[...] Antes mesmo da Balaiada e da Sabinada, começava, em 1835, no sul do país, a Guerra dos Farrapos. Embora possa ser enquadrada na mesma perspectiva das outras revoltas, a Farroupilha apresenta características próprias. Foi uma luta da classe dominante local contra os efeitos do centralismo político e administrativo, mas na qual essa classe se apresentava organizada e coesa, impedindo que o povo tivesse maior participação, como acontecera nas outras revoltas.
A economia da região possuía também características especiais. A província de São Pedro do Rio Grande do Sul não estava ligada, como as demais, diretamente ao mercado externo. Lá não eram cultivados produtos tropicais para exportação. A riqueza da região era gerada na venda de charque, couros e gado muar para o mercado interno, isto é, para as províncias agro-exportadoras.
Mesmo sendo "o celeiro do país", o Rio Grande não era forte o suficiente para impor seus interesses. Aos proprietários de terras e de escravos que dominavam o império, não interessava obter aqueles produtos a preços altos, principalmente o charque, que era a alimentação básica de seus escravos. Assim, o governo mantinha baixos os impostos dos artigos similares importados da região platina. Também não oferecia garantias para a venda da produção sulina para o exterior e, além disso, sobrecarregava-a de impostos nos portos nacionais.
Diziam os estancieiros do Sul que a prosperidade da província ficava ao sabor da desorganização da produção platina: nos momentos em que havia lutas internas no Prata, o charque do Rio Grande tornava-se concorrente no mercado; quando as coisas lá corriam bem, a economia rio-grandense sofria grandes perdas. Concentravam, então, seus esforços na exigência de reformas na política tarifária por parte do governo central. Não podiam perceber que era a utilização do trabalho escravo que encarecia a produção, tornando-a menos competitiva no mercado. As estâncias platinas estavam organizadas como empresas capitalistas e a produtividade do trabalho assalariado era maior do que a do trabalho escravo. No Brasil, os gastos iniciais para a compra de escravos eram grandes e as despesas com alimentação, vestuário e alojamento também. Uma vez que o charque sulino se destinava a um mercado livre e competitivo, não tendo a garantia da venda total da produção nem dos altos lucros dos preços de monopólio, a situação se tornava desfavorável aos produtores rio-grandenses que, além disso, tinham de arcar com as despesas da escravidão mesmo nos momentos críticos de retração do mercado.
Além das desavenças de caráter econômico com o governo imperial, havia outras de cunho político e administrativo: os fazendeiros sulinos eram contra a nomeação direta dos presidentes de província e dos funcionários locais pelo poder central.
Em 1835, estoura no Rio Grande do Sul a Farroupilha. Em 1836, é proclamada a República Rio-Grandense. Comandando as forças locais contra as tropas do governo e as dos países vizinhos que as ajudavam, estavam líderes como Bento Gonçalves, Bento Manuel Ribeiro, Davi Canabarro e até o italiano Garibaldi.
Proclamação da República do Piratini, Antônio Parreiras
Em 1838, os rebeldes lançam um manifesto acusando diretamente o governo pela má escolha dos diplomatas, pelos tratados contrários aos interesses da nação, pelos impostos cobrados e pelas dívidas assumidas. E ainda pela "política feroz e covarde" em relação aos rebeldes, pelo desprezo às representações do povo, pelo desrespeito a ordens legais de habeas corpus, etc. E assim concluíram:
"Esses males, nós os temos suportado em comum com as outras províncias da União Brasileira; amargamente os deplorávamos em silêncio sem contudo sentirmos abalada a nossa constância, o nosso espírito de moderação e de ordem. Para que lançássemos mão das armas foi preciso a concorrência de outras causas, outros males que nos dizem respeito particularmente a nós, e que nos trouxeram íntima convicção da impossibilidade de avançarmos na carreira da civilização e prosperidade, sujeitos a um governo que há formado o projeto iníquo de nos submeter à mais abjeta escravidão, ao despotismo mais abominável".
Em 1839, é proclamada a República Juliana em Santa Catarina, por onde o movimento já se alastrara. Apesar da sucessão de "repúblicas", os estancieiros não queriam a separação da província do resto do Império. A economia da região, como vimos, era dependente das áreas agro-exportadoras. Queriam apenas a autonomia política e administrativa, queriam o federalismo.
A nomeação do barão de Caxias para presidente da província, em 1842, marca o início da "pacificação". Caxias isola os rebeldes, impedindo-os de receberem auxílio do Uruguai, e reforça os contingentes militares. Obtém ainda o apoio de Bento Ribeiro, dividindo os farrapos.
Mas, durante dez anos os gaúchos resistiram às tropas imperiais. Alguns fatores explicam a continuidade do movimento. O desenvolvimento histórico da região possibilitou a formação de uma classe dominante coesa e semi-organizada militarmente. os homens livres não proprietários estavam mais integrados que nas outras regiões, na medida em que o trabalho escravo teve aí menor peso. No momento da luta, essa massa de agregados pôde ser utilizada sem nenhum risco para os proprietários rurais.
Mais que as lutas armadas, foram as concessões feitas aos farrapos que possibilitaram a volta a normalidade. Concedeu-se anistia aos revoltosos, fortaleceu-se a Assembléia local, diminuíram-se os impostos. Enfim, consolidou-se o domínio dos estancieiros no sul do país.
Nesse aspecto, a Farroupilha assemelhou-se às demais revoltas da época. Passando o calor das lutas, foram os senhores sempre os vitoriosos. Durante o desenrolar das rebeliões, os ideais populares, embora não sistematizados em um programa de lutas e reivindicações, ganhavam certa autonomia - em relação às divergências entre liberais e conservadores - que alarmava até os mais liberais. Para os senhores, cabia ao povo concentrar-se em praças públicas e reagir armado contra o domínio desse ou daquele grupo da aristocracia rural, contra esse ou aquele regente. Não cabia ao povo lutar por seus verdadeiros interesses...
ALENCAR, Chico et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 146-148.
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