“Já havia muito tempo que essas
duas irmãs, essas duas metades da humanidade, a Europa e a Ásia, a religião
cristã e a muçulmana, tinham-se perdido de vista, quando foram postas face a
face pela Cruzada e olharam uma para a outra. O primeiro olhar foi de horror”.
(Jules Michelet, Histoire de France)
Batalha entre cruzados cristãos e cavaleiros árabes, artista desconhecido.
Ao final do século XI, o espaço
mediterrâneo dividia-se entre o mundo islâmico, o Império Bizantino e o mundo
cristão ocidental. O Oriente muçulmano e bizantino, governado por verdadeiros
Estados, era sede de uma civilização secular brilhante, enquanto o Ocidente
cristão mal acabara de sair da barbárie em que mergulharam as invasões e o
retrocesso econômico.
[O mundo islâmico, um imenso espaço de unidade incontestável] Estendendo-se da Índia à Espanha,
sua unidade era extraída da preeminência do Islã e da língua árabe. Era
igualmente caracterizado pelo número e pelo esplendor de suas cidades,
especialmente na Síria e na Mesopotâmia, onde a tradição da vida urbana
remontava a milênios. Todas essas cidades apresentavam o mesmo aspecto, tendo
no centro uma mesquita e mercados e, nas capitais, um palácio para o
governador. Tinham muralhas e uma cidadela. Populosas e industriosas, sedes de
comércio internacional ou distantes de centros de intercâmbios regionais, elas
figuravam entre as maiores cidades do mundo e podiam ter até centenas de
milhares de habitantes. Cenários da vida da elite, afirmavam desde sempre um
desejo de autonomia com relação ao governo central e a seu representante local.
[Depois da morte de Maomé, todos os territórios dominados pelo Islã foram reunidos sob a autoridade de um chefe religioso e político - o califa] Depois de um apogeu sob os
omíadas e sob os primeiros abássidas, o califado conheceu um longo declínio
político. Sofreu os efeitos da secessão das regiões mais distantes e foi
obrigado a enfrentar a contestação de sua legitimidade por dissidentes no seio
do islamismo. Aos sunitas, que defendiam a legitimidade do califado abássida,
se opunham os caridjitas e sobretudo os xiitas. Estes últimos estimavam que o
califado deveria ser devolvido a um descendente de Ali, genro do profeta, mas
se dividiam em ismaelitas e duodecimanos. Nos séculos X e XI, os ismaelitas
eram os mais poderosos. Na África do Norte, os fatímidas, que eram ismaelitas,
se proclamaram califas, conquistaram o Egito e fundaram O Cairo – “A Vitoriosa”
-, e depois tomaram caminho de Bagdá para derrubar os abássidas. Mas, não
conseguindo ultrapassar Alepo, se contentaram em alcançar a Síria meridional.
A essa contestação radical do
poder se acrescentaram imposição de tutela ao califado abássida pelos vizires bouyidas que prestavam obediência aos
xiitas, a intervenção de mercenários na sucessão do califado e mesmo as
dissidências regionais nas vizinhanças de Bagdá, na Síria do Norte e no norte
da Mesopotâmia. O califado foi ficando, cada vez mais, acantonado em um papel
puramente espiritual.
[A entrada dos turcos seljúcidas em Bagdá, em 1055, parece dar início à reconstituição da unidade islâmica] Os turcos, que viviam como
nômades nas planícies da Eurásia, foram convertidos ao islamismo no século X.
Dentre eles, os seljúcidas adquiriram importância particular por meio das lutas
conduzidas contra os principados muçulmanos do norte do Irã. Toghrul-Beg, seu chefe,
se impôs ao califa de Bagdá, e outorgou a si mesmo o título de sultão, que lhe
dava autoridade temporal, tendo como missão o restabelecimento da unidade do
califado e a predominância do sunismo. O principal objetivo era, portanto, a
derrubada do califado fatímida. Entretanto, os sultões não detinham o controle
total de suas tropas, pois as tribos turcomanas, cujas tendências à autonomia
eram acentuadas, estavam interessadas sobretudo em pilhar e se apropriar dos
territórios percorridos por suas tropas. Sob este ponto de vista, a Síria e a
Mesopotâmia absolutamente não lhes agradavam, uma vez que era proibido efetuar
operações de pilhagem contra muçulmano e o clima tórrido dessas regiões não era
adequado para seus rebanhos.
[Os turcos obtém uma vitória importante sobre Bizâncio em Mantzikert, em 1071] A Anatólia bizantina, em compensação,
era um lugar ideal. Além disso, o sultão Alp Arslan precisou comandar contra o
Império Bizantino – que as incursões nascentes dos turcomanos obrigaram a uma
contra-ofensiva – uma grande batalha em Mantzikert. Traído por seus inimigos
internos, o imperador Romano IV Diógenes foi completamente derrotado e feito
prisioneiro. Alp Arslan, que não desejava se deixar desviar de seu objetivo por
uma guerra contra Bizâncio, libertou o prisioneiro imperial. Enquanto isso as
tribos turcomanas, a favor da guerra civil em que soçobraria Bizâncio,
desferraram-se contra toda a Anatólia até o mar de Mármara.
[Mas os seljúcidas fracassaram em sua tentativa de unificação] Os sultões conseguiram reunificar
sob sua autoridade o califado abássida, mas não tiveram sucesso em reduzir o
califado fatímida e, sobretudo, depois da morte de Malik Shah, sucessor de Alp
Arslan, em 1092, o sultanato, por sua vez, começou a se fragmentar. Para
sucedê-lo, uma amarga competição opôs seus irmãos e seus filhos. A Síria e a
Alta Mesopotâmia dependiam nominalmente do sultanato da Pérsia, cuja sede
ficava em Bagdá e coube a Barkyaruq. Nas principais cidades foram implantados
emirados efetivamente autônomos e governados por atabegues, termo turco designando os tutores dos príncipes
seljúcidas, geralmente chefes militares. Em parte alguma a fragmentação foi tão
grande quanto na Alta Mesopotâmia e na Síria: Alepo e Damasco pertenciam
respectivamente, a sobrinhos de Malik Shah; Trípoli era governada por um civil,
o cádi; Sheizar, pela dinastia árabe dos munqidhitas; Mosul, por Kerbogha; e a
região de Diyar Bakr, pelos ortoquidas. No final do século XI, instalou-se a
seita ismaelita dos Assassinos nas montanhas de Ansariye. Mais que por suas
crenças, eles se caracerizavam por sua profunda hostilidade ao sunismo e pela
prática do assassinato. Os adeptos observavam uma obediência absoluta ao
grão-mestre. Abrigados em verdadeiros ninhos de águia, conseguiram preservar
sua independência.
[Os turcos não colonizaram a Síria, cuja população permaneceu árabe] Etnicamente, eles eram uma minoria que pouco a pouco foi assimilada pelo elemento árabe. Suas divisões, portanto, se sobrepuseram a outras, mais antigas, de ordem regional: a oposição entre a Síria do litoral e a Síria interior, entre Alepo, Damasco e a Palestina. Oposição também de ordem confessional: os sunitas dominavam a Síria do Sul e a Palestina; os xiitas, a Síria do norte, onde recebiam reforço dos Assassinos. Os drusos, presentes no Líbano, constituíam uma seita derivada do cisma: não acreditavam na morte, em 1021, do sexto califa fatímida, Al-Hakim, que havia proclamado sua divindade. Ainda se mantinham numerosos os elementos não muçulmanos na população e, dentre eles, judeus e cristãos se beneficiavam de um estatuto particular: "povos da Bíblia", eram considerados como sendo crentes do mesmo deus, mas faltava-lhes a revelação suprema e derradeira, a de Maomé. Os judeus se disseminaram nas cidades da Síria do Norte e da Palestina, mas se reagruparam sobretudo em Jerusalém. Os cristãos mais numerosos são os sírios ortodoxos, ou seja, jacobitas, que são monofisistas: podemos encontrá-los tanto nas regiões do campo como nas cidades, particularmente na Síria do Norte e na Alta Mesopotâmia. Os gregos ortodoxos, na verdade sírios que foram helenizados na época bizantina, mas que se tornaram cada vez mais arabizados, quase não aparecem nas cidades. E, finalmente, encontramos maronitas no monte Líbano, monges georgianos, armênios gregorianos, também monofisistas.
Esta diversidade da Síria produziu dois efeitos opostos. De um lado, ela constituiu uma fraqueza, pois talvez pudesse ser causa de divisão, mas de um outro lado, tornava indispensável a coexistência com a diferença e permitia contatos e associações que, em outros lugares, na mesma época, eram impossíveis. Não se pode, portanto, ficar surpreendido com o fato de que, depois de uma expansão ideológica e conquistadora inicial, o Islã tenha renunciado ao jihad, ou à "guerra santa", nesta Síria que a tradição considerava como a terra do jihad.
TATE, Georges. O Oriente das Cruzadas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 15-24.
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