"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O mundo mediterrâneo às vésperas das Cruzadas 1: o mundo islâmico

“Já havia muito tempo que essas duas irmãs, essas duas metades da humanidade, a Europa e a Ásia, a religião cristã e a muçulmana, tinham-se perdido de vista, quando foram postas face a face pela Cruzada e olharam uma para a outra. O primeiro olhar foi de horror”. 
(Jules Michelet, Histoire de France)


Batalha entre cruzados cristãos e cavaleiros árabes, artista desconhecido.

Ao final do século XI, o espaço mediterrâneo dividia-se entre o mundo islâmico, o Império Bizantino e o mundo cristão ocidental. O Oriente muçulmano e bizantino, governado por verdadeiros Estados, era sede de uma civilização secular brilhante, enquanto o Ocidente cristão mal acabara de sair da barbárie em que mergulharam as invasões e o retrocesso econômico.


[O mundo islâmico, um imenso espaço de unidade incontestável] Estendendo-se da Índia à Espanha, sua unidade era extraída da preeminência do Islã e da língua árabe. Era igualmente caracterizado pelo número e pelo esplendor de suas cidades, especialmente na Síria e na Mesopotâmia, onde a tradição da vida urbana remontava a milênios. Todas essas cidades apresentavam o mesmo aspecto, tendo no centro uma mesquita e mercados e, nas capitais, um palácio para o governador. Tinham muralhas e uma cidadela. Populosas e industriosas, sedes de comércio internacional ou distantes de centros de intercâmbios regionais, elas figuravam entre as maiores cidades do mundo e podiam ter até centenas de milhares de habitantes. Cenários da vida da elite, afirmavam desde sempre um desejo de autonomia com relação ao governo central e a seu representante local.

[Depois da morte de Maomé, todos os territórios dominados pelo Islã foram reunidos sob a autoridade de um chefe religioso e político - o califa] Depois de um apogeu sob os omíadas e sob os primeiros abássidas, o califado conheceu um longo declínio político. Sofreu os efeitos da secessão das regiões mais distantes e foi obrigado a enfrentar a contestação de sua legitimidade por dissidentes no seio do islamismo. Aos sunitas, que defendiam a legitimidade do califado abássida, se opunham os caridjitas e sobretudo os xiitas. Estes últimos estimavam que o califado deveria ser devolvido a um descendente de Ali, genro do profeta, mas se dividiam em ismaelitas e duodecimanos. Nos séculos X e XI, os ismaelitas eram os mais poderosos. Na África do Norte, os fatímidas, que eram ismaelitas, se proclamaram califas, conquistaram o Egito e fundaram O Cairo – “A Vitoriosa” -, e depois tomaram caminho de Bagdá para derrubar os abássidas. Mas, não conseguindo ultrapassar Alepo, se contentaram em alcançar a Síria meridional.

A essa contestação radical do poder se acrescentaram imposição de tutela ao califado abássida pelos vizires bouyidas que prestavam obediência aos xiitas, a intervenção de mercenários na sucessão do califado e mesmo as dissidências regionais nas vizinhanças de Bagdá, na Síria do Norte e no norte da Mesopotâmia. O califado foi ficando, cada vez mais, acantonado em um papel puramente espiritual.

[A entrada dos turcos seljúcidas em Bagdá, em 1055, parece dar início à reconstituição da unidade islâmica] Os turcos, que viviam como nômades nas planícies da Eurásia, foram convertidos ao islamismo no século X. Dentre eles, os seljúcidas adquiriram importância particular por meio das lutas conduzidas contra os principados muçulmanos do norte do Irã. Toghrul-Beg, seu chefe, se impôs ao califa de Bagdá, e outorgou a si mesmo o título de sultão, que lhe dava autoridade temporal, tendo como missão o restabelecimento da unidade do califado e a predominância do sunismo. O principal objetivo era, portanto, a derrubada do califado fatímida. Entretanto, os sultões não detinham o controle total de suas tropas, pois as tribos turcomanas, cujas tendências à autonomia eram acentuadas, estavam interessadas sobretudo em pilhar e se apropriar dos territórios percorridos por suas tropas. Sob este ponto de vista, a Síria e a Mesopotâmia absolutamente não lhes agradavam, uma vez que era proibido efetuar operações de pilhagem contra muçulmano e o clima tórrido dessas regiões não era adequado para seus rebanhos.

[Os turcos obtém uma vitória importante sobre Bizâncio em Mantzikert, em 1071] A Anatólia bizantina, em compensação, era um lugar ideal. Além disso, o sultão Alp Arslan precisou comandar contra o Império Bizantino – que as incursões nascentes dos turcomanos obrigaram a uma contra-ofensiva – uma grande batalha em Mantzikert. Traído por seus inimigos internos, o imperador Romano IV Diógenes foi completamente derrotado e feito prisioneiro. Alp Arslan, que não desejava se deixar desviar de seu objetivo por uma guerra contra Bizâncio, libertou o prisioneiro imperial. Enquanto isso as tribos turcomanas, a favor da guerra civil em que soçobraria Bizâncio, desferraram-se contra toda a Anatólia até o mar de Mármara.

[Mas os seljúcidas fracassaram em sua tentativa de unificação] Os sultões conseguiram reunificar sob sua autoridade o califado abássida, mas não tiveram sucesso em reduzir o califado fatímida e, sobretudo, depois da morte de Malik Shah, sucessor de Alp Arslan, em 1092, o sultanato, por sua vez, começou a se fragmentar. Para sucedê-lo, uma amarga competição opôs seus irmãos e seus filhos. A Síria e a Alta Mesopotâmia dependiam nominalmente do sultanato da Pérsia, cuja sede ficava em Bagdá e coube a Barkyaruq. Nas principais cidades foram implantados emirados efetivamente autônomos e governados por atabegues, termo turco designando os tutores dos príncipes seljúcidas, geralmente chefes militares. Em parte alguma a fragmentação foi tão grande quanto na Alta Mesopotâmia e na Síria: Alepo e Damasco pertenciam respectivamente, a sobrinhos de Malik Shah; Trípoli era governada por um civil, o cádi; Sheizar, pela dinastia árabe dos munqidhitas; Mosul, por Kerbogha; e a região de Diyar Bakr, pelos ortoquidas. No final do século XI, instalou-se a seita ismaelita dos Assassinos nas montanhas de Ansariye. Mais que por suas crenças, eles se caracerizavam por sua profunda hostilidade ao sunismo e pela prática do assassinato. Os adeptos observavam uma obediência absoluta ao grão-mestre. Abrigados em verdadeiros ninhos de águia, conseguiram preservar sua independência.

[Os turcos não colonizaram a Síria, cuja população permaneceu árabe] Etnicamente, eles eram uma minoria que pouco a pouco foi assimilada pelo elemento árabe. Suas divisões, portanto, se sobrepuseram a outras, mais antigas, de ordem regional: a oposição entre a Síria do litoral e a Síria interior, entre Alepo, Damasco e a Palestina. Oposição também de ordem confessional: os sunitas dominavam a Síria do Sul e a Palestina; os xiitas, a Síria do norte, onde recebiam reforço dos Assassinos. Os drusos, presentes no Líbano, constituíam uma seita derivada do cisma: não acreditavam na morte, em 1021, do sexto califa fatímida, Al-Hakim, que havia proclamado sua divindade. Ainda se mantinham numerosos os elementos não muçulmanos na população e, dentre eles, judeus e cristãos se beneficiavam de um estatuto particular: "povos da Bíblia", eram considerados como sendo crentes do mesmo deus, mas faltava-lhes a revelação suprema e derradeira, a de Maomé. Os judeus se disseminaram nas cidades da Síria do Norte e da Palestina, mas se reagruparam sobretudo em Jerusalém. Os cristãos mais numerosos são os sírios ortodoxos, ou seja, jacobitas, que são monofisistas: podemos encontrá-los tanto nas regiões do campo como nas cidades, particularmente na Síria do Norte e na Alta Mesopotâmia. Os gregos ortodoxos, na verdade sírios que foram helenizados na época bizantina, mas que se tornaram cada vez mais arabizados, quase não aparecem nas cidades. E, finalmente, encontramos maronitas no monte Líbano, monges georgianos, armênios gregorianos, também monofisistas.

Esta diversidade da Síria produziu dois efeitos opostos. De um lado, ela constituiu uma fraqueza, pois talvez pudesse ser causa de divisão, mas de um outro lado, tornava indispensável a coexistência com a diferença e permitia contatos e associações que, em outros lugares, na mesma época, eram impossíveis. Não se pode, portanto, ficar surpreendido com o fato de que, depois de uma expansão ideológica e conquistadora inicial, o Islã tenha renunciado ao jihad, ou à "guerra santa", nesta Síria que a tradição considerava como a terra do jihad.

TATE, Georges. O Oriente das Cruzadas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 15-24.

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