Artefato pré-colombiano. Nacoochee Mound, Georgia
Os vestígios arqueológicos, a partir do momento em que são reintegrados num contexto cultural em funcionamento como o nosso, tornam-se novamente mediadores. Esse processo pode ocorrer por uma apropriação casual, como é comum no caso de instrumentos de sílex pré-histórico, utilizados pelas populações locais em regiões do Brasil como pederneiras (as chamadas pedras-de-fogo) ou como simples enfeites. Em geral, contudo, é o arqueólogo quem reintroduz artefatos de culturas extintas numa sociedade viva.
Boa parte dos objetos, na medida em que não possui valor material ou científico, segundo os padrões sociais vigentes no momento de sua recuperação, é novamente desativada e tratada como lixo. Mas aqueles objetos reintegrados pelo arqueólogo passam a possuir novas funções e a exercer mediações no interior das relações sociais em que foram inseridos. Esses artefatos podem adquirir funções ideológicas, tanto no sentido de fazer com que as pessoas endossem as ideias dominantes, como as que as critiquem.
Escavação no templo de Ísis em Pompéia, Pietro Fabris
As estátuas dos imperadores romanos, por exemplo, nos induzem a aceitar a importância desses personagens para a história. Esses artefatos reforçam uma ideologia dominante. Um memorial dedicado aos indígenas, uma praça dedicada à herança africana, um museu dedicado aos primatas, tudo isso pode servir para uma visão crítica. Menires ou objetos de antepassados indígenas podem ser valorizados por exposições em museus ou deixados ao relento, e a própria forma de expor os materiais em museus pode ter uma conotação ideológica, por exemplo.
Na medida em que essa reapropriação dos artefatos pelos cidadãos envolve uma relação de poder, a mediação do artefato arqueológico adquire importância crucial. Assim, discussões relativas ao quê conservar, em qual instituição, com quais condições de acessibilidade e, ainda mais, quanto à propriedade científica do material, dizem respeito a todo um conjunto de questões ligadas ao artefato. Dessa forma, a preservação nos museus exclusivamente de obras de arte - remete, nas sociedades contemporâneas, a uma valorização da vida aristocrática como momento de plenitude que o tempo desgasta e que se tenta renovar pela conservação.
Artefato pré-colombiano: cultura chimu
Não é à toa que, embora a arqueologia estude as séries, o repetir-se da ação humana refletindo nos objetos do cotidiano - sendo esse o material mas comum proveniente das escavações - predomine ainda, nas instituições e nas publicações arqueológicas, a atenção para com os objetos únicos e excepcionais. Essa é uma consequência inevitável da própria configuração das sociedades contemporâneas, nas quais atua o arqueólogo e das quais faz parte.
No entanto, o caráter específico do material arqueológico permite igualmente ao pesquisador escapar dessa perspectiva limitada, voltando-se para a prática de uma ciência que "difunda a cultura material do ambiente, das cidades e dos produtos", como parte de uma perspectiva de reflexão social e de ação social concreta. Esse é o caso da valorização da cultura material dos indígenas, em uma sociedade como a brasileira, com grande herança genética e cultural desses povos, para ficar apenas em um exemplo muito pertinente. Cerca de 30% da população brasileira tem alguma ascendência indígena e a influência indígena em nossa cultura vai da língua à culinária, passando pelos nossos costumes de asseio pessoal (os famosos banhos frequentes). Os vestígios arqueológicos indígenas adquirem, nesse contexto, grande potencial de conscientização cultural.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 34-35.
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