"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de agosto de 2013

América 3: "Como uns porcos famintos, anseiam pelo ouro"

Códice Durán

Com tiros de arcabuz, golpes de espada e hálitos de peste, acometiam os escassos e implacáveis conquistadores da América. Assim conta a voz dos vencidos. Depois da matança de Cholula, Montezuma enviou novos emissários ao encontro de Hernán Cortez, que avançava rumo ao vale do México. Os enviados presentearam os espanhóis com colares de ouro e bandeiras de penas de quetzal. Os espanhóis "se deleitaram. Como se fossem macacos, sentavam-se com gestos de prazer e levantavam o ouro, como se aquilo lhes renovasse a iluminasse o coração. É certo que desejam aquilo com grande sede. Os corpos deles se incham de uma fome furiosa por aquilo. Como uns porcos famintos, anseiam pelo ouro", diz o texto náhuatl, preservado no Códice Florentino. Adiante, quando Cortez chegou a Tenochtitlán, a esplêndida capital asteca, os espanhóis entraram na casa do tesouro e "logo fizeram uma grande bola de ouro e puseram fogo, incendiando tudo o que restava, por valioso que pudesse ser: e então tudo ardeu. Quanto ao ouro, os espanhóis o reduziram a barras (...)".

Houve guerra, e finalmente Cortez, que perdera Tecnochtitlán, reconquistou-a em 1521, "Já não tínhamos escudos, já não tínhamos bordunas, e nada tínhamos para comer, e nada comíamos." Devastada, incendiada, coberta de cadáveres, a cidade caiu. "E toda a noite choveu sobre nós." A força e o tormento não foram suficientes: os tesouros arrebatados nunca satisfaziam as exigências da imaginação, e durante longos anos os espanhóis escavaram o fundo do lago do México, em busca do ouro e dos objetos preciosos supostamente escondidos pelos índios.

Pedro de Alvarado e seus homens arremeteram contra a Guatemala e "foram tantos os índios mortos que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque", e também "o dia se tornou vermelho pela quantidade de sangue que correu naquele dia". Antes da batalha decisiva, "os índios atormentados disseram aos espanhóis que, se não os atormentassem mais, teriam ali muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas pertencentes aos capitães Nehaib Isquin e Nehaib feito águia e leão. E logo entregaram tudo aos espanhóis, que com tudo ficaram (...)".

Antes de degolar o inca Atahualpa, Francisco Pizarro arrancou um resgate de "arcas de ouro e prata que pesavam mais de 20 mil marcos de prata fina e um milhão e 326 mil escudos de ouro finíssimo (...)". Depois arremeteu contra Cuzco. Seus soldados acreditavam estar entrando na Cidade dos Césares, tão deslumbrante era a capital do império incaico, mas não demoraram a sair do estupor e começaram a saquear o Templo dp Sol: "Forcejando, lutando uns contra os outros, cada qual querendo levar do tesouro a parte do leão, os soldados, com suas cotas de malha, pisoteavam joias e imagens, golpeavam os utensílios de ouro ou lhes davam marteladas para reduzi-los a um formato menor e portável (...). Atiraram ao forno todo o tesouro do templo para converter o metal em barras: as placas que cobriam os muros, as assombrosas árvores forjadas, pássaros e outros objetos do jardim".

Hoje em dia, no Zócalo - a imensa praça desnuda no centro da capital do México -, a catedral católica se levanta sobre as ruínas do templo mais importante de Tenochtitlán, e o palácio do governo está localizado em cima da residência de Cuauhtémoc, o chefe asteca enforcado por Cortez. No Peru, Cuzco teve sorte parecida, mas os conquistadores não puderam derrubar completamente seus muros gigantescos e hoje ainda se pode ver, ao pé dos edifícios coloniais, o testemunho de pedra da colossal arquitetura incaica.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 38-39.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

América 2: "Retornavam os deuses com as armas secretas"

Códice Durán

Em sua passagem por Tenerife, durante sua primeira viagem, Colombo presenciara uma erupção vulcânica. Foi como um presságio de tudo o que viria depois nas imensas terras novas que iam interromper a rota ocidental para a Ásia. A América estava ali, adivinhada desde suas suas costas infinitas: a conquista se estendeu em vagalhões, qual maré furiosa. Os chefes militares substituíam os almirantes, e as tripulações se transformavam em hostes invasoras. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da África para a coroa de Portugal, outorgando à coroa de Castela as terras "desconhecidas como aquelas até aqui descobertas por vossos enviados e aqueloutras que se descobrirão no futuro (...)": a América tinha sido doada à rainha Isabel. Em 1508, uma nova bula concedeu à coroa espanhola, perpetuamente, todos os dízimos arrecadados na América: o cobiçado patronato universal sobre a Igreja do Novo Mundo incluía o direito real de auferir todos os benefícios eclesiásticos.

O Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494, permitiu a Portugal a ocupação de territórios americanos além da linha divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de Souza fundou as primeiras povoações portuguesas no Brasil, expulsando os franceses. Já então os espanhóis, cruzando selvas infernais e desertos infinitos, tinham avançado bastante no processo da exploração e da conquista. Em 1513, o Pacífico resplandecia aos olhos de Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à Espanha os sobreviventes da expedição de Fernão de Magalhães, que uniram pela primeira vez os dois oceanos e, ao dar uma volta completa no mundo, constataram que ele era redondo; três anos antes tinham partido de Cuba, na direção do México, as dez naus de Hernán Cortez, e em 1523 Pedro de Alvarado lançou-se à conquista da América Central; Francisco Pizarro entrou triunfalmente em Cuzco em 1533, apoderando-se do coração do império dos incas; em 1540, Pedro de Valdívia atravessava o deserto de Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores penetravam no Chaco e revelavam o Novo Mundo desde o Peru até a foz do rio mais caudaloso do planeta.

Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais, engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o ferro e o arado, o vidro e a pólvora, e tampouco empregava a roda. A civilização que se abateu sobre estas terras, vindas do outro lado do mar, vivia a explosão criadora do Renascimento: a América surgia como uma invenção a mais, incorporada junto com a pólvora, a imprensa, o papel e a bússola ao agitado nascimento da Idade Moderna. O desnível de desenvolvimento dos dois mundos explica em grande parte a relativa facilidade com que sucumbiram as civilizações nativas. Hernán Cortez desembarcou em Veracruz acompanhado de não mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, dez canhões de bronze e alguns arcabuzes, mosquetes e pistolas. No entanto, a capital dos astecas, Tenochtitlán, era então cinco vezes maior do que Madri e dobrava a população de Sevilha, a maior das cidades espanholas. Francisco Pizarro entrou em Cajamarca com 180 soldados e 37 cavalos.

Os indígenas, no começo, foram derrotados pelo assombro. O imperador Montezuma, em seu palácio, recebeu as primeiras notícias: uma montanha andava a movimentar-se no mar. Depois chegaram outros mensageiros: "(...) muito espanto lhe causou ouvir o tiro de canhão, como retumba seu estrépito e leva as pessoas a desmaiarem, com os ouvidos atordoados. Quando acontece o tiro, uma bola de pedra salta de suas entranhas: sai chovendo fogo (...)". Os estrangeiros traziam "veados" para montar e, montados, ficavam "tão no alto como os tetos". Traziam o corpo coberto, "aparecem só as caras. São brancas, como se fossem de cal. Têm o cabelo amarelo, embora alguns o tenham preto. A barba deles é grande (...)". Montezuma acreditou que era o deus Quetzalcoátl que voltava. Pouco antes, oito presságios tinham anunciado esse retorno. os caçadores lhes haviam trazido uma ave que possuía na cabeça um diadema redondo, com a forma de um espelho, que refletia o céu com o sol já no poente. Nesse espelho Montezuma viu marchar sobre o México os esquadrões de guerreiros. O deus Quetzalcoátl viera pelo leste, e pelo leste tinha ido embora: era branco e barbudo. Também branco e barbudo era Viracocha, o deus bissexual dos incas. E o leste era o berço dos antepassados heroicos dos maias.

Os deuses vingativos que agora regressavam para acertar contas com seus povos traziam armaduras e cotas de malha, reluzentes escudos que devolviam os dardos e as pedras; suas armas expediam raios mortíferos e obscureciam a atmosfera com fumaças irrespiráveis. Os conquistadores praticavam também, com habilidade política, a técnica da traição e da intriga. Souberam explorar, por exemplo, o rancor dos povos submetidos ao domínio imperial dos astecas e as divisões que fragmentavam o poder dos incas. Os tlaxcaltecas foram aliados de Cortez, e Pizarro usou em seu proveito a guerra entre os herdeiros do império incaico, os irmãos inimigos Huáscar e Atahualpa. Os conquistadores granjearam cúmplices entre as classes dominantes intermediárias, sacerdotes, funcionários, militares, uma vez abatidas, criminosamente, as chefias indígenas mais altas. Mas também usaram outras armas ou, se preferirmos, outros fatores trabalharam objetivamente para a vitória dos invasores. Os cavalos e as bactérias, por exemplo.

Os cavalos, como os camelos, eram originários da América, mas se extinguiram nestas terras. Introduzidos na Europa pelos cavaleiros árabes, tiveram no Velho Mundo imensa serventia militar e econômica. Ao reaparecerem na América, através da conquista, colaboraram para a atribuição de forças mágicas aos invasores ante os olhos atônitos dos indígenas. Segundo uma versão, o inca Atahualpa caiu de costas quando viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados em briosos cavalos ornados de guizos e penachos que corriam desencadeando tropéis e polvadeira. O cacique Tecum, à frente dos herdeiros dos maias, decapitou o cavalo de Pedro de Alvarado, convencido de que fazia parte do conquistador: Alvarado se ergueu e o matou. Escassos cavalos, cobertos de arreios de guerra, dispersaram as massas indígenas e semearam o terror e a morte. "Os padres e os missionários espalharam na fantasia vernácula", durante o processo colonizador, "que os cavalos eram de origem sagrada, já que Santiago, o padroeiro da Espanha, montando um potro branco, vencera importantes batalhas contra mouros e judeus, com a ajuda da Divina Providência".

Bactérias e vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que provocava a febre e descompunha a carne? "Lá foram se meter em Tlaxcala", narra um testemunho indígena, "então se espalhou a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam". E outro: "A muitos deu morte a pegajosa, pesada, dura doença dos grãos". Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham resistência às novas enfermidades, e os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estima que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu contaminada logo ao primeiro contato com os homens brancos.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p.34-38.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

América 1: "Os signos da cruz nas empunhaduras das espadas"

Códice Durán

Quando Cristóvão Colombo se abalançou a atravessar os grandes espaços vazios a oeste do Ecúmeno, ele aceitaria o desafio das lendas. Tempestades terríveis sacudiram suas ruas como se fossem cascas de nozes e as lançariam na boca dos monstros, e a grande serpente dos mares tenebrosos, faminta de carne humana, estaria à espreita. Faltavam só mil anos para que as chamas purificadoras do Juízo Final arrasassem o mundo, segundo acreditavam os homens do século XV, e o mundo era então o mar Mediterrâneo com seu litoral de ambígua projeção para a África e o Oriente. Os navegadores portugueses asseguravam que o vento do oeste trazia cadáveres estranhos e às vezes arrastava toras curiosamente talhadas, mas ninguém suspeitava de que sem demora o mundo seria assombrosamente multiplicado.

A América não só carecia de nome. Os noruegueses não sabiam que a tinham descoberto já fazia tempo, e o próprio Colombo morreu ainda convencido de que havia alcançado a Ásia pelas costas. Em 1492, quando a bota espanhola enterrou-a pela primeira vez nas areias das Bahamas, o almirante acreditou que essas ilhas eram as sentinelas avançadas do Japão. Colombo levava consigo um exemplar do livro de Marco Polo, coberto de anotações nas margens das páginas. Os habitantes de Cipango, dizia Marco Polo, "possuem ouro em enorme abundância, e as minas onde o encontram jamais se esgotam (...). Também há nesta ilha pérolas do mais puro brilho em grande quantidade. São rosadas, redondas, de tamanho grande, e superam em valor as pérolas brancas". A riqueza de Cipango chegara aos ouvidos do Grande Khan Kubilai, tinha despertado em seu peito o desejo de conquistá-la: ele fracassara. Das fulgurantes páginas de Marco Polo alçavam voo todos os bens da criação; havia quase treze mil ilhas no mar da Índia, com montanhas de ouro e pérolas, e doze tipos de especiarias em imensas quantidades, além das pimentas branca e preta. A pimenta, o gengibre, o cravo-da-índia, a noz-moscada e a canela eram tão cobiçadas quanto o sal para conservar a carne no inverno sem que se deteriorasse ou perdesse o sabor. Os reis católicos da Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para livrar-se da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que monopolizavam o comércio das especiarias e das plantas tropicais, das musselinas e das armas brancas que provinham de misteriosas regiões do Oriente. O anseio de metais preciosos, a moeda de pagamento no tráfico comercial, também impulsionou a travessia dos mares malditos. A Europa inteira precisava de prata; estavam já quase exauridos os filões da Boêmia, da Saxônia e do Tirol.

A Espanha vivia o tempo da reconquista. O ano de 1492 não foi apenas o ano do descobrimento da América, o novo mundo nascido daquele equívoco de grandiosas consequências. Foi também o ano da recuperação de Granada. Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que com o casamento tinham evitado o desmonte de seus domínios, no princípio de 1492 eliminaram o último reduto da religião muçulmana em solo espanhol. Custara quase oito séculos a retomada daquilo que fora perdido em sete anos, e as despesas da campanha tinham esgotado o tesouro real. Mas esta era uma guerra santa, a guerra cristã contra o Islã, e não é casual, de resto, que no mesmo ano de 1492, 150 mil judeus declarados tenham sido expulsos do país. A Espanha adquiria realidade como nação, erguendo espadas cujas empunhaduras traziam o signo da cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da América não poderia se explicar sem a tradição militar da guerra das cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para atribuir caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era valenciano, converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a terra.

Três anos depois do descobrimento, Cristóvão Colombo, pessoalmente, comandou uma campanha militar contra os indígenas da Dominicana. Um punhado de cavaleiros, 200 infantes e uns quantos cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios. Mais de 500, enviados para a Espanha, foram vendidos como escravos em Sevilha e morreram miseravelmente. No entanto, alguns teólogos protestaram, e a escravização dos índios foi formalmente proibida no século XVI. Na verdade, não foi proibida, foi abençoada: antes de cada ação militar, os capitães da conquista deviam ler para os índios, na presença de um tabelião, um extenso e retórico Requerimento que os exortava à conversão à santa fé católica: "Se não o fizerdes, ou se o fizerdes maliciosamente, como dilação, certifico-vos que, com a ajuda de Deus, agirei poderosamente contra vós e vos farei guerra da maneira que puder em todos os lugares, submetendo-vos ao jugo e à obediência da Igreja e de Sua Majestade, e tomarei vossas mulheres e vossos filhos e vos farei escravos e como tais sereis vendidos, dispondo de vós como Sua Majestade ordenar, e tomarei vossos bens e farei contra vós todos os males e danos que puder (...)".

A América era um vasto império do Diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo. Bernal Díaz del Castillo, soldado de Hernán Cortez, escreve que eles chegaram à América "para servir a Deus e a Sua Majestade, e também por haver riquezas".

Ao alcançar o atol de San Salvador, Colombo deslumbrou-se com a colorida transparência do Caribe, a verdejante paisagem, a doçura e a limpeza do ar, os pássaros esplêndidos e os jovens "de boa estatura, gente mui formosa" e "muito mansa" que ali habitava. Presenteou os indígenas com "alguns gorros vermelhos e umas contas de vidro que eles colocavam no pescoço, e muitas outras coisas de pouco valor com as quais ficaram contentes e tão nossos que era uma maravilha". Mostrou-lhes as espadas. Não as conheciam, seguravam-nas pelo fio e se cortavam. Entrementes, conta o almirante em seu diário de bordo, "eu estava atento e trabalhava para saber se havia ouro, e vendo que alguns deles traziam um pedacinho enfiado no buraco que tinham no nariz, por gestos pude me informar que, indo para o sul ou contornando a ilha pelo sul, encontraria um rei que possuía grandes vasos daquilo, e em grande quantidade". Porque "do ouro se faz tesouro, e quem o tem faz o que quiser do mundo e até leva as almas para o Paraíso". Em sua terceira viagem, ao abordar a costa da Venezuela, Colombo ainda supunha que andava no mar da China; isto não o impediu de informar que dali se estendia uma terra infinita que subia até o Paraíso Terrestre. Também Américo Vespúcio, explorador do litoral do Brasil na alvorada do século XVI, relataria a Lorenzo de Médicis: "As árvores são de tanta beleza e tanta brandura que nos sentíamos como se estivéssemos no Paraíso Terrestre (...)". Com pesar, Colombo escrevia aos reis em 1503, da Jamaica: "Quando descobri as Índias, disse que eram o maior domínio rico que há no mundo. Disse do ouro, pérolas, pedras preciosas, especiarias (...)".

Na Idade Média, uma bolsa de pimenta valia mais do que a vida de um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento usava para abrir as portas do Paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na Terra. A epopeia de espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saque das riquezas indígenas. O poder europeu se irradiava para abraçar o mundo. As terras virgens, densas de selvas e perigos, instigavam a cobiça de capitães, cavaleiros fidalgos e soldados em farrapos, que se lançavam à conquista de espetaculares butins de guerra: acreditavam na glória, "o sol dos mortos", e na audácia. "Os ousados a fortuna ajuda", dizia Cortez. O próprio Cortez havia hipotecado todos os seus bens pessoais para equipar a expedição do México. Salvo raras exceções, como foi o caso de Colombo e Magalhães, as aventuras não eram custeadas pelo Estado, mas pelos próprios conquistadores ou por mercadores e banqueiros que os financiavam.

Nasceu o mito do Eldorado, o rei banhado em ouro que os indígenas inventaram para afastar os intrusos: de Gonzalo Pizarro a Walter Raleight, muitos o perseguiram em vão nas florestas e nas águas do Amazonas e do Orinoco. A quimera do "monte que manava prata" se tornou realidade em 1545, com o descobrimento de Potosí, mas antes já haviam morrido, vencido pela fome, pelas doenças ou atravessados por flechas indígenas, muitos dos expedicionários que, subindo o rio Paraná, tentaram infrutiferamente alcançar o manancial de prata.

Havia, sim, ouro e prata em grande quantidade, acumulados na meseta do México e no altiplano andino. Hernán Cortez revelou para a Espanha, em 1519, a fabulosa magnitude do tesouro asteca de Montezuma, e depois chegou a Sevilha o gigantesco resgate, um aposento cheio de ouro e prata, que Francisco Pizarro fez o inca Atahualpa pagar antes de degolá-lo. Anos antes, com o ouro arrebatado às Antilhas, a Coroa já havia pago os serviços dos marinheiros que acompanharam Colombo em sua primeira viagem. Finalmente, a população das ilhas do Caribe deixou de pagar tributos, pois desapareceu: os indígenas foram completamente exterminados nas lavagens do ouro, na terrível tarefa de revolver as areias auríferas com a metade do corpo debaixo d'água, ou lavrando os campos até a exaustão, com as costas dobradas sobre pesados instrumentos de arar trazidos da Espanha. Muitos indígenas da Dominicana se antecipavam ao destino imposto por seus novos opressores brancos: matavam seus filhos e se suicidavam em massa. O cronista oficial Fernandez de Oviedo assim interpretava, em meados do século XVI, o holocausto dos antilhanos: "Muitos deles se matavam com veneno para não trabalhar, e outros se enforcavam com as próprias mãos".

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 29-34.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O Código de Hamurábi

“O Código de Hamurábi é um dos mais antigos documentos jurídicos conhecidos. Baseado em antigas leis sumerianas (Código de Dungi), compunha-se de 282 artigos, 33 dos quais se perderam devido à deterioração da coluna de pedra (basalto) onde estavam inscritos, em caracteres cuneifórmicos. A parte superior apresenta um baixo-relevo, que mostra o deus Sol – Chamash – protetor da justiça, entregando as tábuas da lei a Humarábi.” (AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades feudais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 173.)

Alguns nomes ficam na História por mérito. Outros, nem tanto. Um faraozinho insignificante, cuja tumba não foi saqueada por ladrões, acaba recebendo homenagens em todos os museus importantes do mundo, tendo sua biografia conhecida e feitos divulgados; enquanto outro, que não teve a mesma sorte, figura apenas como um nome numa lista dinástica.

Nós, historiadores, ficamos sem saber sobre a importância a ser dada a essas personagens. Maravilhados e envolvidos pela documentação revelada, começamos por transformar “nosso” rei em um grande herói, ou sábio, ou conquistador, acreditando demais no autopanegírico que ele faz. Depois, passamos por um período de profundo ceticismo quando verificamos que ele afirmou ter conquistado uma região que não conquistou ou levantado um templo que já estava pronto. Qual governantes de hoje, especialistas em reinaugurar obras já inauguradas ou ainda em construção, os reis antigos mentiam em sinais cuneiformes ou hieroglíficos.

Com Hamurábi aconteceu o mesmo fenômeno, de superstimação seguido de subestimação de sua obra e de seu reinado; ou melhor, de seu código.

De início, imaginou-se estar diante de um grande legislador, autor de uma série de leis básicas para o mundo civilizado, novas e até revolucionárias. Seu código, a partir do momento de sua divulgação, há 38 séculos, vem merecendo sucessivas reedições em todas as línguas.

Depois, verificou-se que Hamurábi não criara novas leis e que seu código não era propriamente inovador, tendo em vista que revelava apenas práticas sociais comuns, encontradas em documentos de outros povos da região. E passou-se a minimizar sua importância.

Hoje, podemos ter uma visão mais equilibrada do assunto. Hamurábi, grande chefe militar do século XVIII a.C., teve a preocupação, após efetuar importantes conquistas militares, de unificar a legislação.

O resultado foi dos melhores, já que o Código não é apenas um modelo de jurisprudência, mas de língua babilônica. Não é, no entanto, um projeto de mudanças sociais. Muito pelo contrário, legisla a partir do reconhecimento da existência de três classes distintas: os ricos, o povo e os escravos. Os primeiros com mãos privilégios e obrigações (pelo menos em teoria); os ricos pagavam mais impostos, mas um delito contra eles seria, reconhecidamente, punido de forma mais severa; os escravos, que tinham direitos delimitados em lei (não eram apenas um objeto, como diria Aristóteles, na Grécia), podiam casar-se com uma mulher livre e possuir bens, mas eram marcados como gado, já que não deixavam de ser propriedade de alguém.

A mulher tinha grande independência com relação ao marido, administrando o dote que recebia do pai quando do casamento, podendo assumir cargos públicos e demandar em juízo. O marido tinha o direito de castigá-la em caso de infidelidade e de tomar uma esposa secundária (concubina), a qual, contudo, não teria os mesmos direitos da primeira. Os filhos varões herdavam a fortuna do pai, que deixava sempre um dote para a filha.

As terras e demais propriedades podiam pertencer ao Estado, ao templo ou a particulares. Todos deveriam permitir a passagem dos dutos de água pelas suas propriedades, assim como zelar pela manutenção dos canais, mas fora isso os particulares tinham liberdade formal para dispor de seus bens.

As terras reais eram cultivadas mediante um complexo sistema de posse/propriedade, que incluía desde rendeiros (que pagavam um aluguel pelos lotes) e colonos (que pagavam em espécie) até homens de corvéia (que não tinham título regular) e funcionários públicos (que em troca ofereciam seus serviços ao rei). Há os que encontrem identificação entre o que ocorria na Mesopotâmia e o sistema feudal; trata-se, porém, de uma opção fácil, mas leviana, de identificar o que não é escravista, capitalista ou socialista como feudal. Basta ler um pouco sobre feudalismo e fazer uma ligeira apreciação dos documentos babilônicos para ver que se trata de formações sociais muito diferentes.

A importância dada ao comércio pode ser avaliada pelo papel do tamkarum, misto de mercador, atacadista, usuário e funcionário do governo. Auxiliava na arrecadação de taxas, comprava em nome do rei e emprestava dinheiro para os agricultores. As taxas deviam ser escorchantes, muitas vezes difíceis de serem pagas, pois encontramos várias vezes documentos em que o rei decretava a abolição das dívidas dos súditos para tranqüilizar a população e permitir a continuidade do trabalho produtivo. Não se tratava de generosidade, mas de não se matar a galinha dos ovos de ouro. Hamurábi, em seu código, intervém de forma enérgica na economia, estabelecendo regras de trabalho, valores para aluguéis e arrendamento de terras e animais, salários e normas de comércio.

“ – Se um homem se apresenta como testemunha de acusação e não prova o que disse, se o processo é uma causa de vida ou de morte, este homem é passível de morte.
- Se um homem roubou o tesouro do deus ou do palácio, este homem é passível de morte e aquele que recebeu o objeto roubado também é passível de morte.
- Se um homem furar o olho de um homem livre, furar-se-lhe-á um olho.
- Se ele furar o olho de um escravo alheio ou quebra um membro ao escravo alheio, deverá pagar a metade do seu preço.
- Se um arquiteto constrói uma casa para alguém, porém não a faz sólida, resultando daí que a casa venha a ruir e matar o proprietário, este arquiteto é passível de morte.
- Se, ao desmoronar ele mata o filho do proprietário, matar-se-á o filho deste arquiteto.”
(Artigos do Código de Hamurábi citados In: GOTHIER, L.; TROUX, A. L’ Antiquité. Bélgica: H. Dessain, s/d. p. 48-50.)

Não se trata, contudo, de um Estado consolidado, organizado para durar muito, como o Egito. Sua estrutura administrativa sustentava apenas um poder regional, mesmo assim com freqüência questionado pelos vizinhos. Colocando de uma outra forma, há estados mesopotâmicos e não um Estado mesopotâmico, definitivamente implantado e solidamente unificado.

Em outros aspectos, contudo, a unificação existia. As línguas semíticas, não apresentam muita variação; a cultura é semelhante, a atividade econômica praticamente igual: agricultores nos campos, artesãos e comerciantes nas cidades.

Há, pois, aquilo que podemos chamar de civilização mesopotâmica, mesmo que desacompanhada de um Estado unificado. Civilização cuja influência iria marcar a região e a História por muitos e muitos séculos.


PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2010. p. 80-82 e 84-85. (Repensando a história)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O mundo dos gregos 4: a cultura das cidades gregas em torno do Mediterrâneo

Eros e um jovem. Ca. 460-450 a.C., Penthesilea. 
Foto: Marie-Lan Nguyen

Um dos motivos para as extraordinárias realizações dessa civilização foi o que podemos chamar, sem fugir à verdade, de desarraigamento. Esses gregos eram recém-chegados em suas novas pátrias. Comparados com os egípcios ou os chineses, eles carregavam muito menos bagagem cultural trazida do passado. Eles honravam seus ancestrais, e tinham seus heróis antigos, mas não se inibiam em fazer e avaliar o que não havia sido feito ou avaliado antes. E nenhuma conspiração de reis-deuses e sacerdotes para lhes dizer o que deveriam pensar. Tinham seus deuses - uma miríade deles -, mas estes devotavam tanto tempo à perseguição de seus casos amorosos ilícitos que dificilmente faziam o tipo capaz de intimidar cidadãos livre-pensadores.

Apolo. Ca. 460 a.C.
Foto: Fingalo

Em uma onda de criatividade que durou trezentos anos, entre 500 a.C. e 200 a.C., essas cidades gregas em torno do Mediterrâneo criaram obras-primas nas artes, na arquitetura e na literatura que até hoje nos deixam sem fôlego. Elas produziram inúmeros gênios - entre eles Arquimedes, Aristóteles, Pitágoras - cujos trabalhos em mecânica, matemática, astronomia e história natural lançaram as bases para as ciências modernas. E inventaram uma abordagem do argumento lógico e da inquirição filosófica que se tornaria tão dominante que a maioria de nós nem sequer tem consciência de que ela foi inventada, e acha que é apenas o modo normal de pensar sobre as coisas.

Julgamento de Paris. Ca. 465-460 a.C.,  Penthesilea. 
Foto: Marie-Lan Nguyen

Como seria de se esperar, foi na mais populosa dessas cidades-Estado - Atenas - que a luz da civilização brilhou com mais força. E foi lá que um experimento notável em vivência comunitária - a prática da democracia - efetivou-se pela primeira vez. Em 507 a.C., o chefe dos magistrados, Clístenes, decidido a limitar a influência das famílias nobres na condução da gestão pública, "firmou uma parceria com o povo". Os direitos e deveres públicos dali por diante não se baseavam mais na família ou no clã, mas na participação em uma deme, ou municipalidade, que mantinha o próprio registro de cidadãos; e elegia não só seus representantes, mas também uma proporção do conselho de quinhentos membros, que supervisionava os negócios da polis. Todo cidadão (ou seja, todo homem adulto e livre) tinha ainda o direito de comparecer - e votar - à assembleia, que se reunia na própria cidade.

[...]

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro, 2011. p. 92-93.

domingo, 25 de agosto de 2013

O mundo dos gregos 3: os pequenos Estados gregos

Cena de sacrifício. Cratera, ca. 430 a.C. – 420 a.C., Atenas. Artista desconhecido. 
Foto: Marie-Lan Nguyen

O crescimento e a sobrevivência dessa série de pequenos Estados foram muito ajudados por um golpe de sorte da história. Na época em que os gregos estavam criando suas tradições e combatendo em suas guerras, não havia nenhuma grande potência no leste do Mediterrâneo capaz de tirar vantagem de suas fraquezas e submetê-los à servidão. Os minoicos haviam saído de cena. O Egito se preocupava com as ameaças às próprias fronteiras, e não tinha energia para se aventurar pelo Mediterrâneo. O outrora poderoso reino hitita, na Anatólia, entrara em colapso. A Pérsia, uma potência que mais tarde constituiria uma ameaça à sobrevivência grega, estava muito longe e ainda demoraria um bom tempo antes de se tornar o grande império que conhecemos. O vácuo de poder assim criado não só protegia essa série de pequenos Estados da interferência externa como também abriu ricas oportunidades para o comércio e a colonização.

"Pequenos Estados" é uma descrição precisa do que eram essas comunidades. Em 400 a.C., quando essa vivência em civilização estava prestes a ingressar em seu período mais brilhante, apenas três delas tinham mais do que 20 mil cidadãos. Eram as cidades de Atenas - a mais populosa do continente grego -, Siracusa e Acragas, dois povoamentos na ilha da Sicília que haviam sido fundados por gregos do continente centenas de anos antes.

"Cidadão", nesse contexto, não tem o mesmo significado atual. Um cidadão era alguém que tinha o direito de participar das discussões públicas sobre os assuntos comunitários e de registrar seu voto em tais questões. Acima de tudo, o cidadão era do sexo masculino. No que diz respeito a opinar, votar ou até estar presente nas assembléias públicas, mulheres eram não pessoas: elas ficavam em um limbo político, com os estrangeiros residentes, crianças e escravos. Os cerca de 60 mil cidadãos autorizados a participar da discussão dos assuntos referentes à gestão pública na Atenas de 400 a.C. eram a porção politicamente visível de uma população de meio milhão. Escravos e estrangeiros residentes os superavam em quantidade numa proporção de quatro para um.

Tendemos a acreditar que uma série de pequenas comunidades, muitas delas ocupando vales estreitos, sem fácil comunicação com o restante do território, devia necessariamente ter sido pobre em termos materiais, mas isso significaria subestimar a importância do mar às suas portas. Cadeias de ilhas tornam a navegação propícia, e centenas de povoamentos gregos pontilhavam as costas, não apenas no próprio continente grego, mas também na Ásia Menor e no Mar Negro. Todo o leste do Mediterrâneo constituía uma enorme praça de mercado, e esses povoamentos gregos, junto com as cidades dos fenícios e a grande cidade de Alexandria, na foz do Nilo, eram suas barracas de produtos.

Em nenhum outro lugar houve algo remotamente parecido. Centenas de navios singrando o oceano de um lado para o outro. As cidades-Estado gregas, parecendo tão insignificantes como entidades individuais, usufruíam do melhor de dois mundos: a atmosfera de liberdade da cidade e os benefícios de uma world wide web de comércio e aprendizado. Elas controlavam os próprios negócios, livres da burocracia imperial, e contudo podiam usufruir de uma vasta rede comercial. Essa situação proporcionou o surgimento de uma civilização única, mais brilhante do que qualquer outra que a antecedeu e tão fantástica quanto qualquer outra que viesse depois.

Próximo post: O mundo dos gregos 4: a cultura das cidades gregas em torno do Mediterrâneo

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução á 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 91-92.

sábado, 24 de agosto de 2013

O mundo dos gregos 2: os épicos homéricos e os Jogos Olímpicos

Talvez não tenha havido de fato um poeta chamado Homero, mas, mesmo que tenha existido, os dois magníficos poemas atribuídos a ele - a Ilíada e a Odisseia - são claramente obra de mais de um homem. Os acontecimentos míticos ou semimíticos aos quais se referem - o sítio de Troia e a jornada de volta para casa empenhada por Ulisses - estão situados no fim da Idade do Bronze, e as crianças gregas os vinham escutando sentadas no joelho de suas mães por séculos antes que chegassem à forma escrita pela primeira vez.


Atletas, ca. 470 a.C.
Foto: Marie-Lan Nguyen

Os Jogos Olímpicos eram o evento mais importante de uma série de festivais atléticos similares, em que jovens competiam pela glória de suas poleis. Eles aconteciam em Olympia, um abastado centro religioso perto da costa oeste do Peloponeso, a grande península que forma a parte meridional do território grego. Esse festival adquiriu proporções tão grandes na percepção dos gregos que se tornou a base de seu cálculo de tempo. No calendário grego, os anos eram contados a partir da suposta data dos primeiros jogos a terem sido realizados, fixada em 776 a.C. Os intervalos de quatro anos entre jogos sucessivos eram referidos como Primeira Olimpíada, Segunda Olimpíada e assim por diante. No início, a competição ocorreu em um dia e envolveu apenas um evento, uma corrida de 180 metros. Ao longo dos três ou quatro séculos seguintes a programação foi ampliada para incluir salto, arremesso, luta e corrida de carros, até acabar durando um total de cinco dias. Os vencedores recebiam apenas uma coroa feita de ramos de oliveira como prêmio, mas a fama que conquistavam, nas próprias cidades e por todo o mundo falante de grego, é evocativa da veneração heroica que em nossa época dedicamos a Pelé ou Maradona. Como seria de se esperar, com tanta coisa em jogo, o profissionalismo logo passou a dar o ar de sua graça. Como os clubes de futebol nos dias atuais, algumas das poleis passariam mais tarde a recrutar atletas profissionais de lugares distantes.

Próximo post: O mundo dos gregos 3: os pequenos Estados gregos

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 90.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O mundo dos gregos 1: a tecnologia do ferro

Capacete corintiano em bronze. Século VII-VI a.C. 
Foto: David Liam Moran

A invenção do bronze exerceu um efeito drástico na escala e no estilo da guerra e deu início a um período de mil anos de sublevações, à medida que Estados lutavam contra outros e impérios se sucediam. Por volta de 1200 a.C., outro metal - o ferro - surgiu em cena, e o negócio da guerra foi transformado mais uma vez.

[...]

Esse novo metal, mais barato e abundante que o bronze, revolucionou as artes da paz e da guerra. A partir de mais ou menos 1200 a.C., ferreiros itinerantes andavam em todas as direções, fabricando foices e relhas de arado para fazendeiros e espadas e lanças para soldados. As relhas de ferro tornavam a lavoura mais fácil e rápida e possibilitaram o cultivo de terras que até então eram consideradas difíceis de ser trabalhadas.


Foice de ferro. 
Foto Giovanni Dall’ Orto

As novas espadas trouxeram consequências ainda mais significativas. Os primeiros a tirar vantagem dela foram os pastores nômades das estepes, que habitavam as terras onde o ferro foi obtido pela primeira vez. Mas eles não eram os únicos a se beneficiar das novas armas. Em países mais ao sul, a Idade do Bronze fora a era do auriga aristocrático, Agora, com a introdução da espada, da lança e do escudo, todos de ferro e economicamente acessíveis, a balança da vantagem pendeu decisivamente em favor  dos bem treinados soldados a pé.

Capacete de hoplita

Um grupo que abraçou entusiasticamente a nova tecnologia de guerra foram os povos falantes do grego que viviam em torno do Egeu. Sua origem está envolta em mistério, mas ao que parece eles partiram para a Grécia vindos do norte em uma série de migrações entre 2000 a.C. e 1500 a,C. Por volta de 800 a.C., com suas espadas de ferro e táticas militares superiores, haviam conquistado a totalidade do continente grego e ocupado grande parte da costa da Ásia Menor.

Se esses invasores algum dia tiveram um sistema de escrita próprio, aparentemente o perderam durante o período conhecido como "Idade das Trevas grega". Não foi senão quando desenvolveram sua própria versão do alfabeto fenício, por volta de 800 a.C., que começaram a deixar registros escritos a partir dos quais sua história posterior pode ser fragmentariamente reunida. De acordo com esses registros, podemos identificar muitas características que parecem ser fundamentalmente gregas. O mais notável delas era uma autoconsciência feroz e orgulhosa. isso ocorreu em grande parte devido à situação física em que viviam. O ambiente comum eram pequenos territórios formados por uma vila e seu interior agrícola, em um vale estreito que desembocava no mar, separados dos vizinhos por cadeias montanhosas. Tal situação encorajou a tendência ao separatismo, que foi corporificada na palavra - polis - utilizada por eles para descrever as comunidades de que faziam parte. Polis (plural poleis) é normalmente traduzido como "cidade-Estado", mas a tradução perde a essência do que a palavra grega realmente queria dizer. Para seus cidadãos, a polis não era apenas a vila e seus arredores. Era o corpo de cidadãos que decidiam coletivamente como suas comunidades deviam ser governadas. Durante a Idade das Trevas, as poleis parecem ter sido governadas por reis. Mas por volta de 800 a.C., a maioria era governada por pequenos grupos de proprietários de terras, contando com a aquiescência dos cidadãos.

O belicoso orgulho cívico desses cidadãos era uma prova de que jamais haveria um Estado grego unitário. Isso também criava uma disposição de espírito em que uma polis estava pronta para lutar com outra a qualquer momento, visando salvaguardar sua independência. Mas a despeito de seu sentimento altamente desenvolvido de separatismo, e sua predisposição a guerrear umas com as outras, essas comunidades estavam unidas em sua consciência de serem gregas, embora essa não fosse a palavra que usavam para si mesmas. "Gregos" foi o nome que os romanos lhes deram mais tarde. Eles chamavam a si mesmos de helenos. E traçavam uma linha clara entre helenos e não helenos. Chamavam estes de "bárbaros", uma imitação dos sons de "bar, bar" feitos pelos povos que não falavam sua língua. Seu senso de uma herança comum foi reforçado por dois elementos de sua cultura que datavam ambos do século oitavo a.C.: os épicos homéricos e os Jogos Olímpicos.

Próximo post: O mundo dos gregos 2: os épicos homéricos e os Jogos Olímpicos

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 87-90.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O Islã no século XX (Parte IV)

O terrorismo internacional

Símbolo do Islã, Produtor 

O terrorismo internacional aumentava e cada ação bem-sucedida parecia inspirar outra. Era a arma preferida dos que estavam em desvantagem militarmente. Os terroristas se aproveitavam da sensação de contentamento e segurança em países poderosos e prósperos, onde, às vezes, instituições liberais davam cobertura a suas ações. A mídia involuntariamente se tornou aliada dos terroristas ao dar-lhes a publicidade que pediam: sem propaganda maciça, o terror não consegue espalhar-se rapidamente.

No final da década de 1940, o terrorismo havia sido usado de modo dramático pelos extremistas judeus em sua luta pelo controle da Palestina. Duas décadas mais tardem eram os extremistas palestinos que começavam a organizar ações terroristas. Em 22 de julho de 1968, em Roma, três palestinos armados subiram a bordo de um avião comercial israelense. No meio do trajeto para Telavive, ameaçaram explodir a aeronave. Cerca de 110 episódios parecidos aconteceram nos vinte anos seguintes, dos quais metade foi iniciada por palestinos, e um quarto, por iranianos e siques. Outra tática, a de esconder bombas nas bagagens dos passageiros, causou a queda de pelo menos 15 aviões.

Professores e pregadores muçulmanos militantes faziam o recrutamento dos terroristas. Na década de 1980, os escolhidos foram para o Afeganistão com a tarefa de ajudar na expulsão dos invasores soviéticos ateus. Quando a guerra do Afeganistão acabou, o ódio foi direcionado contra os norte-americanos cristãos, apoiadores de Israel e disseminadores de uma cultura materialista que seduzia os jovens muçulmanos.

Um desses recrutas era Osama Bin Laden, cidadão da Arábia Saudita - até seu passaporte ser confiscado. Uma das 57 crianças de uma rica família saudita que se ocupava do próspero negócio da construção civil, ele se ressentia dos elos entre seu país e os Estados Unidos. Adversário religioso da família real, considerava seus membros insuficientemente austeros, portanto desqualificados para a tarefa de portar as chaves de Meca. Foi um membro ativo no combate contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Residiu por cinco anos no Sudão, outra nação propagadora da fé islâmica, antes de retornar, em 1996, ao Afeganistão, então nas mãos do Talibã. Lá, ajudou no ensino de jovens muçulmanos, tanto nativos quanto estrangeiros, em questões religiosas e nas práticas terroristas. Bin Laden combinava audácia e inventividade. Suas unidades terroristas foram vitoriosas no final da década de 1990, matando 19 soldados norte-americanos na Arábia Saudita, bombardeando duas embaixadas dos Estados Unidos na África Oriental  (cuasando 260 mortes) e matando marinheiros a bordo do navio de guerra USS Cole, próximo ao Iêmen.

Na manhã de 11 de setembro de 2001, 19 passageiros incomuns se preparavam para embarcar em vários voos domésticos prestes a partir da costa leste dos Estados Unidos. Eram todos homens, e nenhum deles pareceria deslocado se estivesse no Oriente Médio. Quase todos tinham passagens de primeira classe ou de classe executiva, o que possivelmente os ajudaria quando fossem interrogados ou revistados por guardas e outros funcionários nos aeroportos de Boston, Washington e Newark. Um deles, ao ser abordado, quase não tinha noção do que lhe perguntavam, tão pequeno era seu conhecimento do inglês. Embora se comportasse de modo estranho e não possuísse as identificações adequadas, acabou obtendo permissão para juntar-se aos outros passageiros.

Os quatro aviões iriam voar até a Califórnia e por isso tinham o tanque cheio. O último decolou às 8h42, quase quarenta e cinco minutos depois do primeiro. Logo no início de cada voo, os 19 passageiros deixaram seus assentos e rapidamente começaram a fazer o que haviam planejado. Apunhalando os golpeando qualquer membro da tripulação que tentasse impedi-los, invadiram as cabines dos aviões e aqueles que tinham experiência em pilotar tomaram os controles à força. Seus colegas mais fortes, com a ajuda de sprays de pimenta e outras substâncias irritantes, mantiveram os passageiros afastados da parte frontal do avião. Todas as ações, planejadas nos mínimos detalhes, foram executadas com inteligência e determinação.

Um dos aviões que tinha saído de Boston, ao aproximar-se do centro de Nova York, rumou na direção das torres gêmeas do World Trade Center e despedaçou os pavimentos superiores da torre norte, provocando um incêndio. Todos os que estavam a bordo morreram. O acontecimento foi tão surpreendente que as primeiras notícias foram confusas ou atenuadas. Na Flórida, o presidente George W. Bush estava prestes a fazer uma visita a uma escola de ensino fundamental, quando recebeu uma mensagem dizendo que o arranha-céu havia sido atingido. Essa primeira informação identificava equivocadamente o avião como um pequeno bimotor.

Em Nova York, as equipes jornalísticas fotografavam a torre de 110 andares em chamas, quando, às 9h03, filmaram um avião atingindo a segunda torre. Este também havia sido sequestrado logo após a partida de Boston. As notícias foram transmitidas ao presidente, que então se encontrava em uma sala de aula lendo histórias para as crianças. Ele rapidamente se pôs a caminho do aeroporto, onde um voo de emergência esperava para levá-lo a Washington. A capital também corria perigo - era alvo de um avião que havia decolado de lá e mudado de direção. Às 9h37, essa terceira aeronave, após sobrevoar os arredores da Casa branca, colidiu contra o Pentágono.

Um quarto avião continuava a caminho de Washington, seguindo uma rota indireta. Seu alvo podia ser a Casa Branca ou o Capitólio. Um grupo de passageiros decidiu corajosamente invadir a cabine do piloto e tomar o controle, mas seu contra-ataque fez o piloto invasor perder o comando ou agir precipitadamente. O avião girou e mergulhou na direção de um campo desabitado na Pensilvânia.

Em menos de uma hora, três aviões haviam atingido edificações simbólicas em Washington e Nova York. O combustível agiu como explosivo e destruição causada pelo fogo foi imensa. Na torre norte do World Trade Center, centenas de pessoas acima do 92º andar morreram instantaneamente e outras centenas ficaram encurraladas, pois tanto os elevadores quanto as escadas estavam bloqueados. O edifício ficou em chamas em vários andares e a fumaça negra subia vagarosamente. A torre sul, a segunda a ser atingida, desmoronou às 9h59, matando todos os civis e as equipes de resgate no interior do prédio, além de pessoas nas ruas. A torre norte, tomada cada vez mais pelas chamas, resistiu por mais meia hora e também desabou. Durante um longo período, a quantidade de baixas pôde ser apenas presumida, até que finalmente se chegou ao número de 2.973 mortes.

Os 19 assassinos, que estavam entre os mortos, eram originários do Oriente Médio, principalmente da Arábia Saudita, antiga aliada dos Estados Unidos. Acreditavam ser servos do Islã. A nação que atacaram fora rotulada por seu líder como "a cabeça da serpente". Depois desse episódio, a serpente ficou mais agitada do que nunca.

Na história moderna, nenhuma grande nação havia sido atingida de modo tão devastador no próprio território durante um período de relativa paz. Os Estados Unidos nunca haviam perdido tantas vidas num ataque em solo norte-americano. O aspecto completamente teatral do episódio fez a conquista da Lua parecer um acontecimento quase sem importância. O fato de a investida contra a segunda torre ter sido vista ao vivo pela televisão em lugares tão distantes quanto a Suécia e a Nova Zelândia tornou o acontecimento ainda mais chocante e espantoso.

No mesmo ano, os militantes empreenderam outro ataque, contra um inimigo asiático inerte e envelhecido. Fora dos limites da pequena cidade de Bamiyan, a oeste de Cabul, a capital do Afeganistão, situava-se uma escarpa íngreme onde duas enormes estátuas haviam sido esculpidas, ao longo de muitos anos, em rocha maciça. Eram imagens de Buda, impressionantemente grandes - uma delas tinha a altura de um prédio de 15 andares. Situadas em uma velha rota comercial que cruzava a cordilheira de Hindukush e ligava a Índia à Ásia Central, as imagens serviam de conforto e inspiração, século após século, a uma interminável procissão de viajantes, muito tempo após a região ter sido ocupada pelos muçulmanos. Em 2001, membros do Talibã decidiram que as estátuas eram um sacrilégio, um insulto ao Islã, e destruíram suas faces e outras partes com canhões e foguetes.

No mesmo ano, os Budas gêmeos de uma estrada antiga e as torres gêmeas na capital financeira do mundo foram alvo da destruição empreendida pelas ações violentas daqueles que desejavam redenção. Mas só o que ofereciam, ao buscarem tal redenção, era ódio e violência.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 298-303.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O Islã no século XX (Parte III)

Fervor e petróleo no deserto


Símbolo do Islã, Produtor 

Na Arábia, a família Saud era, havia muito tempo, a protetora do wahhabismo, um credo islâmico puritano. Quem revigorou a fortuna da família no século XX foi o rei Ibn Saud, que na prática fundou a nova Arábia Saudita. Ele era um dos homens mais altos do reino, além de um guerreiro habilidoso. Andava de maneira lenta e digna e suas palavras prendiam a atenção. De acordo com uma interpretação liberal do Alcorão, mantinha quatro esposas, quatro concubinas favoritas e quatro "escravas prediletas". Havia um tipo de escravidão que persistia, com a concordância de Ibnm e um escravo chegou a tornar-se ministro da Fazenda durante seu reinado. A disciplina e o fervor religioso, de acordo com os preceitos do wahhabismo, também tinham a bênção do rei.

A Arábia Saudita, com sua grande extensão de areia em várias tonalidades, não teve valor econômico durante muito tempo. Após a descoberta do petróleo em 1938, a riqueza da nação aumentou, primeiro lentamente, e depois com rapidez. O fato de o país possuir as maiores reservas mundiais do recurso fez crescerem as tentações humanas contra as quais o ramo wahhabi do Islã diligentemente alertava. Mesmo envelhecido, o rei tentou deter o fluxo de licenciosidade que vinha do Ocidente. Até 1951, o futebol esteve banido e os estrangeiros que moravam no país eram proibidos de comprar bebidas alcoólicas.

De todas as nações árabes, a Arábia Saudita era a única aliada tradicional de Washington. Os dois países trabalhavam harmoniosamente, um fornecendo o petróleo, e o outro, proteção militar. Os Estados Unidos produziam cada vez menos o petróleo que consumiam e dependiam cada vez mais da Arábia Saudita. Lá, os norte-americanos residentes tinham de seguir, pelo menos aparentemente, os preceitos puritanos do Islã. Na década de 1980, praticamente não havia judeus entre os norte-americanos que viviam no país; os banhos de piscina mistos eram proibidos nos hotéis; e os membros das forças armadas norte-americanas concordaram em não celebrar missas de Natal nas bases. Tais concessões não pareciam suficientes aos olhos dos muçulmanos mais fervorosos, sempre conscientes de que eram eles os guardiões dos locais sagrados em Meca e Medina. Alguns dos mais veementes desaprovavam até mesmo o próprio governo, vindo a patrocinar terríveis atos de terrorismo.

Próximo post: O Islã no século XX (Parte IV): O terrorismo internacional

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 297-298.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

O Islã no século XX (Parte II)

Divergências entre muçulmanos e cristãos


Símbolo do Islã, produtor  

As concepções do islamismo e do cristianismo haviam se modificado. Seus modos de pensar eram semelhantes em 1900. Nessa época, as nações cristãs zelavam pela instituição da família, eram mais atentas ao uso excessivo do álcool e consideravam o domingo um dia sagrado. Sua atitude em relação às mulheres era mais parecida com a atitude dos islâmicos do que é hoje. Os crimes mais graves eram vistos com mais severidade e frequentemente punidos com a morte. O domingo em Iowa tinha muito em comum com a sexta-feira no Cairo.

Nos cem anos que se seguiram, as nações cristãs se tornaram mais seculares. O modo de vida norte-americano fazia propaganda do álcool e das drogas, além de tolerar aventuras sexuais e a rebeldia dos jovens. Os muçulmanos mais devotos rejeitavam o espírito mercantilista, o consumismo e a moral frouxa que o Ocidente ostentava através da televisão, dos filmes de Hollywood e do estilo de vida das estrelas pop internacionais. O Islã deplorava as rápidas mudanças do Ocidente, e o Ocidente deplorava a lentidão das mudanças no Islã. O Ocidente lamentava a falta de liberdades pessoais do Islã, e o Islã lamentava o que o Ocidente havia feito com a própria liberdade.

Nas décadas seguintes, o Islã vicejou, Hábil em conservar seus fiéis, empenhava-se em atrair mais partidários. As crianças muçulmanas abraçavam a religião dos pais - e as famílias costumavam ser numerosas. Em 1893, os muçulmanos representavam cerca de 12% da população global; exatamente um século mais tarde, esse índice havia chegado aos 18%. Era a segunda religião em número de fiéis, maior que o número de hinduístas e budistas somados. Os cristãos ainda eram mais numerosos, com um terço da população do planeta, mas sua liderança estava sob ameaça.

A resistência do Islã em seus países tradicionais foi ajudada pelo êxito alcançado em outras terras. Os muçulmanos espalharam sua fé por meio de movimentos migratórios. Em 1900, os viajantes que visitavam as cidades em efervescência - Paris, Chicago, Buenos Aires ou Dunedin - encontravam sinagogas com facilidade, mas nenhuma mesquita. Nos Estados Unidos, os muçulmanos eram raros, mas, no final do século, sua população crescia mais rapidamente que a dos judeus. Ao mesmo tempo, em várias cidades inglesas, as mesquitas atraíam tantos fiéis quanto as igrejas cristãs. Em Paris, enquanto as igrejas católicas permaneciam em silêncio, as mesquitas estavam lotadas.

A grande maioria dos muçulmanos vivia de maneira virtuosa e convivia pacificamente com outros credos. Mas em algumas regiões do Islã o zelo religioso excessivo voltava-se para a militância política. No Irã, milhões de muçulmanos rejeitavam o próprio xá e esperavam sua queda. Seu ansioso oponente era Ruhollah Khomeini, o barbudo que ficou conhecido como aiatolá, palavra cujo significado é sinal de Deus. Khomeini fez todas as suas pregações em segurança - durante a década de 1960, no Iraque e, no final da década de 1970, na França. Depois da deposição do xá, em janeiro de 1979, e de sua ida para o exílio, o aiatolá retornou ao país, criando uma república teocrática na qual a pena de morte era largamente empregada em vários casos de dissidência política e religiosa, bem como de crimes comuns.

Com seu fervor e eloquência, ele reunia grandes multidões a céu aberto. Denunciou os Estados Unidos como "o grande satã". Reagindo ao estímulo de seu líder, fanáticos iranianos sequestraram 66 norte-americanos que viviam no país, mantendo quase todos como reféns por mais de um ano. Aproveitando os distúrbios, o vizinho Saddam Hussein, do Iraque, invadiu o Irã. Essa guerra entre as duas potências islâmicas, uma sunita e outra xiita, foi considerada uma das cinco mais mortais de todos os tempos.

Próximo post: O Islã no século XX (Parte III): Fervor e petróleo no deserto

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 294-295 e 297.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Islã no século XX (Parte I)

A riqueza oriunda do petróleo


Símbolo do Islã, Produtor

A Lua, após décadas de escuridão, brilhava mais uma vez sobre países muçulmanos. Na década de 1960, nações que pouco tempo antes haviam se tornado independentes desfraldavam cada vez mais a bandeira na qual se via a Lua crescente e a sombra verde do Islã. Os primeiros triunfos aconteceram no Paquistão, lar da maioria dos muçulmanos indianos, e na república da Indonésia, onde se concentrava a maior população muçulmana do mundo. Nasser, no Egito, e Sukarno, na Indonésia, representavam a nova convicção que se fazia visível em alguns países islâmicos. Apenas vinte e cinco anos antes, quase todos os países islâmicos haviam estado sob o domínio da Europa cristã.

Pela primeira vez em quinhentos anos, as nações islâmicas ocupavam uma posição de barganha em regiões importantes. Tais nações jamais haviam sido exploradoras diligentes de minérios, mas, por acaso, os países que se haviam convertido ao islamismo mais de mil anos antes possuíam a maioria dos campos de petróleo conhecidos. Os ocidentais encontraram o petróleo e os islâmicos se regozijaram, ficando com grande parte dos rendimentos. O Oriente Médio, a África do Norte, a Nigéria e a Indonésia possuíam, ao todo, mais da metade das reservas mundiais de petróleo. Ao mesmo tempo, o rápido declínio no nível das reservas dos Estados Unidos, até então principal produtor do mundo, beneficiou ainda mais os países islâmicos. Outra mudança abarrotou os cofres muçulmanos: na década de 1960, o petróleo se tornava a principal fonte de energia, ultrapassando o carvão.

Em 1973, os principais produtores de petróleo, liderados pelos árabes, aumentaram vertiginosamente o preço do produto, além de impedirem que fosse levado para nações que apoiavam Israel. Com o petróleo atingindo preços recordes, o Oriente Médio foi inundado pelos lucros. Magnatas árabes se tornaram proprietários de algumas das mansões inglesas outrora habitadas por seus antigos dominadores. Muçulmanos começaram a fazer parte da lista das famílias mais ricas do mundo. O Islã se espalhara entre os países mais pobres do globo, mas, pela primeira vez, em séculos, também estava presente em alguns dos mais ricos.

Próximo post: O Islã no século XX (Parte II): Divergências entre muçulmanos e cristãos

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 293-294.

sábado, 17 de agosto de 2013

Heróis e pessoas comuns

Os estudos tradicionais de história referem-se, geralmente, à vida e às ações das elites sociais, focalizando apenas personagens que, por algum motivo, tiveram destaque: governantes, comandantes militares, grandes artistas ou cientistas, enfim, indivíduos que tiveram o reconhecimento dos seus contemporâneos. Trata-se da chamada história dos grandes homens.

Durante muito tempo, o próprio estudo da história confundiu-se com essa forma de abordagem. E ela não impregnou apenas a ciência. As obras de ficção, particularmente as da literatura e do cinema, têm como temas privilegiados a vida e as ações dos heróis.

Por essa razão, quando se estuda história tendo como referência a sociedade, no seu sentido mais amplo, isto é, como resultado da ação de todos os seres humanos, uma das grandes dificuldades é recuperar a vida e as ações dos homens comuns e, mais ainda, das mulheres comuns, dos jovens e das crianças.

No entanto, os chamados "grandes homens" são, por definição, aqueles indivíduos, homens ou mulheres, que, por ações praticadas ou por obras criadas, representam o conjunto da sociedade do seu tempo, sem o qual eles não existiriam.

Portanto, o conhecimento das sociedades humanas, mesmo daquelas que se apresentam como grande "civilização", só se torna completo quando se leva em conta a vida cotidiana, que é, por definição, o espaço da participação popular, da existência das pessoas comuns. É o espaço da rotina, da repetição, diferente do inusitado, da mudança, que, em geral, assinalam os chamados "grandes acontecimentos".

A colheita do feno, Pieter Bruegel

Mas a produção desse conhecimento requer um tipo de estudo complicado e complexo. Para realizá-lo, quase sempre, é preciso recuperar a participação popular por meio de registros documentais e vestígios materiais que foram produzidos por membros das elites, ou por sua ordem, e a elas se referem.

Atualmente, muitos historiadores e os demais interessados nos conhecimentos históricos têm voltado sua atenção para um aspecto por meio do qual se pode conhecer a vida das pessoas comuns: a história da vida privada.

O público e o privado compõem a história. Até muito recentemente, porém, apenas o primeiro elemento era considerado objeto dos estudos históricos. A chamada Nova História abriu espaço para a busca do segundo elemento e, assim, a construção de uma visão tão completa quanto possível da existência da humanidade.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 18-19.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Impérios marítimos e terrestres no Sudeste da Ásia: Srivijava e Khmer

A importância de alianças pessoais - baseadas em laços de parentesco ou em relações contratuais - pode ser vista na forma que até impérios tomaram em algumas partes do mundo. Os Estados do sudeste da Ásia podem ser pensados como sistemas complexos de lealdades pessoais que formaram a base de relações de poder, mais do que como territórios com limites definidos administrados por representantes de um ou outro governante. Os limites precisos dos territórios controlados por um governante não eram uma preocupação principal; o que importava era a rede de lealdades das quais o governante poderia depender. Os impérios marítimos e terrestres do sudeste da Ásia são exemplos disso.

O grande império insular de Srivijayan (670-1025) foi construído sobre a riqueza produzida pelo comércio marítimo, juntamente com uma combinação de força militar e perspicácia política do datus (chefes ou governantes) da capital, Palembang, na ilha de Sumatra. Dadas as flutuações do comércio internacional e as variações nas habilidades humanas, o poder militar e a capacidade política, sozinhos, eram insuficientes para garantir a sobrevivência de Srivijava. Os líderes precisavam também de um sistema de crenças que pudesse unir as regiões conquistadas, com diferentes religiões e grupos étnicos, sob uma lealdade comum a Palembang, Os governantes de Srivijava encontraram tal ideologia unificadora na religião universal do budismo.

O budismo cresceu rapidamente no arquipélago sudeste-asiático durante o século XII. Inscrições rupestres antigas, em Palembang, revelaram que houve um governante que misturou o imaginário local da montanha sagrada e do mar com a veneração tradicional dos ancestrais com símbolos budistas e éticos. Os temas budistas impostos sobre as tradições nativas providenciaram um conjunto comum de ideias que transcendiam as comunidades locais. Para reforçar essa ideologia e construir o prestígio regional sobre ela, os governantes de Srivijava utilizaram alguns dos lucros de seu império para serem patrocinadores da escolástica budista em seus territórios e financiar grandes construções de templos, como o grande monumento budista de Borobudur, do século VIII, na ilha de Java. Nos séculos X e XI, o império dedicava-se a templos em locais tão distantes quando Bengala e a costa sudeste da Índia.

No sudeste do continente asiático, o Império Khmer (802-1432), em seu auge no século XII, controlava provavelmente um milhão de pessoas na área dos atuais Camboja, Laos, Tailândia e partes de Burma, Vietnã e da península malaia. Uma rede de canais, utilizados tanto para transporte como para irrigação, ligava fisicamente o Estado Khmer, e os reservatórios ajudavam a controlar a precipitação irregular de um clima de monções, estocando a água das chuvas de monções para uso posterior.

Tanto o hinduísmo quanto o budismo sancionaram a autoridade dos governantes e os laços culturais e religiosos comuns entre o povo Khmer. Seus governantes misturaram o hinduísmo com as crenças nativas para consolidar seu poder sobre o território em expansão, e a linguagem sânscrita foi adotada pela Corte Khmer. A adoração do deu hindu Shiva, que era identificado como o "Senhor da Montanha", estava ligada à crença nativa na santidade das montanhas, a casa dos espíritos ancestrais. A adoração a Shiva foi formalizada no culto ao devaraja (deus-rei), do governador Jayavarman II (770-834), que construiu o Estado Khmer, por meio de uma combinação de conquista e formação de uma rede de alianças pessoais. Seguindo Jayavarman, as estátuas dos deuses eram fundias com a pessoa do governante, simbolizada pela emergência do título pessoal do monarca com o nome de um deus. Após o século XII, na cidade capital de Angkor Thom, o domínio budista era refletido pelas fachadas do complexo de templos de Bayon, que retratavam a divindade budista de Lokeshvara. Essa divindade budista era identificada com o construtor de Angkor Thom, Jayavarman VII (1181-1218?), cuja autoridade foi reforçada por meio do novo culto ao Buddha-raja (rei-Buda).

Projetos de obras públicas massivas, realizados pela monarquia Khmer, como o complexo de templos hindus de Angkor Wat (wat significa "templo") construído no século XII, são testemunhos da habilidade do Estado Khmer em coletar e redistribuir recursos econômicos em grande escala. Isso foi realizado por meio de uma rede de templos, que serviam como centros de redistribuição, de vilas para templos locais, e subindo hierarquicamente até o templo central na capital do reino. Dessa forma, tanto a riqueza material quanto a capital simbólica, os símbolos culturais e religiosos utilizados para integrar a sociedade Khmer, foram distribuídos por uma complexa rede de templos espalhada pelo reino.



Angkor Wat

Embora o Khmer não tenha controlado o comércio marítimo que o teria permitido conectar os arredores agrícolas ao comércio marítimo, como fez Srivijava, ambos os impérios controlaram recursos massivos, incorporando diferentes povos e culturas dentro de seus reinos, e criando bases ideológicas com o uso da hinduísmo e do budismo, que unificaram a região sob seu controle. Tanto no Império de Srivijaya, quanto no Khmer, novas identidades coletivas foram construídas por meio da religião e suportadas por riquezas econômicas produzidas pelo trabalho de pessoas envolvidas na agricultura ou no comércio marítimo e fluvial. Templos e outros monumentos religiosos foram expressões vitais da identidade coletiva, conforme eles manifestam a riqueza material comandada por governantes e sancionada pela religião. As alianças pessoais estão no coração de ambos os impérios, e não há dúvida de que estavam presentes em um âmbito local, onde eles faziam parte de uma vida cotidiana que permanecia sem registros. As pessoas continuaram a se identificar intimamente com os parentes e com a vila, mesmo quando eles viviam à sombra de poderosos impérios.

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 204-206.