"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 7 de junho de 2013

A passagem para a era de alta tecnologia


As pessoas de todas as épocas tendem a afirmar que a era em que vivem é a mais dramática, instigante e difícil de toda a longa história da humanidade. A ida do homem à Lua em julho de 1969 parecia marcar um novo estágio e um novo triunfo do engenho humano. A década de 1960 foi, no todo, um período de grande otimismo; a de 1970, não. Na década de 1970 e no começo da de 1980, até mesmo nossas maiores conquistas científicas mostraram seu lado negativo. E alguns dos problemas que desde sempre afligem a humanidade recusam-se obstinadamente a desaparecer. A prevenção da guerra nuclear e a proteção do meio ambiente talvez sejam os maiores desafios já enfrentados pelo homem.

Os espantosos progressos que a ciência deu aos países tecnologicamente avançados e às pessoas que têm dinheiro suficiente parecem não ter limites. Os caríssimos programas de exploração espacial dos Estados Unidos e da União Soviética continuaram. Ambas as potências enviaram naves espaciais para os confins do universo. Em 1970, uma dramática operação de resgate ocorreu no espaço depois que a explosão de um tanque de oxigênio a bordo da nave "Apolo 13" colocou em risco a vida dos astronautas. Alguns anos depois, uma nave não-tripulada transmitiu fotos tiradas nas proximidades do planeta Saturno, revelando alguns dos segredos de seus anéis. Essas naves viajam a uma velocidade de até oitenta mil quilômetros por hora. A "Viking I" pousou em Marte em 1976 e enviou fotos que foram mostradas nos noticiários de televisão. Tantos satélites circulam em volta da Terra que as pessoas que aqui ficaram talvez logo tenham de se preocupar com a queda de "lixo espacial". Os progressos dos programas espaciais russo e norte-americano talvez tenham sido empreendidos com um outro objetivo: a guerra, que transformaria numa aterrorizante realidade a popular série cinematográfica Guerra nas Estrelas e os videogames computadorizados das casas de diversões eletrônicas.

De volta à terra firme, a revolução eletrônica, estágio mais recente da Revolução Industrial, modificou tremendamente a nossa vida, desde o modo como usamos os serviços bancários até o modo como cozinhamos nossos alimentos. Um computador que há vinte anos ocuparia praticamente todo o espaço de uma sala cabe hoje no seu bolso. Chegou a era do "computador pessoal". O conhecimento dos computadores ("alfabetização em informática") pode se tornar obrigatório para estudantes [...]. Os videogames computadorizados entraram na moda no final da década de 1970. Os aviões já são praticamente capazes de voar sozinhos. A telecomunicação instantânea e os "editores de texto" modernizaram os negócios e a educação, gerando amargas guerras econômicas entre a gigantesca IBM e suas concorrentes e entre o Japão e os Estados Unidos. Quando as pessoas pela primeira vez ouviram falar de computadores, na década de 1950, temia-se que a "era do botão" provocasse a deterioração do corpo humano por falta de atividade. Só nossos dedos se exercitariam, apertando botões. Agora, mais do que nunca, os computadores substituíram o trabalho manual em alguns campos. Robôs computadorizados quase dão realidade às antigas histórias de ficção científica, à medida que são instalados nas linhas de montagem de fábricas de automóveis em Detroit e no Japão. Poucos discordam de que os computadores contribuíram muito para tornar mais fáceis certos aspectos de nossa vida, mas os seres humanos também tiveram de pagar um preço por isso. A revolução da informática criou uma nova casta de trabalhadores de escritório formados em computação. Porém, o número de empregos na indústria diminuiu por causa do computador, o que contribuiu, em certa medida, para aumentar o desemprego em alguns setores. O computador "desumanizou" os negócios, pois reduziu o contato pessoal. Ao mesmo tempo em que aumentou muito a produtividade em certos setores, colaborou para que o poder econômico se concentrasse nas mãos de umas poucas empresas gigantes, uma vez que só as maiores têm condições de acompanhar os rápidos e dispendiosos avanços na tecnologia da computação. As que não conseguem competir acabam ficando para trás. Os progressos na eletrônica também tendem a aumentar a distância entre os países ricos e os países pobres. E certas pessoas se preocupam, não sem motivo, com o uso que o governo pode dar aos computadores - reunindo informações sobre os cidadãos com o apertar de um botão. Pode ser difícil proteger as informações computadorizadas armazenadas pelos governos, empresas, universidades e hospitais. O que acontece quando uma empresa rival ou uma potência estrangeira consegue entrar no computador de alguém? Será que as leis poderão ser reformuladas de modo que prevejam um castigo para o roubo de informações digitais, como prevê agora para o roubo de uma loja ou residência? Até hoje, o computador tem sido amigo do ser humano, mas pode também se tornar um seu inimigo se os cidadãos forem arbitrariamente sujeitos ao que um especialista chamou de "violência silenciosa" do computador.

A ciência genética progrediu de modo espantoso e permitiu que os cientistas compreendessem como nunca antes a constituição do corpo humano. Certas possibilidades são ao mesmo tempo reconfortantes e incômodas. À medida que compreendemos os genes humanos, torna-se mais possível prever quem pode herdar certas doenças dos pais ou quem vai correr mais risco de contraí-las no decorrer da vida. Ao mesmo tempo, os médicos podem determinar a constituição genética de um bebê antes de ele nascer; a descoberta do sexo do bebê e de certas deficiências mentais são só os primeiros passos. Pode ser que logo seja possível saber se um bebê será suscetível a doenças como a distrofia muscular e a hepatite. A detecção pré-natal dos defeitos genéticos fica a cada dia mais sofisticada.

Não obstante, à medida que os cientistas avançam na compreensão das origens e das características genéticas das doenças que afligem a humanidade, certas questões éticas se impõem naturalmente. Por acaso os médicos devem ter permissão para alterar certos aspectos da natureza humana? As famílias não se sentiriam tentadas a provocar o aborto de um feto que, segundo o parecer dos médicos, teria alguma probabilidade de desenvolver uma doença daqui a quarenta anos, por exemplo? Um indivíduo não poderia ter a sua proposta de emprego recusada porque um cientista determinou que a sua constituição genética acusa a possibilidade da ocorrência de uma doença no futuro? A manipulação genética já produziu um rato maior do que o normal; quais alterações não poderiam ser provocadas no próprio ser humano no futuro distante?

Outros grandes avanços da ciência e da tecnologia determinaram novas ameaças. Em 1979, um vazamento de água radioativa de uma usina nuclear situada em Three Mile Island, na Pensilvânia, ameaçou a segurança de toda a vizinhança. Por vários dias os especialistas buscaram esfriar o gerador nuclear para impedir o derretimento do núcleo do reator, cujo superaquecimento poderia espalhar materiais radioativos por centenas de quilômetros quadrados de uma região densamente povoada. Os habitantes das cidades próximas esperavam ansiosos, prontos para abandonar suas casas se o desastre ocorresse. Por sorte, os especialistas conseguiram evitar a catástrofe. Porém, esse quase-acidente suscitou novos questionamentos a respeito da segurança e da praticidade da energia atômica como alternativa ao petróleo. Alguns anos depois, os planejadores do governo começaram a tentar resolver o problema de o que fazer com as usinas nucleares depois de desativadas por obsolescência, consideração que provavelmente nem sequer foi levada em conta pelos que as construíram.

A corrida armamentista nuclear representa um perigo ainda maior para o nosso planeta, tanto mais que já não envolve apenas dois países, os Estados Unidos e a União Soviética. O Reino Unido, a França e a China certamente já são capazes de mover uma guerra nuclear, como também, provavelmente, a Índia e o Paquistão (países ferrenhamente inimigos), Israel, a África do Sul e talvez a Argentina. Todo ano, os sobreviventes das explosões atômicas de Hiroshima e Nagasaki, de 1945, se reúnem para lembrar o mundo dos inacreditáveis horrores que de novo podem acontecer. Só nos resta esperar que a humanidade tenha aprendido a lição.

Nos Estados Unidos e em outros países, o meio ambiente também sofreu na década de 1970. Descobriu-se que o lançamento de substâncias tóxicas e outros dejetos nocivos em aterros sanitários localizados em muitas cidades representava grave risco para a saúde, de tal modo que muitos bairros, até cidades inteiras, tiveram de ser evacuados. [...] A “chuva ácida” criou um atrito diplomático entre o Canadá e os Estados Unidos, pois poluentes produzidos neste país estão cruzando a fronteira e depositando-se nas terras canadenses através da chuva contaminada, matando peixes e plantas em lagos distantes. Até mesmo as viagens aéreas supersônicas suscitaram um dilema entre o avanço tecnológico e as necessidades humanas. [...]

Os franceses foram responsáveis pelo mais impressionante avanço no transporte ferroviário. Há muito tempo que o Japão tem um “trem-bala” que interliga suas maiores cidades, mas em setembro de 1981 os franceses inauguraram o TGC (“trem de grande velocidade”). O trem francês é ainda mais rápido do que o japonês e é capaz de deslocar-se com segurança a uma velocidade de até 350 quilômetros por hora. [...]

A chuva ácida, os efluentes tóxicos e a poluição sonora são problemas relativamente novos. Durante a década de 1970, a fome, que é o problema mais antigo do mundo, continuou grave como sempre foi. No final de 1974, as reservas mundiais de cereais chegaram ao nível mais baixo em vinte e seis anos. [...] Cerca de dez mil pessoas morriam a cada mês na África, na Ásia e na América Latina. [...] A chamada Revolução Verde havia aumentado a produtividade das safras agrícolas e a área de cultivo em muitas partes do mundo. Porém, nem essa boa notícia foi suficiente para atender às necessidades alimentares do planeta, em face do rápido crescimento populacional e das mudanças climáticas.

[...] Cidades como Cingapura, Cidade do México, Calcutá e Rio de Janeiro, cujos recursos já não davam conta de sua enorme população, foram tomadas de assalto por milhares de migrantes vindos da zona rural, muitos dos quais passam a viver em favelas construídas às margens da grande metrópole. [...]

[...]

O crescimento populacional, as mudanças climáticas e as limitações da Revolução Verde contribuíram para aumentar a distância entre os países ricos e os países pobres. As pessoas deixaram de se referir somente às diferenças entre “Ocidente e Oriente” e passaram a mencionar também as diferenças entre “norte e sul”, contrapondo os países do norte, mais ricos, aos seus vizinhos menos desenvolvidos do sul.

A fome quase precipitou um conflito global. [...]

[...]

Os direitos das mulheres passaram a ser mais respeitados na década de 1970, sobretudo nos Estados Unidos. Em 1972, o senado aprovou a Emenda de Igualdade de Direitos à constituição norte-americana, para pôr fim à discriminação por sexo. [...] Em 1973, a Suprema Corte legalizou o aborto nos primeiros meses de gravidez. Um número maior de mulheres passaram a trabalhar fora, também como advogadas, médicas, empresárias, executivas e professoras universitárias, muito embora as mulheres continuassem a receber menos do que os homens em muitos setores profissionais. [...] Margareth Thatcher foi a primeira mulher a ser primeira-ministra da Inglaterra, com a vitória do partido conservador nas eleições de 1979. Em 1983, Sally Ride foi a primeira astronauta norte-americana a ir para o espaço. [...] Tudo isso representou um excelente começo. Não devemos jamais nos esquecer que a história da humanidade é também a história das mulheres.

O movimento pelos direitos civis foi um dos acontecimentos mais significativos da década de 1960. Na década de 1970, os negros começaram a ser eleitos para cargos públicos, especialmente para as prefeituras de várias grandes cidades norte-americanas, como Detroit, Los Angeles e Atlanta. [...] Mas ainda havia muito a ser feito. A segregação continua em muitos sistemas escolares. [...] O futuro econômico dos jovens de raça negra permanece indefinido, pois ainda é entre eles que se constata a maior proporção de desempregados, num momento em que o governo cortou boa parte dos programas de seguridade social que ajudavam os pobres a subsistir.

Na década de 1970, os homossexuais começaram a exigir o direito a um tratamento justo. Apesar da reação conservadora, comunidades gays floresceram em muitas cidades, particularmente em Nova York e São Francisco; os gays também passaram a ser mais aceitos do que eram antes e encontraram meios de representação política.

Parada do Orgulho Gay. Nova York, 2008.
Foto: Chefe Tweed


A vida na década de 1970 e no princípio da de 1980 refletia uma combinação de mudança e continuidade. Orquestras sinfônicas, óperas e grandes exposições artísticas trazidas da Europa e alardeadas a toque de trombeta encontraram nas maiores cidades dos Estados Unidos um público interessadíssimo. Mas a televisão, o rádio, as gravações musicais em geral e os livros campeões de vendas – tudo incrementado pelo progresso tecnológico – continuaram a ser as principais fontes de entretenimento para o povo. A televisão a cabo levou muitos canais novos a um número cada vez maior de lares norte-americanos. [...] O desenvolvimento da eletrônica possibilitou que programas de televisão fossem gravados para ser vistos depois e criou o fenômeno do aluguel de filmes populares gravados em fitas cassete [...]. As emissoras de FM continuaram populares [...].

[...]

O tema da capacidade de sobrevivência do homem não é um tema novo na história da humanidade. Castigado pela crise econômica e pela deterioração do meio ambiente, vulnerável às ditaduras e ao terrorismo [...], o povo do nosso planeta é capaz de consolar-se por saber que a humanidade sobreviveu a outros perigos no passado. [...] Quanto mais difíceis forem os desafios que a humanidade terá de enfrentar no futuro, tanto mais teremos de trabalhar juntos.


VAN LOON, Hendrk Willem. A história da humanidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 565-599.

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