.

Um século depois de descobertas, as minas já apresentavam sinais de esgotamento. Nas áreas onde não havia metais preciosos, organizaram-se grandes plantações de produtos tropicais - cana-de-açúcar, tabaco - com mão-de-obra escrava constituída por negros africanos. O tráfico negreiro foi uma atividade muito lucrativa para os comerciantes europeus, apesar de quase metade dos negros embarcados morrer durante a viagem, devido às péssimas condições de travessia oceânica. Mesmo assim, os que aqui chegavam eram vendidos por preços tão altos que compensavam as perdas sofridas.

Vamos usar novamente a imaginação? Tente agora ver-se como um austero puritano (adepto do Calvinismo), nascido na Inglaterra do século XVII e perseguido pela intolerância religiosa dos Reis da dinastia Stuart. Você, provavelmente, seria um dos Pilgrim Fathers (Pais Peregrinos), fundadores de Plymouth, uma das primeiras colônias inglesas da América do Norte.

Já pensou como teria sido a acidentada viagem ao Novo Mundo? Você cruzaria o Atlântico a bordo do Mayflower, durante quatro a seis semanas, enfrentando tempestades e toda sorte de desconfortos, até alcançar o litoral americano e poder dizer, como um cronista da época:

"O ar a 12 léguas de distância tinha a fragrância de um jardim florido."

Além dos puritanos, membros de outros credos religiosos, como os quakers, presbiterianos e católicos, também se dirigiram à América. A Inglaterra vivia então um período de grande instabilidade social. Artesãos que não encontravam condições de sobrevivência, pessoas desempregadas e camponeses expulsos de suas terras pelos criadores de carneiros esperavam encontrar no novo continente melhores oportunidades.

Como o governo inglês não patrocinou a emigração para a América, essa iniciativa coube a particulares - Proprietários e Companhias de Comércio. Porém, a maior parte dos que cruzaram o oceano não dispunha de recursos para o custeio da viagem. Se você fosse um deles, para viajar com a sua família teria de assinar um contrato de trabalho por um prazo determinado, sem receber qualquer salário, findo o qual a dívida da passagem e da manutenção estaria paga. Era a chamada servidão por dívidas.

Embora os ingleses constituíssem a maioria, também irlandeses, escoceses, suecos, holandeses, franceses vieram para a América do Norte.

"Afinal de contas as terras eram dos indígenas que, não sendo cristãos, podiam ser expropriados, sem que isso fosse considerado pecado..."

A característica dominante do desenvolvimento das colônias inglesas foi a falta de controle efetivo por parte do governo inglês - a chamada Negligência Salutar -, contrariamente ao que ocorreu na América Espanhola. Com exceção das colônias inglesas do Sul, as demais seguiram sua evolução econômica e desfrutaram de consideráveis liberdades políticas. Quando, no século XVIII, essa situação se modificou, devido à intensificação do Pacto Colonial, os colonos se revoltaram e pegaram em armas contra a metrópole.

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]. Fazendo a História: As sociedades Americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 70-2.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Descobrimentos e Renascimento

Francisco Pizarro na ilha de Gallo, convidando seus soldados para cruzar a linha traçada no chão, se eles desejassem continuar sua expedição para o Peru, Juan B. Lepiani


A suposição de que a Terra era redonda e a necessidade de comprovação dessa hipótese através de uma viagem são um projeto tipicamente renascentista. [...]

Ao descobrir outras culturas, o homem do Renascimento hierarquizou-as: da civilização à barbárie. Nesse sentido, o humanista constitui-se a partir de uma vontade de domínio e poder sobre todos os povos do mundo.

Desenhar um mapa, construir o império, destruir outras culturas, impor a fé cristã, assinar obras de arte eram atitudes renascentistas.

A América - destruída e construída a partir do padrão europeu - transformava-se em lugar de comprovação da superioridade da cultura europeia. Era necessário construir uma igreja em cima de uma pirâmide indígena. Não podia ser ao lado.

A invenção da perspectiva na pintura é contemporânea às Grandes Navegações. Ao mesmo tempo em que o pintor estudava as possibilidades de criar a perfeição (reprodução) em seus desenhos, os cartógrafos procuravam mapear, com observância rigorosa, todo o globo terrestre. [...]

Os descobridores, ao realizarem sua obra de colonização construindo igrejas e outras edificações necessárias à conquista, e os artistas, pintando ou esculpindo na Europa, consideravam a existência de um único padrão de beleza, uma única religião verdadeira, uma cultura superior a todas as outras. Descobridores e artistas olhavam o mundo de um único ponto e a partir dele destruíam e construíam. [...]

O resultado desse grande esforço renascentista, dessa "plenitude", foi suporem possuir domínio sobre a vida e a morte das populações que consideravam bárbaras. A América conheceu a expressão mais violenta desse sonho de dominação.

Aqui, nesse Novo Mundo, grande parte da população foi morta por aqueles que necessitavam esculpir a sua cultura sobre as populações pré-colombianas. Não foram anos fáceis para a América. [...]

O colonizador, como se fosse um escultor, talhou a América na forma em que havia imaginado. Destruía pirâmides para construir igrejas, derrubava habitações para obter o desenho da praça ou o traçado desejado para as ruas, jogava pedras nos canais para que os cavalos pudessem circular melhor na cidade. Reconstruía-se tudo o que era possível para que o núcleo urbano lembrasse a Europa. [...]

Os indígenas aprendiam a pintar e a construir para que a América, cada dia mais, se apresentasse com as formas, as cores e a vida europeia. Uma multidão de artífices indígenas se esforçavam para imitar o desenho que viam em precárias reproduções trazidas pelos europeus.

Por todos esses motivos analisados, a harmonia presente nos quadros renascentistas transformava-se em desarmonia no Novo Mundo.

SILVA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e Renascimento. São Paulo: Contexto, 1991. p. 56-58, 63-64.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Entre a cruz (religião) e a espada (guerra): a conquista da América pelos europeus

Funeral de Atahualpa, Luis Montero

DOCUMENTO 1
A cruz realizou um trabalho complementar à espada. Um conjunto de circunstâncias de ordem religiosa entre algumas nações indígenas facilitou a tarefa dos dominadores, já que tanto no México como no Peru uma série de profecias e sinais asseguravam a chegada iminente de novos deuses. E os europeus, manipulando o imaginário destes povos, não tiveram dúvidas em se apresentar como tais. O domínio do sagrado sobre o profano se materializou até nas construções das igrejas católicas, ao se aproveitar algumas pirâmides e templos como alicerces para a edificação de suas catedrais. [...]

Juan de Zumáraga, primeiro arcebispo do México, se orgulhava, em uma carta de 1547, de que seus sacerdotes haviam destruído até então mais de 500 templos indígenas e queimado cerca de 2 mil ídolos. Ele próprio ajudou a incinerar os arquivos existentes em Texcoco. O mesmo fez o bispo de Yacatán, Diego de Landa, ao atirar ao fogo purificador os manuscritos maias - único povo da América pré-colombiana que havia criado uma escrita -, fazendo com que se destruíssem os principais documentos históricos e literários. [RAMPINELLI, Waldir José. A falácia do V Centenário. In: ________. OURIQUES, Nildo Domingos (Org.). Os 500 anos: a conquista interminável. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 30-31.]

A tortura de Cuauhtémoc, Leandro Izaguirre

DOCUMENTO 2
O Almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta ilha Hispaniola, um milhão de índios e índias [...] dos quais, e dos quais nasceram desde então, não creio que estejam vivos, no presente ano de 1535, 500, incluindo tanto crianças como adultos, que sejam naturais, legítimos e da raça dos primeiros índios [...]. Alguns fizeram esses índios trabalhar excessivamente. Outros não lhes deram nada para comer como bem lhes convinha. Além disso, as pessoas desta região são naturalmente inúteis, corruptas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, sem constância e firmeza [...]. Vários índios, por prazer e passatempo, deixaram-se morrer com veneno para não trabalhar. Outros se enforcaram pelas próprias mãos. E quanto aos outros, tais doenças os atingiram que em pouco tempo morreram [...]. Quanto a mim, eu acreditaria que Nosso Senhor permitiu, devido aos grandes, enormes e abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas, que fossem eliminadas e banidas da superfície terrestre [...]. [OVIEDO, Gonzalo Fernandes de. In: ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 76.]

Cortez e seus soldados lutando contra os astecas em Tenochtitlán, Emanuel Leutze

DOCUMENTO 3
O relato desse primeiro encontro com Atahualpa foi feito por diversas testemunhas oculares [...]. Por meio de seu testemunho, a cena aparece para nós, hoje, como um confronto entre duas visões incompatíveis do mundo: de um lado, a de um soberano para quem a própria natureza do poder que encarna proíbe a comunicação direta com seus súditos e o recurso a mediadores; do outro, a de dois hidalgos espanhóis, Soto e Hernando Pizarro, para os quais os reis são interlocutores diretos a despeito de sua majestade. Quebrando sistematicamente as barreiras rituais que os separam do Inca, apagando os códigos de polidez e de hierarquia, os conquistadores vão marcar uma primeira vitória sobre um homem fechado em sua dignidade solar. Pois, mais do que as armas, são os gestos e as palavras que vão solapar a solenidade do Filho do Deus Sol, anunciando o fim de império do qual o Inca era a chave-mestra. [...] [BERNAND, Carmem; GRUZINSKY, Serge. História do Novo Mundo: da descoberta à conquista, uma experiência europeia (1492-1550). São Paulo: Edusp, 1997. p. 499-500.]

Entrada dos espanhóis em Guadalajara, Jalisco. Forças tlalcaxtecas acompanham os espanhóis liderados por Cristóbal de Olid, 1522. Escriba asteca desconhecido.

DOCUMENTO 4
A atitude de Colombo para com os índios decorre da percepção que tem deles. Podemos distinguir, nesta última, duas componentes, que continuarão presentes até o século seguinte e, praticamente, até os nossos dias, em todo o colonizador diante do colonizado. Estas duas atitudes já tinham sido observadas na relação de Colombo com a língua do outro. Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres completamente humanos com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os índios inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu como o universo; na convicção de que o mundo é um. [TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 51.]

A batalha de Otumba, Artista desconhecido

DOCUMENTO 5
Essa trilogia - doenças, desunião dos indígenas e o aço espanhol - responde por boa parte do resultado da Conquista. Basta remover um de seus elementos para que a probabilidade de fracasso das expedições lideradas por Cortés, Pizarro e outros fique muito alta [...].

Um quarto fator também desempenhou um papel importante: a cultura bélica. Por exemplo, os astecas foram prejudicados por certas convenções de batalha ignoradas pelos hispânicos. Os métodos de guerra astecas salientavam a observação de cerimônias que antecediam as batalhas - que eliminavam a possibilidade de ataques de surpresa - e a captura de inimigos para posterior execução ritual, em vez de matá-los no ato [...]. Por fim, a Conquista espanhola só pode ser plenamente compreendida se situada no contexto histórico mais amplo da expansão ultramarina. Essa história mais ampla não fala de uma superioridade espanhola, ou mesmo da Europa Ocidental, mas aborda, ao contrário, um complexo fenômeno da história mundial que transcende as peculiaridades da Conquista espanhola das Américas [...]. [RESTALL, Mattew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 240-242.]

A captura de Atahualpa, Juan Lepiani


DOCUMENTO 6
[...] Vieram os Dzules* que transformaram tudo. Eles ensinaram o terror, eles secaram as flores, sugando até ferir a flor dos outros para poderem fazer sobreviver a própria... Não havia entre eles nem grande sabedoria, nem palavras, nem ensinamentos. Os Dzules não vieram senão para mutilar o sol! E os filhos de seus filhos permaneceram entre nós, que deles não recebemos senão amargura. [ANÔNIMO. Chilam Balam de Chumayel. In: GENOROP, Paul. A civilização maia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 103.]

* Conquistadores espanhóis.

sábado, 21 de dezembro de 2013

A maldição de Malinche

Quando a frota espanhola, chefiada por Hernán Cortés chegou a Tabaco, nas costas mexicanas, em março de 1519, os caciques locais presentearam-no com vinte mulheres nativas que, depois, foram catequizadas e batizadas. Dentre elas destacou-se uma dama da elite indígena, que recebeu o nome cristão de Marina, precedido do título Doña - marca de nobreza das senhoras espanholas.

"Doña Marina se tornou na armada um personagem tão eminente que os indígenas lhe deram o nome de Malintzin, composto de Marina e do sufixo tzin, que significa a classe social ou a nobreza. E ela teve a distinção extraordinária de ter dado seu nome a seu senhor e dono, pois que os índios tomaram o hábito de chamar Cortés pelo nome de sua notável amante-intérprete, Malintzin, que os espanhóis transformaram em Malinche." (Salvador de Madariaga. Hernán Cortés. p. 134.)


Cortéz e Malinche, (detalhe de mural), Orozco

A união dos dois, que resultou num filho, deu início à miscigenação racial entre os brancos conquistadores e os indígenas mexicanos. A miscigenação, aliada à extrema fidelidade da intérprete a seu senhor, deu origem ao mito da Maldição de Malinche, que passou a expressar a situação de dominação e subordinação dos mexicanos a interesses estrangeiros, a partir da "traição" de Doña marina.

Em 1973, esse mito foi cantado numa bela música. 

A maldição de Malinche
Gabino Palomares

Do mar eles viram chegar
meus irmãos emplumados.
Eram os homens barbados
da profecia esperada.

Ouviu-se a voz do monarca
de que o Deus havia chegado.
E lhes abrimos as portas
por temer o ignorado.

Vinham montados em bestas
como Demônios do mal.
Vinham com fogo nas mãos
e cobertos de metal.

Só o valor de uns poucos
lhes opôs resistência.
E ao ver correr o sangue,
cobriram-se de vergonha.

Porque os Deuses não comem
nem gozam com o que é roubado.
E quando nos demos conta,
já tudo estava acabado.

E nesse erro entregamos
a grandeza do passado.
E nesse erro ficamos
trezentos anos escravos.

Restou-nos o maléfico
de brindar o estrangeiro,
nossa fé, nossa cultura,
nosso pão, nosso dinheiro.

E continuamos trocando
ouro por contas de vidro.
E damos nossa riqueza
por seus espelhos com brilho.

Hoje em pleno século XX
nos procuram, chegando enrubescidos.
E lhes abrimos a casa
e os chamamos amigos.

Mas se chega cansado
um índio de andar pela serra,
o humilhamos e o vemos
como um estranho em sua terra.

Tu, hipócrita que te mostras
humilde diante do estrangeiro,
mas te voltas orgulhoso
contra teus irmãos do povo.

Oh, maldição de Malinche,
enfermidade do presente.
Quando deixarás minha terra?
Quando libertarás minha gente?

Citado in: PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ática, 1995. p. 59.

NOTA: O texto "A maldição de Malinche" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

El Diablo es indio

The Moose Chase, George de Forest Brush

Los conquistadores confirmaron que Satán, expulsado de Europa, habia encontrado refugio en las islas y las orillas del mar Caribe, besadas por su boca llameante.

Allí habitaban seres bestiales que llamaban juego al pecado carnal y lo practicaban sin horario ni contrato, ignoraban los diez mandamientos y los siete sacramentos y los siete pecados capitales, andaban en cueros y tenian la costumbre de comerse entre si.

La conquista de América fue una larga y dura tarea de exorcismo. Tan arraigado estaba el Maligno en estas tierras, que cuando parecia que los indios se arrodilaban devotamente ante la Virgen, estaban en realidad adorando a la serpiente que ella aplastaba bajo el pie; y cuando bessaban la Cruz estaban celebrando el encuentro de la lluvia con la tierra.

Los conquistadores cumplieron la misión de devolver a Dios el oro, la plata y las otras muchas riquezas que el Diablo habia usurpado. No fue fácil recuperar el botin. Menos mal que, de vez en cuando, recibian alguna ayudita de allá arriba. Cuando el dueño del Inferno preparó de los españoles hacia el Cerro Rico de Potosí, un arcángel bajó de las alturas y le propinó tremenda paliza.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p.118-119.

sábado, 31 de agosto de 2013

América 3: "Como uns porcos famintos, anseiam pelo ouro"

Códice Durán

Com tiros de arcabuz, golpes de espada e hálitos de peste, acometiam os escassos e implacáveis conquistadores da América. Assim conta a voz dos vencidos. Depois da matança de Cholula, Montezuma enviou novos emissários ao encontro de Hernán Cortez, que avançava rumo ao vale do México. Os enviados presentearam os espanhóis com colares de ouro e bandeiras de penas de quetzal. Os espanhóis "se deleitaram. Como se fossem macacos, sentavam-se com gestos de prazer e levantavam o ouro, como se aquilo lhes renovasse a iluminasse o coração. É certo que desejam aquilo com grande sede. Os corpos deles se incham de uma fome furiosa por aquilo. Como uns porcos famintos, anseiam pelo ouro", diz o texto náhuatl, preservado no Códice Florentino. Adiante, quando Cortez chegou a Tenochtitlán, a esplêndida capital asteca, os espanhóis entraram na casa do tesouro e "logo fizeram uma grande bola de ouro e puseram fogo, incendiando tudo o que restava, por valioso que pudesse ser: e então tudo ardeu. Quanto ao ouro, os espanhóis o reduziram a barras (...)".

Houve guerra, e finalmente Cortez, que perdera Tecnochtitlán, reconquistou-a em 1521, "Já não tínhamos escudos, já não tínhamos bordunas, e nada tínhamos para comer, e nada comíamos." Devastada, incendiada, coberta de cadáveres, a cidade caiu. "E toda a noite choveu sobre nós." A força e o tormento não foram suficientes: os tesouros arrebatados nunca satisfaziam as exigências da imaginação, e durante longos anos os espanhóis escavaram o fundo do lago do México, em busca do ouro e dos objetos preciosos supostamente escondidos pelos índios.

Pedro de Alvarado e seus homens arremeteram contra a Guatemala e "foram tantos os índios mortos que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque", e também "o dia se tornou vermelho pela quantidade de sangue que correu naquele dia". Antes da batalha decisiva, "os índios atormentados disseram aos espanhóis que, se não os atormentassem mais, teriam ali muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas pertencentes aos capitães Nehaib Isquin e Nehaib feito águia e leão. E logo entregaram tudo aos espanhóis, que com tudo ficaram (...)".

Antes de degolar o inca Atahualpa, Francisco Pizarro arrancou um resgate de "arcas de ouro e prata que pesavam mais de 20 mil marcos de prata fina e um milhão e 326 mil escudos de ouro finíssimo (...)". Depois arremeteu contra Cuzco. Seus soldados acreditavam estar entrando na Cidade dos Césares, tão deslumbrante era a capital do império incaico, mas não demoraram a sair do estupor e começaram a saquear o Templo dp Sol: "Forcejando, lutando uns contra os outros, cada qual querendo levar do tesouro a parte do leão, os soldados, com suas cotas de malha, pisoteavam joias e imagens, golpeavam os utensílios de ouro ou lhes davam marteladas para reduzi-los a um formato menor e portável (...). Atiraram ao forno todo o tesouro do templo para converter o metal em barras: as placas que cobriam os muros, as assombrosas árvores forjadas, pássaros e outros objetos do jardim".

Hoje em dia, no Zócalo - a imensa praça desnuda no centro da capital do México -, a catedral católica se levanta sobre as ruínas do templo mais importante de Tenochtitlán, e o palácio do governo está localizado em cima da residência de Cuauhtémoc, o chefe asteca enforcado por Cortez. No Peru, Cuzco teve sorte parecida, mas os conquistadores não puderam derrubar completamente seus muros gigantescos e hoje ainda se pode ver, ao pé dos edifícios coloniais, o testemunho de pedra da colossal arquitetura incaica.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 38-39.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

América 2: "Retornavam os deuses com as armas secretas"

Códice Durán

Em sua passagem por Tenerife, durante sua primeira viagem, Colombo presenciara uma erupção vulcânica. Foi como um presságio de tudo o que viria depois nas imensas terras novas que iam interromper a rota ocidental para a Ásia. A América estava ali, adivinhada desde suas suas costas infinitas: a conquista se estendeu em vagalhões, qual maré furiosa. Os chefes militares substituíam os almirantes, e as tripulações se transformavam em hostes invasoras. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da África para a coroa de Portugal, outorgando à coroa de Castela as terras "desconhecidas como aquelas até aqui descobertas por vossos enviados e aqueloutras que se descobrirão no futuro (...)": a América tinha sido doada à rainha Isabel. Em 1508, uma nova bula concedeu à coroa espanhola, perpetuamente, todos os dízimos arrecadados na América: o cobiçado patronato universal sobre a Igreja do Novo Mundo incluía o direito real de auferir todos os benefícios eclesiásticos.

O Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494, permitiu a Portugal a ocupação de territórios americanos além da linha divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de Souza fundou as primeiras povoações portuguesas no Brasil, expulsando os franceses. Já então os espanhóis, cruzando selvas infernais e desertos infinitos, tinham avançado bastante no processo da exploração e da conquista. Em 1513, o Pacífico resplandecia aos olhos de Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à Espanha os sobreviventes da expedição de Fernão de Magalhães, que uniram pela primeira vez os dois oceanos e, ao dar uma volta completa no mundo, constataram que ele era redondo; três anos antes tinham partido de Cuba, na direção do México, as dez naus de Hernán Cortez, e em 1523 Pedro de Alvarado lançou-se à conquista da América Central; Francisco Pizarro entrou triunfalmente em Cuzco em 1533, apoderando-se do coração do império dos incas; em 1540, Pedro de Valdívia atravessava o deserto de Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores penetravam no Chaco e revelavam o Novo Mundo desde o Peru até a foz do rio mais caudaloso do planeta.

Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais, engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o ferro e o arado, o vidro e a pólvora, e tampouco empregava a roda. A civilização que se abateu sobre estas terras, vindas do outro lado do mar, vivia a explosão criadora do Renascimento: a América surgia como uma invenção a mais, incorporada junto com a pólvora, a imprensa, o papel e a bússola ao agitado nascimento da Idade Moderna. O desnível de desenvolvimento dos dois mundos explica em grande parte a relativa facilidade com que sucumbiram as civilizações nativas. Hernán Cortez desembarcou em Veracruz acompanhado de não mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, dez canhões de bronze e alguns arcabuzes, mosquetes e pistolas. No entanto, a capital dos astecas, Tenochtitlán, era então cinco vezes maior do que Madri e dobrava a população de Sevilha, a maior das cidades espanholas. Francisco Pizarro entrou em Cajamarca com 180 soldados e 37 cavalos.

Os indígenas, no começo, foram derrotados pelo assombro. O imperador Montezuma, em seu palácio, recebeu as primeiras notícias: uma montanha andava a movimentar-se no mar. Depois chegaram outros mensageiros: "(...) muito espanto lhe causou ouvir o tiro de canhão, como retumba seu estrépito e leva as pessoas a desmaiarem, com os ouvidos atordoados. Quando acontece o tiro, uma bola de pedra salta de suas entranhas: sai chovendo fogo (...)". Os estrangeiros traziam "veados" para montar e, montados, ficavam "tão no alto como os tetos". Traziam o corpo coberto, "aparecem só as caras. São brancas, como se fossem de cal. Têm o cabelo amarelo, embora alguns o tenham preto. A barba deles é grande (...)". Montezuma acreditou que era o deus Quetzalcoátl que voltava. Pouco antes, oito presságios tinham anunciado esse retorno. os caçadores lhes haviam trazido uma ave que possuía na cabeça um diadema redondo, com a forma de um espelho, que refletia o céu com o sol já no poente. Nesse espelho Montezuma viu marchar sobre o México os esquadrões de guerreiros. O deus Quetzalcoátl viera pelo leste, e pelo leste tinha ido embora: era branco e barbudo. Também branco e barbudo era Viracocha, o deus bissexual dos incas. E o leste era o berço dos antepassados heroicos dos maias.

Os deuses vingativos que agora regressavam para acertar contas com seus povos traziam armaduras e cotas de malha, reluzentes escudos que devolviam os dardos e as pedras; suas armas expediam raios mortíferos e obscureciam a atmosfera com fumaças irrespiráveis. Os conquistadores praticavam também, com habilidade política, a técnica da traição e da intriga. Souberam explorar, por exemplo, o rancor dos povos submetidos ao domínio imperial dos astecas e as divisões que fragmentavam o poder dos incas. Os tlaxcaltecas foram aliados de Cortez, e Pizarro usou em seu proveito a guerra entre os herdeiros do império incaico, os irmãos inimigos Huáscar e Atahualpa. Os conquistadores granjearam cúmplices entre as classes dominantes intermediárias, sacerdotes, funcionários, militares, uma vez abatidas, criminosamente, as chefias indígenas mais altas. Mas também usaram outras armas ou, se preferirmos, outros fatores trabalharam objetivamente para a vitória dos invasores. Os cavalos e as bactérias, por exemplo.

Os cavalos, como os camelos, eram originários da América, mas se extinguiram nestas terras. Introduzidos na Europa pelos cavaleiros árabes, tiveram no Velho Mundo imensa serventia militar e econômica. Ao reaparecerem na América, através da conquista, colaboraram para a atribuição de forças mágicas aos invasores ante os olhos atônitos dos indígenas. Segundo uma versão, o inca Atahualpa caiu de costas quando viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados em briosos cavalos ornados de guizos e penachos que corriam desencadeando tropéis e polvadeira. O cacique Tecum, à frente dos herdeiros dos maias, decapitou o cavalo de Pedro de Alvarado, convencido de que fazia parte do conquistador: Alvarado se ergueu e o matou. Escassos cavalos, cobertos de arreios de guerra, dispersaram as massas indígenas e semearam o terror e a morte. "Os padres e os missionários espalharam na fantasia vernácula", durante o processo colonizador, "que os cavalos eram de origem sagrada, já que Santiago, o padroeiro da Espanha, montando um potro branco, vencera importantes batalhas contra mouros e judeus, com a ajuda da Divina Providência".

Bactérias e vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que provocava a febre e descompunha a carne? "Lá foram se meter em Tlaxcala", narra um testemunho indígena, "então se espalhou a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam". E outro: "A muitos deu morte a pegajosa, pesada, dura doença dos grãos". Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham resistência às novas enfermidades, e os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estima que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu contaminada logo ao primeiro contato com os homens brancos.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p.34-38.

sábado, 22 de junho de 2013

O porque da vertiginosa conquista hispânica

Cortéz e seus soldados atacam os astecas, Emanuel Leutze

Em um breve tempo de história - mais ou menos meio século - dezenas de milhões de americanos foram dominados por reduzidos grupos europeus. Como aconteceu? Como foi possível isso? O problema intriga os historiadores.

Dizer que as razões que explicam o fenômeno são complexas, é óbvio. Tê-las em nossas mãos, já é mais problemático. Somos capazes de entender o grande drama?

Argumentou-se que as armas de fogo e os cavalos aterrorizaram os índios a ponto de paralisá-los. O argumento é inconsistente. Isso explicaria que os 182 homens que Francisco Pizarro colocou em Cajamarca (dos quais só um terço a cavalo) derrotassem em meia hora, talvez mais de 200.000 guerreiros nativos sob o comando do inca Atahualpa? É difícil aceitar isso. Sabemos que os incas - assim como os astecas e outros povos - encaravam a guerra como uma questão permanente; que sua coragem não era inferior à de ninguém, nem à dos soldados barbudos vindos do ultramar, revestidos de couraças e com o raio da morte em suas mãos. Sabemos o que foi a defesa de Tenochtitlán pelos astecas durante dois anos e meio, e não ignoramos que Cortéz venceu, não propriamente porque os arcabuzes e canhões lhe davam superioridade, mas porque contava com um considerável exército de índios que odiavam os astecas.

Não são poucos os historiadores que assinalam o que usualmente chamaríamos "presságios". [...] No Peru, México e outras áreas da América pré-colombiana corriam lendas ou profecias sobre a próxima chegada, do oriente, de deuses bárbaros, em templos flutuantes, montados em centauros terroríficos e treinados no manejo do trovão e do raio.

Sob o reinado de Huayna-Capac, no Peru, determinados fenômenos naturais foram interpretados como o prognóstico de tragédias que se aproximam. Meteoros vermelhos cruzam os céus, terremotos sacodem violentamente a terra e derrubam montanhas, tempestades violentas devastam várias regiões. E, o mais grave: a aparição da lua rodeada por um tríplice círculo luminoso, que intrigará profundamente aos astrônomos do Incário.

O próprio Huayna-Capac, fica impressionado e manda chamar o astrólogo Llayca para decifrar o significado de sinais tão inquietantes. Llayca responde: a) o sangue dos povos do Incário será amplamente derramado; b) uma guerra fratricida acabará com a dominação dos incas; c) todo o conhecido terá um final bem próximo.

Tudo isso - e que posteriormente é confirmado pela conquista - é lido e interpretado por Llayca no tríplice círculo da lua.

A relativa passividade de Montezuma e Atahualpa nos deixa perplexos... O fato de aceitarem a presença dominadora da tropa hispânica não deve ser visto pelo lado da covardia, mas também deve considerar-se a existência de uma convicção solidamente enraizada em suas consciências: a inevitabilidade da tragédia, prevista, anunciada, profetizada.

Ambos os imperadores se submetem, como se desafiar o destino - e os espanhóis parecem representá-lo - fosse absolutamente inútil. O fatalismo inerente às religiões nativas (e não somente a elas, é claro) deve ter jogado um papel decisivo na paralisia que sobreveio repentinamente em seus seguidores. Uma faca de dois gumes.

Talvez o fatalismo tenha sido cultivado pelos grupos dirigentes e pelo imenso setor sacerdotal como uma maneira de incentivar o messianismo: incas e astecas tiveram que representar-se como designados por uma onipotência superior para dominar. Em nome de seus deuses puseram-se a conquistar e subordinar povos diferentes. Em seu nome impuseram tributos, aumentaram riquezas e poder e tornaram válida a dominação de seus próprios povos. A religião foi sendo adaptada a finalidades que hoje estão muito longe de ser conceituadas como sendo exclusivamente religiosas. Muitos esforços e energias foram despendidos para construir o que a posteridade chamou Confederação Asteca e Império Inca. Talvez sem o papel extraordinariamente mobilizador da religião, não teriam adquirido a dimensão que sabemos que tiveram. Mas, assim como o destino revelado pelos deuses mostrava as vitórias, é possível que esse desígnio superior fosse interpretado a partir de determinado momento como o presságio de uma catástrofe desejada pela vontade onipotente.

Não era concebível desafiar o "além" que não podia ser conhecido, fosse ele favorável ou contrário em suas determinações. Insistimos: uma faca de dois gumes, capaz de gerar fantásticas energias coletivas ou paralisá-las.

Mas esse fenômeno não foi unânime, universal. Os araucanos e outros povos (de menor desenvolvimento material e espiritual que os incas e astecas) mostraram grandes resistências. Incorporaram às suas capacidades o uso do cavalo e das armas de fogo, valendo-se disso igual ou melhor que os conquistadores.

O que ocorreu no México e no Peru é significativo. Os mais fortes foram os primeiros a serem derrotados; os mais inaptos resistiram com uma determinação proporcional à suas forças. O recurso ao fatalismo como fator explicativo não parece fora de propósito, mas como veremos, isso não explica tudo. No entanto, recordemos que a ocupação do templo de uma cidade cercada e cobiçada significava a sua derrota e o triunfo de um novo Deus. Quantos deles não aceitaram isso quando da invasão dos conquistadores sem estar militarmente derrotados!

Sabemos também que a vitória dos incas e astecas não terminava com os deuses dos vencidos, ficando esses num plano secundário em relação à divindade triunfadora. Só que para os cristãos conquistadores não significava a mesma coisa: a adoração ao seu Deus implicava em acabar com os deuses dos vencidos. Mais ainda: acabar com os cultos, templos e lugares sagrados. Eliminar tudo isso da consciência dos índios é outra coisa. Nisso, o triunfo foi bem menor, se é que em alguns casos a derrota não foi total. Apagar da consciência de milhões de indivíduos um mundo de significados e crenças que regulavam até os mínimos atos da vida cotidiana, foi infinitamente mais difícil que arrasar os objetos materiais do culto.

Temos agora uma pergunta intrigante: Por que povos menos desenvolvidos resistiram mais ferozmente aos brancos? Seguindo ainda o exemplo dos araucanos, eles nunca constituíram  um império. Formavam um conjunto de tribos que mantinham entre si relações episódicas de paz e guerra, de aliança e ruptura. Talvez por isso sua religião, crenças, consideravam menos o elemento fatalista existente nas religiões dos grandes dominadores. Como não chegaram a um estágio de desenvolvimento ou situação que os levasse a sentir-se dominadores, legitimando esse sentimento mediante a intervenção de uma vontade superior, provavelmente o espaço que isso lhes deu para manifestar sua liberdade foi muito maior. Não precisaram de um Deus para, em seu nome e maior glória, lançar-se à conquista e à subordinação de outros povos. Isso determinou que seu universo religioso excluísse a guerra como algo ditado por uma vontade superior. Os homens brancos não surgiram - nem foram percebidos ou concebidos - como enviados do "além". Eram simplesmente invasores, inimigos brutais, ousados invasores.

Em poucas palavras: crenças que estavam a serviço de uma dominação - e que tendiam a expandir-se e aprofundar-se - representaram, obviamente, as formas mais adequadas para a mobilização das energias conquistadoras. Mas o mandato que elas continham seguramente resultou de um processo histórico que também os araucanos talvez haviam chegado a realizar, transformaram-se no seu contrário em virtude do elemento aguçadamente fatalista e messiânico que continham. Crenças e concepções de tribos mais isoladas deviam conter forçosamente - como condição de sobrevivência - um poderoso fator auto-defensivo.

Estas explicações são corretas? Achamos, pelo menos, que elas são plausíveis.

No entanto há outro aspecto que convém destacar e que já foi mencionado. Enquanto dominadores, incas e astecas enfrentavam a resistência silenciosa dos povos que deviam pagar-lhes tributos e que tinham que aceitar imposições ultrajantes como, talvez, aquela que se referia ao deus dos vencedores. Tanto no México como no Peru os espanhóis contaram com a eficaz colaboração de comunidades indígenas que se conservavam independentes, ou que estavam lutando de alguma maneira para livrar-se das garras de um poder alheio. Totonecas e tlaxcaltecas foram providenciais aliados de Hernán Cortéz; também a guerra fratricida no meio inca foi importante para Pizarro e sua tropa. A chegada dos brancos barbudos, com suas armaduras, montados a cavalo e manejando armas de fogo parece ter sido festejada - e ao que tudo indica, o foi no México - como uma ajuda do céu para acabar com o poder que vinha de Tecnochtitlán. E se no final, todos terminaram submetidos aos espanhóis e pagaram um preço duríssimo, é outra história. Os índios, e vamos chamá-los de dissidentes, ignoravam o que os esperava quando a conquista começa. De fato, as duas mais importantes estruturas políticas do continente demonstraram ser muito mais artificiais do que se poderia supor. Baseavam-se na força e na passividade relativa que a religião triunfante conseguia impor - nem sempre, já sabemos - aos vencidos. É bom lembrar que em ambos os casos tratava-se de estruturas políticas relativamente recentes, em processo de construção e afirmação, mais a asteca que a inca. Mas em essência, ambas débeis. A unidade do Incário e da Confederação mexicana eram superficiais, não tendo raízes sólidas e penetrantes nas sociedades. Não existia, em os ambos casos, esse fenômeno a que chamamos Nação. Tribos unificadas através da coação militar e da ideologia religiosa, não perderam contudo sua identidade tribal, caracterizada pela adotação aos seus próprios deuses, mantendo costumes diferenciados, usando idiomas ou dialetos diferentes, preservando a heterogeneidade das aptidões.

Quando a cabeça de ambos os impérios é cortada, a estrutura toda desmorona. O caráter autocrático e extraordinariamente centralizado da dominação, particularmente no Incário, devia resultar no que a história nos ensina. Funcionários, sacerdotes e militares obedeciam as ordens que vinham de cima, começando pelo magistrado supremo laico e religioso, que se prolongava para baixo através de sucessivos estratos de sacerdotes, funcionários e militares que comunicavam as determinações entre si até fazê-las chegar ao povo, as massas de camponeses. Não existia o que hoje chamamos espírito e identidade nacional. Estado e Nação são fenômenos diferentes. Na América pré-colombiana encontramos Estados e só por um abuso de linguagem alguns estudiosos falam de Nações. Geralmente a resistência dos índios é mais uma reação contra a violência dos conquistadores que defesa de uma soberania e uma identidade nacional. Não existe a noção de soberania. O que podemos aceitar é a noção de legitimidade, que será implícita. A maioria dos dominados pelos incas e astecas consideravam a dominação como ilegítima. Não que a tenham tornado explícita, como poderiam fazê-los nossos cientistas políticos atuais. Mas o repúdio sórdido ou manifesto, calado ou espetacular ao poder alheio, e o não reconhecimento deste poder era a maneira de expressar sua falta de legitimidade.

POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 83-85.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

A História dos índios da América

Chac Mool. Templo Mayor, México. 
Foto: Adriel A. Macedo Arroyo

"Hoje estamos começando a sonhar do fundo dos 500 anos que passamos mergulhados no túnel do tempo. Durante o longo caminho desse túnel, foram exterminadas muitas culturas... Só agora é que estamos com direito de ter comunicação, através da escrita na nossa própria língua, e recuperar nossas tradições. Mas este túnel do tempo mostra que somos capazes de realizar sonhos que sempre tivemos como povos diferentes e valorizados dentro de nós mesmos."
(João Mana, Kaxinauá, 1997)

Índios iaunauás
 Foto: Cecon/Agência de Notícias do Acre

Muitos povos indígenas foram atingidos pela conquista. Os conquistadores desejavam se apossar de tudo e subjugar a todos.

Que estranha é essa raça humana!

Nos primeiros tempos, era somente a conquista, a depredação, o espanto. Depois, os conquistadores foram criando os mecanismos da colonização; enviaram pessoas para administrar, cumprindo as ordens da coroa. Dividiram as terras e escolheram as estratégias para produzir o maior lucro possível.

Para as coroas europeias, as colônias precisavam ser muito lucrativas para compensar os gastos investidos. Dessa forma, era necessário cercar-se de todos os cuidados para garantir a produção. Principalmente nas regiões onde os impérios indígenas possuíam riquezas fabulosas e conhecimentos para produzir ainda mais, os colonizadores espanhóis, rapidamente, puseram em prática os esquemas armados pela coroa espanhola.

Mas, na verdade, tanto Portugal quanto a Espanha tiveram que se preocupar com os índios. Era uma realidade da qual não podiam fugir.

Para o colonizador, não era bom ter índios fortes. Era importante apossar-se de suas riquezas, de seus saberes, de seus segredos, mas não havia interesse em tê-los como amigos.

Aos olhos dos europeus, os índios eram inferiores. Nem sempre eram reconhecidos como gente. Na maioria das vezes, referiam-se a eles como seres estranhos e exóticos. Chegaram a levar alguns deles para ser expostos nas cidades europeias.

Foi um imenso choque cultural. De um lado, os europeus com sua cultura, seu grau de desenvolvimento, suas formas de vida. Do outro, a América, com uma variedade imensa de grupos indígenas, possuindo uma História completamente diferente.


Tipis  
Foto: Edward Curtis

Sem dúvida, foi um choque doloroso para os povos americanos, mas mexeu também com a cabeça dos europeus. Muitos valores foram derrubados, muitas ideias foram colocadas de lado e, em seus lugares, apareceram novos conhecimentos do mundo, dos homens e da vida. Se o Velho Mundo conhecido já não era mais o único, suas crenças e saberes também não eram mais.

Hoje, estudando aquele momento da História, nós somos capazes de enxergar os dois lados da cultura, mas naquela época era muito difícil para a maioria dos europeus tratar principalmente os índios americanos e os negros africanos como seus iguais. Para os europeus do século XVI, vivendo um nível de vida cultural muito diferente, os outros eram inferiores.


Petróglifo: guerreiro comanche. 
Foto: Jerry Willis

Enquanto os homens da Europa viviam a época do Renascimento - na arte, na ciência, na técnica, na literatura -, os homens da América, da África negra e das ilhas da Oceania viviam outro momento de sua História, que em nada lembrava a forma de viver dos europeus.

Os conquistadores não foram capazes de entender as diferenças e respeitá-las. Os reis, em sua política de colonização, não estavam preocupados em respeitar o modo de vida de povos tão diferentes, mas em trazer para as colônias o seu próprio modo de pensar, administrar, construir etc. Assim, por exemplo, nasceu nas colônias uma arquitetura - igrejas, palácios, residências - dentro do estilo de suas metrópoles. As colônias passaram a ser lugares onde as metrópoles expandiam os seus interesses econômicos e políticos, onde demonstravam o seu grau de cultura e religiosidade.

Na forma de pensar dos europeus, as culturas indígenas não tinham valor. Nem mesmo as dos incas, astecas e maias, que eram muito mais sofisticadas do que, por exemplo, as culturas dos índios do Brasil.¹

¹ Cada civilização americana desenvolveu processos históricos específicos e originais. [...]

A atividade econômica predominante era a agricultura de subsistência, destacando-se, na América Central, a cultura do milho.

As técnicas de irrigação e fertilização do solo eram suficientemente desenvolvidas para possibilitar o atendimento das necessidades de populações bastante densas. Utilizava-se o guano, adubo produzido com as fezes de um pássaro que, por isso, não podia ser morto.

A propriedade da terra era coletiva. Cada grupo familiar ou clã tinha direito a receber e utilizar uma área que suprisse suas necessidades. As terras não distribuídas eram consideradas propriedades do Sol. O povo era obrigado a cultivá-las também para o sustento de sacerdotes, governantes e suas famílias. A produção excedente das terras do Sol era armazenada e distribuída para a população quando as colheitas eram insuficientes.

Entre maias, astecas e incas havia atividades manufatureiras bem desenvolvidas, por meio dos quais se produziam utensílios domésticos, objetos de ornamentação e de culto e tecidos.


Arte erótica chimu em madeira e tecido.
Museu de Artes Walters

Os três grupos manipulavam metais. Os astecas utilizavam o cobre, e os incas dominavam a técnica de obtenção do bronze. O ouro, a prata e as pedras preciosas eram largamente empregados em uma sofisticada produção de jóias e objetos ornamentais que maravilharam os europeus e aguçaram sua cobiça. Contudo, não utilizavam o ferro, por isso não tinham desenvolvido uma atividade industrial mais complexa. Esses povos eram também excelentes ceramistas. Produziam obras magníficas, com os quais enfeitavam grandes construções arquitetônicas.


Estatueta de cerâmica representando um cacique.
Foto: Michel Wall

[...] Sua arquitetura era grandiosa. Os maias e astecas construíram grandes pirâmides. Os templos, palácios e as residências dos ricos eram construções monumentais, nas quais se usavam pedras. As casas pobres, por sua vez, eram de adobe (tijolo feito com argila crua, seco ao Sol).


Pirâmide do adivinho.
Uxmal

O comércio era bastante evoluído. Feito, de modo geral, em espécie (os astecas usavam cacau como moeda), foi responsável pelo surgimento de um grupo de comerciantes socialmente muito forte.


Reconstituição do mercado de Tlatelolco.
Joe Ravi

As civilizações americanas tornaram-se, apesar da importância da atividade agrária, predominantemente urbanas. Grandes cidades surgiram tanto na América Central como nos Andes.


Reconstituição de Tenochtitlán
México

As cidades possuíam sistema de esgoto e canalização de água, as ruas eram calçadas e havia jardins bem construídos. As estradas interligavam as cidades de cada império.

Em diversos aspectos da cultura e dos conhecimentos científicos, destacando-se a medicina e astronomia, os variados registros das civilizações centro-americanas e andinas indicam níveis elevados e complexos de elaboração.


Tiahauanaco, Bolívia. 
Foto Silvio Martins

Conheciam as propriedades medicinais de diversas plantas. Estudavam os movimentos dos astros, previam os eclipses e elaboravam calendários lunares precisos. Os maias possuíam um calendário, adaptado depois pelos astecas, com ano de 365 dias, dividido em 18 meses de 20 dias e um mês complementar de 5 dias, que a cada quatro anos tinha um dia a mais, resultando em um ano bissexto. Os cálculos astronômicos promoviam e valiam-se de bons conhecimentos matemáticos.

Os maias e astecas possuíam uma escrita ideográfica, há bem pouco tempo decifrada, em fase de evolução para a fonética, e os incas utilizavam um sistema de nos atados em pequenos cordéis coloridos - os quipos.

[...]

A organização social expressava a estrutura econômica e a organização religiosa. A grande importância da religião tornou muito poderoso o grupo sacerdotal, que se identificava com o dos governantes, também considerados ligados aos deuses. Em seguida, na escala social, havia o grupo dos guerreiros, muito prestigiados por seu papel na defesa da sociedade e na expansão do império. A base social era formada pelos trabalhadores que cultivavam a terra e desenvolviam as atividades manufatureiras. [...] Os escravos eram prisioneiros de guerra, incumbidos dos serviços mais pesados. Contudo, a escravidão não era hereditária. (NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 277-279)


Representação do deus Jaguar do lírio aquático. Período Clássico da cultura maia.
Foto: Simon Burchell

Hoje é difícil estudar a vida dos índios daquele tempo. Destruíram-se quase todos os documentos, as cidades indígenas foram transformadas em cidades espanholas, foram queimados muitos conjuntos de escrita, chamados de códices, milhares de peças de arte confeccionadas em ouro e prata foram fundidas e transformadas em barras.

Além do mais, um número altíssimo de índios morreu durante a conquista e a colonização. Foram mortos em combates, por doenças e pelo excesso de trabalho imposto pelo colonizador. Tribos inteiras tiveram suas vidas completamente desorganizadas, pois as famílias, muitas vezes, foram esfaceladas, os grupos desmembrados e as imagens dos deuses destruídas.

Considerando-se, também, que em todos os impérios e tribos indígenas a cultura era passada de uma geração a outra pela tradição oral², com a morte de centenas de sábios, morreram também muitas experiências e conhecimentos.


²  Oração para pedir paz e sabedoria (Prece sioux)


Ó grande espírito de nossos antepassados,
A ti levanto meu cachimbo!
Levanto-o também aos teus mensageiros,
Os quatro ventos, e à nossa mãe terra,
Que sustenta nossos filhos.
Dá-nos a sabedoria para ensinar nossas crianças
A amar, a respeitar os outros,
Para que sejam boas entre elas,
E para que cresçam com a paz na mente.
Ensina-nos a dividir todas as boas coisas
Que tu enviaste para nós nesta terra...
(Povo sioux*)

* Texto de autor desconhecido. Este povo vivia na região central das planícies dos Estados Unidos e resistiu bravamente ao avanço europeu, autodenominando-se Dakota, que significa "povo".

Xamã da Amazônia 
Foto: Veton Picq

Pouca coisa restou produzida inteiramente pelos índios daquele tempo. Alguns religiosos que chegaram no período da conquista ou depois, com os colonizadores, foram os responsáveis pela preservação da obra indígena. Não somente recolheram e guardaram documentos, como também ouviram os índios e registraram as suas histórias.

Entre os diários de viagem, os relatórios e as crônicas dos primeiros tempos dos europeus na América, estão também as obras escritas pelos missionários. Frei Bartolomeu de Las Casas foi um que escreveu bastante, denunciando o tratamento que o colonizador espanhol dispensava aos índios. Outro, o padre Bernardino de Sahagún, pôs-se a ouvir os índios e foi registrando as histórias, as lendas, as canções, as experiências e, assim, chegou até nós um pouquinho daqueles tempos.


Guerreiros astecas
Códice florentino. Artista indígena desconhecido.

Somente através de documentos pode-se conseguir reconstruir a História de um povo. Onde não há documentos, o passado nada mais pode ser além de silêncio.

Mas, quando há documento verdadeiro, não há silêncio. Os livros, os diários, os relatos falam, como falam também as artes, as lendas, as crônicas, os mitos, as ruínas das cidades...

GARCIA, Ledonias Franco. Estudos de história: sociedades dos tempos modernos. Goiânia: UFG, 1998. p. 115-118.
GUARANI, Emerson; PREZIA, Benedito (orgs,). A criação do mundo e outras belas histórias indígenas. São Paulo: Formato Editorial, 2011. p. 5 e 50.
NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 277-279.