A quermesse de S. Jorge, Pieter Bruegel
O estudo da cultura popular e da vida cotidiana da Europa
medieval enfrenta dois problemas. Primeiro, a imagem, criada sobretudo pela
literatura e pelo cinema, de uma sociedade marcada por contrastes radicais,
quase sem intermediários: heróis ou bandidos; nobres opulentos ou servos miseráveis;
piedade religiosa ou heresias; homens dominantes ou mulheres submissas (ou
ausentes); monges enclausurados em seus mosteiros ou cavaleiros errantes; Deus
ou o diabo. Segundo, a existência de fontes, em particular escritas, quase
exclusivamente produzidas pelas elites ou para elas, as quais expressam apenas
um dos diversos grupos sociais.
Contudo, é possível montar quadros reveladores de alguns
aspectos fundamentais da vida cotidiana e da cultura do povo.
A violência física, a flagelação do corpo, parece ter sido
um dos traços marcantes e distintivos da vida na Europa medieval. Os castigos
do corpo provinham basicamente de três fontes: as doenças, a fome e a guerra.
Havia, ainda, a violência contra o espírito, representada
sobretudo pela vigilância e pela exigência do cumprimento dos preceitos
religiosos. Mas, mesmo nesses casos, impunha-se o flagelo do corpo. Os
penitentes, cheios de medo e sentimento de culpa, castigavam o corpo para aplacar
ou punir os desejos da carne, a grande fonte dos pecados e, portanto, da
condenação eterna. A tortura, praticada por todos os poderosos, era utilizada
pelos inquisidores para forçar a confissão dos pecados e, por meio do
padecimento, remir a alma dos pecadores.
A sociedade medieval tem sido definida como misógina, ou
seja, que tem aversão às mulheres. A misoginia medieval foi, principalmente,
decorrentes das concepções religiosas impostas pela Igreja católica, que criou
dois tipos ideais de mulher: a virgem, casta e pura, segundo o modelo da mãe de
Jesus; e a pecadora, segundo o modelo de Eva, que se deixou levar pela tentação
do demônio, para a perdição dos homens.
Entre esses dois modelos, qual seria o lugar da mulher real,
de carne e osso? Segundo o historiador Georges Duby:
“[...] O dever primeiro do chefe da casa era vigiar,
corrigir, matar, se preciso, sua mulher, suas irmãs, suas filhas, as viúvas e
as filhas órfãs de seus irmãos, de seus primos e de seus vassalos.
[...] O ideal [para as mulheres] era uma divisão equilibrada
entre a oração e o trabalho [...] do tecido. No quarto, fiava-se, bordava-se, e
quando os poetas do século XI fazem tentativas de dar a palavra às mulheres,
compõem canções “de fiar”. [...] Contudo, as orações e essas obras, realizadas
em equipe como o eram, [...] não livravam os homens, persuadidos da
perversidade estrutural da natureza feminina, de uma inquietação obsedante,
fantasmática: o que fazem as mulheres juntas, só entre elas, quando estão
encerradas no quarto? Evidentemente, fazem o mal”.(Georges Duby (org.). História
da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 88 e 90. v. 2)
O casamento monogâmico, imposto pela Igreja católica por
volta do ano 1000, era uma das maneiras de o homem impor sua dominação sobre a
mulher. Transformando-a em dona de casa submissa, ele controlava o medo que o
sexo feminino lhe inspirava.
A vida religiosa não livrava as mulheres da violência, nem
contra o corpo nem contra o espírito. Nem de sofrer, nem de praticar a violência.
Grande quantidade de documentos registra várias formas de violência sofrida e
praticada pelas religiosas nos conventos, muitas delas ligadas a atividades
sexuais.
Os prazeres, tanto quanto a morte, ocupavam o imaginário
popular medieval.
A rua, onde se juntavam os corpos das vítimas da peste ou da
guerra, era também o espaço das festas populares. Cantores e artistas
apresentavam espetáculos nas ruas e praças. Principalmente por ocasião das
feiras e das grandes celebrações, fossem elas promovidas pelos senhores
poderosos ou, depois do século XII, pelos reis.
Em todo mundo católico, ocorria também a grande explosão do
carnaval, que misturava antigas tradições pagãs com diferentes formas de
compreender os preceitos cristãos. O carnaval, na Idade Média, tinha seu maior esplendor
nas cidades italianas de Roma, Veneza, Florença e Turim.
A Igreja, mesmo tentando coibir os excessos, nunca se propôs
a proibir o carnaval. Talvez por entender que uma sociedade tão reprimida
precisava de uma válvula de escape...
NEVES, Joana. História Geral – A construção de um mundo
globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 201-203.
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