“O Código de Hamurábi é um dos mais antigos documentos jurídicos
conhecidos. Baseado em antigas leis sumerianas (Código de Dungi), compunha-se de 282 artigos, 33 dos quais se
perderam devido à deterioração da coluna de pedra (basalto) onde estavam
inscritos, em caracteres cuneifórmicos. A parte superior apresenta um
baixo-relevo, que mostra o deus Sol – Chamash – protetor da justiça, entregando
as tábuas da lei a Humarábi.” (AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das
sociedades: das comunidades primitivas às sociedades feudais. Rio de Janeiro:
Imperial Novo Milênio, 2008. p. 173.)
Alguns nomes ficam na História
por mérito. Outros, nem tanto. Um faraozinho insignificante, cuja tumba não foi
saqueada por ladrões, acaba recebendo homenagens em todos os museus importantes
do mundo, tendo sua biografia conhecida e feitos divulgados; enquanto outro,
que não teve a mesma sorte, figura apenas como um nome numa lista dinástica.
Nós, historiadores, ficamos sem
saber sobre a importância a ser dada a essas personagens. Maravilhados e
envolvidos pela documentação revelada, começamos por transformar “nosso” rei em
um grande herói, ou sábio, ou conquistador, acreditando demais no autopanegírico
que ele faz. Depois, passamos por um período de profundo ceticismo quando
verificamos que ele afirmou ter conquistado uma região que não conquistou ou
levantado um templo que já estava pronto. Qual governantes de hoje,
especialistas em reinaugurar obras já inauguradas ou ainda em construção, os
reis antigos mentiam em sinais cuneiformes ou hieroglíficos.
Com Hamurábi aconteceu o mesmo
fenômeno, de superstimação seguido de subestimação de sua obra e de seu
reinado; ou melhor, de seu código.
De início, imaginou-se estar
diante de um grande legislador, autor de uma série de leis básicas para o mundo
civilizado, novas e até revolucionárias. Seu código, a partir do momento de sua
divulgação, há 38 séculos, vem merecendo sucessivas reedições em todas as línguas.
Depois, verificou-se que Hamurábi
não criara novas leis e que seu código não era propriamente inovador, tendo em
vista que revelava apenas práticas sociais comuns, encontradas em documentos de
outros povos da região. E passou-se a minimizar sua importância.
Hoje, podemos ter uma visão mais
equilibrada do assunto. Hamurábi, grande chefe militar do século XVIII a.C.,
teve a preocupação, após efetuar importantes conquistas militares, de unificar
a legislação.
O resultado foi dos melhores, já
que o Código não é apenas um modelo de jurisprudência, mas de língua babilônica.
Não é, no entanto, um projeto de mudanças sociais. Muito pelo contrário,
legisla a partir do reconhecimento da existência de três classes distintas: os
ricos, o povo e os escravos. Os primeiros com mãos privilégios e obrigações
(pelo menos em teoria); os ricos pagavam mais impostos, mas um delito contra
eles seria, reconhecidamente, punido de forma mais severa; os escravos, que
tinham direitos delimitados em lei (não eram apenas um objeto, como diria Aristóteles,
na Grécia), podiam casar-se com uma mulher livre e possuir bens, mas eram
marcados como gado, já que não deixavam de ser propriedade de alguém.
A mulher tinha grande independência
com relação ao marido, administrando o dote que recebia do pai quando do
casamento, podendo assumir cargos públicos e demandar em juízo. O marido tinha
o direito de castigá-la em caso de infidelidade e de tomar uma esposa secundária
(concubina), a qual, contudo, não teria os mesmos direitos da primeira. Os
filhos varões herdavam a fortuna do pai, que deixava sempre um dote para a
filha.
As terras e demais propriedades
podiam pertencer ao Estado, ao templo ou a particulares. Todos deveriam
permitir a passagem dos dutos de água pelas suas propriedades, assim como zelar
pela manutenção dos canais, mas fora isso os particulares tinham liberdade
formal para dispor de seus bens.
As terras reais eram cultivadas
mediante um complexo sistema de posse/propriedade, que incluía desde rendeiros
(que pagavam um aluguel pelos lotes) e colonos (que pagavam em espécie) até
homens de corvéia (que não tinham título regular) e funcionários públicos (que
em troca ofereciam seus serviços ao rei). Há os que encontrem identificação
entre o que ocorria na Mesopotâmia e o sistema feudal; trata-se, porém, de uma
opção fácil, mas leviana, de identificar o que não é escravista, capitalista ou
socialista como feudal. Basta ler um pouco sobre feudalismo e fazer uma ligeira
apreciação dos documentos babilônicos para ver que se trata de formações
sociais muito diferentes.
A importância dada ao comércio
pode ser avaliada pelo papel do tamkarum,
misto de mercador, atacadista, usuário e funcionário do governo. Auxiliava na
arrecadação de taxas, comprava em nome do rei e emprestava dinheiro para os
agricultores. As taxas deviam ser escorchantes, muitas vezes difíceis de serem
pagas, pois encontramos várias vezes documentos em que o rei decretava a abolição
das dívidas dos súditos para tranqüilizar a população e permitir a continuidade
do trabalho produtivo. Não se tratava de generosidade, mas de não se matar a
galinha dos ovos de ouro. Hamurábi, em seu código, intervém de forma enérgica
na economia, estabelecendo regras de trabalho, valores para aluguéis e
arrendamento de terras e animais, salários e normas de comércio.
“ – Se um homem se apresenta como
testemunha de acusação e não prova o que disse, se o processo é uma causa de
vida ou de morte, este homem é passível de morte.
- Se um homem roubou o tesouro do
deus ou do palácio, este homem é passível de morte e aquele que recebeu o
objeto roubado também é passível de morte.
- Se um homem furar o olho de um
homem livre, furar-se-lhe-á um olho.
- Se ele furar o olho de um
escravo alheio ou quebra um membro ao escravo alheio, deverá pagar a metade do
seu preço.
- Se um arquiteto constrói uma
casa para alguém, porém não a faz sólida, resultando daí que a casa venha a
ruir e matar o proprietário, este arquiteto é passível de morte.
- Se, ao desmoronar ele mata o
filho do proprietário, matar-se-á o filho deste arquiteto.”
(Artigos do Código de Hamurábi citados In: GOTHIER, L.; TROUX, A. L’ Antiquité. Bélgica: H. Dessain, s/d.
p. 48-50.)
Não se trata, contudo, de um
Estado consolidado, organizado para durar muito, como o Egito. Sua estrutura
administrativa sustentava apenas um poder regional, mesmo assim com freqüência questionado
pelos vizinhos. Colocando de uma outra forma, há estados mesopotâmicos e não um
Estado mesopotâmico, definitivamente implantado e solidamente unificado.
Em outros aspectos, contudo, a
unificação existia. As línguas semíticas, não apresentam muita variação; a
cultura é semelhante, a atividade econômica praticamente igual: agricultores
nos campos, artesãos e comerciantes nas cidades.
Há, pois, aquilo que podemos
chamar de civilização mesopotâmica, mesmo que desacompanhada de um Estado
unificado. Civilização cuja influência iria marcar a região e a História por
muitos e muitos séculos.
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo:
Contexto, 2010. p. 80-82 e 84-85. (Repensando a história)
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