Cortéz e seus soldados atacam os astecas, Emanuel Leutze
Em um breve tempo de história - mais ou menos meio século - dezenas de milhões de americanos foram dominados por reduzidos grupos europeus. Como aconteceu? Como foi possível isso? O problema intriga os historiadores.
Dizer que as razões que explicam o fenômeno são complexas, é óbvio. Tê-las em nossas mãos, já é mais problemático. Somos capazes de entender o grande drama?
Argumentou-se que as armas de fogo e os cavalos aterrorizaram os índios a ponto de paralisá-los. O argumento é inconsistente. Isso explicaria que os 182 homens que Francisco Pizarro colocou em Cajamarca (dos quais só um terço a cavalo) derrotassem em meia hora, talvez mais de 200.000 guerreiros nativos sob o comando do inca Atahualpa? É difícil aceitar isso. Sabemos que os incas - assim como os astecas e outros povos - encaravam a guerra como uma questão permanente; que sua coragem não era inferior à de ninguém, nem à dos soldados barbudos vindos do ultramar, revestidos de couraças e com o raio da morte em suas mãos. Sabemos o que foi a defesa de Tenochtitlán pelos astecas durante dois anos e meio, e não ignoramos que Cortéz venceu, não propriamente porque os arcabuzes e canhões lhe davam superioridade, mas porque contava com um considerável exército de índios que odiavam os astecas.
Não são poucos os historiadores que assinalam o que usualmente chamaríamos "presságios". [...] No Peru, México e outras áreas da América pré-colombiana corriam lendas ou profecias sobre a próxima chegada, do oriente, de deuses bárbaros, em templos flutuantes, montados em centauros terroríficos e treinados no manejo do trovão e do raio.
Sob o reinado de Huayna-Capac, no Peru, determinados fenômenos naturais foram interpretados como o prognóstico de tragédias que se aproximam. Meteoros vermelhos cruzam os céus, terremotos sacodem violentamente a terra e derrubam montanhas, tempestades violentas devastam várias regiões. E, o mais grave: a aparição da lua rodeada por um tríplice círculo luminoso, que intrigará profundamente aos astrônomos do Incário.
O próprio Huayna-Capac, fica impressionado e manda chamar o astrólogo Llayca para decifrar o significado de sinais tão inquietantes. Llayca responde: a) o sangue dos povos do Incário será amplamente derramado; b) uma guerra fratricida acabará com a dominação dos incas; c) todo o conhecido terá um final bem próximo.
Tudo isso - e que posteriormente é confirmado pela conquista - é lido e interpretado por Llayca no tríplice círculo da lua.
A relativa passividade de Montezuma e Atahualpa nos deixa perplexos... O fato de aceitarem a presença dominadora da tropa hispânica não deve ser visto pelo lado da covardia, mas também deve considerar-se a existência de uma convicção solidamente enraizada em suas consciências: a inevitabilidade da tragédia, prevista, anunciada, profetizada.
Ambos os imperadores se submetem, como se desafiar o destino - e os espanhóis parecem representá-lo - fosse absolutamente inútil. O fatalismo inerente às religiões nativas (e não somente a elas, é claro) deve ter jogado um papel decisivo na paralisia que sobreveio repentinamente em seus seguidores. Uma faca de dois gumes.
Talvez o fatalismo tenha sido cultivado pelos grupos dirigentes e pelo imenso setor sacerdotal como uma maneira de incentivar o messianismo: incas e astecas tiveram que representar-se como designados por uma onipotência superior para dominar. Em nome de seus deuses puseram-se a conquistar e subordinar povos diferentes. Em seu nome impuseram tributos, aumentaram riquezas e poder e tornaram válida a dominação de seus próprios povos. A religião foi sendo adaptada a finalidades que hoje estão muito longe de ser conceituadas como sendo exclusivamente religiosas. Muitos esforços e energias foram despendidos para construir o que a posteridade chamou Confederação Asteca e Império Inca. Talvez sem o papel extraordinariamente mobilizador da religião, não teriam adquirido a dimensão que sabemos que tiveram. Mas, assim como o destino revelado pelos deuses mostrava as vitórias, é possível que esse desígnio superior fosse interpretado a partir de determinado momento como o presságio de uma catástrofe desejada pela vontade onipotente.
Não era concebível desafiar o "além" que não podia ser conhecido, fosse ele favorável ou contrário em suas determinações. Insistimos: uma faca de dois gumes, capaz de gerar fantásticas energias coletivas ou paralisá-las.
Mas esse fenômeno não foi unânime, universal. Os araucanos e outros povos (de menor desenvolvimento material e espiritual que os incas e astecas) mostraram grandes resistências. Incorporaram às suas capacidades o uso do cavalo e das armas de fogo, valendo-se disso igual ou melhor que os conquistadores.
O que ocorreu no México e no Peru é significativo. Os mais fortes foram os primeiros a serem derrotados; os mais inaptos resistiram com uma determinação proporcional à suas forças. O recurso ao fatalismo como fator explicativo não parece fora de propósito, mas como veremos, isso não explica tudo. No entanto, recordemos que a ocupação do templo de uma cidade cercada e cobiçada significava a sua derrota e o triunfo de um novo Deus. Quantos deles não aceitaram isso quando da invasão dos conquistadores sem estar militarmente derrotados!
Sabemos também que a vitória dos incas e astecas não terminava com os deuses dos vencidos, ficando esses num plano secundário em relação à divindade triunfadora. Só que para os cristãos conquistadores não significava a mesma coisa: a adoração ao seu Deus implicava em acabar com os deuses dos vencidos. Mais ainda: acabar com os cultos, templos e lugares sagrados. Eliminar tudo isso da consciência dos índios é outra coisa. Nisso, o triunfo foi bem menor, se é que em alguns casos a derrota não foi total. Apagar da consciência de milhões de indivíduos um mundo de significados e crenças que regulavam até os mínimos atos da vida cotidiana, foi infinitamente mais difícil que arrasar os objetos materiais do culto.
Temos agora uma pergunta intrigante: Por que povos menos desenvolvidos resistiram mais ferozmente aos brancos? Seguindo ainda o exemplo dos araucanos, eles nunca constituíram um império. Formavam um conjunto de tribos que mantinham entre si relações episódicas de paz e guerra, de aliança e ruptura. Talvez por isso sua religião, crenças, consideravam menos o elemento fatalista existente nas religiões dos grandes dominadores. Como não chegaram a um estágio de desenvolvimento ou situação que os levasse a sentir-se dominadores, legitimando esse sentimento mediante a intervenção de uma vontade superior, provavelmente o espaço que isso lhes deu para manifestar sua liberdade foi muito maior. Não precisaram de um Deus para, em seu nome e maior glória, lançar-se à conquista e à subordinação de outros povos. Isso determinou que seu universo religioso excluísse a guerra como algo ditado por uma vontade superior. Os homens brancos não surgiram - nem foram percebidos ou concebidos - como enviados do "além". Eram simplesmente invasores, inimigos brutais, ousados invasores.
Em poucas palavras: crenças que estavam a serviço de uma dominação - e que tendiam a expandir-se e aprofundar-se - representaram, obviamente, as formas mais adequadas para a mobilização das energias conquistadoras. Mas o mandato que elas continham seguramente resultou de um processo histórico que também os araucanos talvez haviam chegado a realizar, transformaram-se no seu contrário em virtude do elemento aguçadamente fatalista e messiânico que continham. Crenças e concepções de tribos mais isoladas deviam conter forçosamente - como condição de sobrevivência - um poderoso fator auto-defensivo.
Estas explicações são corretas? Achamos, pelo menos, que elas são plausíveis.
No entanto há outro aspecto que convém destacar e que já foi mencionado. Enquanto dominadores, incas e astecas enfrentavam a resistência silenciosa dos povos que deviam pagar-lhes tributos e que tinham que aceitar imposições ultrajantes como, talvez, aquela que se referia ao deus dos vencedores. Tanto no México como no Peru os espanhóis contaram com a eficaz colaboração de comunidades indígenas que se conservavam independentes, ou que estavam lutando de alguma maneira para livrar-se das garras de um poder alheio. Totonecas e tlaxcaltecas foram providenciais aliados de Hernán Cortéz; também a guerra fratricida no meio inca foi importante para Pizarro e sua tropa. A chegada dos brancos barbudos, com suas armaduras, montados a cavalo e manejando armas de fogo parece ter sido festejada - e ao que tudo indica, o foi no México - como uma ajuda do céu para acabar com o poder que vinha de Tecnochtitlán. E se no final, todos terminaram submetidos aos espanhóis e pagaram um preço duríssimo, é outra história. Os índios, e vamos chamá-los de dissidentes, ignoravam o que os esperava quando a conquista começa. De fato, as duas mais importantes estruturas políticas do continente demonstraram ser muito mais artificiais do que se poderia supor. Baseavam-se na força e na passividade relativa que a religião triunfante conseguia impor - nem sempre, já sabemos - aos vencidos. É bom lembrar que em ambos os casos tratava-se de estruturas políticas relativamente recentes, em processo de construção e afirmação, mais a asteca que a inca. Mas em essência, ambas débeis. A unidade do Incário e da Confederação mexicana eram superficiais, não tendo raízes sólidas e penetrantes nas sociedades. Não existia, em os ambos casos, esse fenômeno a que chamamos Nação. Tribos unificadas através da coação militar e da ideologia religiosa, não perderam contudo sua identidade tribal, caracterizada pela adotação aos seus próprios deuses, mantendo costumes diferenciados, usando idiomas ou dialetos diferentes, preservando a heterogeneidade das aptidões.
Quando a cabeça de ambos os impérios é cortada, a estrutura toda desmorona. O caráter autocrático e extraordinariamente centralizado da dominação, particularmente no Incário, devia resultar no que a história nos ensina. Funcionários, sacerdotes e militares obedeciam as ordens que vinham de cima, começando pelo magistrado supremo laico e religioso, que se prolongava para baixo através de sucessivos estratos de sacerdotes, funcionários e militares que comunicavam as determinações entre si até fazê-las chegar ao povo, as massas de camponeses. Não existia o que hoje chamamos espírito e identidade nacional. Estado e Nação são fenômenos diferentes. Na América pré-colombiana encontramos Estados e só por um abuso de linguagem alguns estudiosos falam de Nações. Geralmente a resistência dos índios é mais uma reação contra a violência dos conquistadores que defesa de uma soberania e uma identidade nacional. Não existe a noção de soberania. O que podemos aceitar é a noção de legitimidade, que será implícita. A maioria dos dominados pelos incas e astecas consideravam a dominação como ilegítima. Não que a tenham tornado explícita, como poderiam fazê-los nossos cientistas políticos atuais. Mas o repúdio sórdido ou manifesto, calado ou espetacular ao poder alheio, e o não reconhecimento deste poder era a maneira de expressar sua falta de legitimidade.
POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 83-85.
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