“O
povo assistiu aquilo bestializado, atônito,
surpreso, sem conhecer o que
significava”.
(Aristides Lobo, sobre a Proclamação da República)
Os
anos seguintes à Proclamação da República foram pautados por uma avalanche de
transformações. O processo de europeização, antes restrito ao ambiente
doméstico, transforma-se agora em obsessão de políticas públicas. Os centros
urbanos, as escolas, os hospitais e as prisões sofrem mudanças radicais em nome
do progresso científico.
O
período que se estende de fins do século XIX e inícios do século XX é chamado
de “belle époque”, pois apresentava uma visão progressista da sociedade.
Todavia, uma face não tão “belle” pontuou a realidade. Inflação, desemprego,
concentração de riquezas, falta de escolarização levaram os ex-escravos a uma
situação de penúria, além de sofrerem os estigmas e preconceitos da sociedade.
O racismo das elites brasileiras era uma forma de controlar os negros e
deixá-los como cidadãos de segunda categoria. Os ideólogos viam os negros e os
mestiços como criminosos, isto é, “classes perigosas”.
Essa
política racista foi aplicada nos espaços urbanos ligados ao sistema político e
econômico. O Rio de Janeiro colonial veio abaixo. A reurbanização – conhecida
popularmente como “bota-abaixo” – caracterizou-se pela abertura de avenidas e
construção de edifícios em estilo europeu. Isso implicou em desalojar as
famílias pobres que habitavam os inúmeros cortiços – negros, mulatos, imigrantes.
A cidade que se embelezava era a cidade que criava as favelas.
“Abriu-se
espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques,
como Botafogo, e se exprimia na rua do Ouvidor. O footing passou a ser feito nos 33 metros de largura da
avenida Central, quando não se preferia um passeio de carro pela avenida
Beira-Mar.” CARVALHO,
José Murilo de. Os bestializados: o Rio
de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 40.
Do
ponto de vista cultural, o racismo atuou no combate às tradições religiosas
afro (candomblés, capoeira, batuques, entrudo, culinária), que passaram a ser
práticas criminosas e colocados na ilegalidade.
No
limiar do século XX, nas principais cidades brasileiras, os mercados vendiam
peixes, carnes, galinhas, ovos, frutas e verduras. Vendedores ambulantes, de
casa em casa, vendiam tecidos, fitas, rendas. Nas ruas discutia-se política e
fazia-se negócios. Fábricas se instalaram. Estradas de ferro ligavam o interior
das cidades aos portos. As paisagens urbanas se transformavam: praças, ruas
pavimentadas e arborizadas iam surgindo. A entrada em larga de escala de
imigrantes trouxe novos hábitos: italianos e alemães modificaram o gosto
alimentar dos brasileiros, principalmente no Sul; os ingleses difundiram o
gosto pelos esportes; os norte-americanos influenciaram com sua música e o
cinema. Surgiram palacetes italianos, chalés alemães e suíços; as residências
passaram a ter jardins. A vida social ganhava novos ares: reuniões dançantes em
clubes recreativos, concertos de bandas nos coretos das praças, piqueniques,
jogos e competições, sessões de circo, espetáculos de teatro e ópera, regatas,
footing... À noite, após os espetáculos teatrais, as pessoas freqüentavam os
restaurantes e os cafés. Livrarias tornaram-se ponto de encontro de escritores,
estudantes, jornalistas. No século XX ocorrem mudanças consideráveis. Jornais,
revistas, rádio, cinema, televisão permitem contatos internos e externos entre
pessoas, povos e culturas.
Todavia,
essas transformações de reurbanização e embelezamento das cidades, não
ocorreram de forma pacífica. Levantes coletivos ocorreram por toda a parte,
como o Quebra-Quilos (contra a adoção do novo sistema métrico francês). Foi uma
revolta social contra a europeização. O povo atacou os comerciantes e os
fazendeiros, queimando documentos das câmaras e dos cartórios. Nas feiras, os
pesos e medidas foram destruídos.
No
campo eclodem movimentos messiânicos, como Canudos (Bahia) e Contestado (Santa
Catarina/Paraná). Eram movimentos que lutavam pela terra, contra a República e
contra a hegemonia de empresas estrangeiras, notadamente as inglesas e
norte-americanas. Ambos foram alvos de implacável violência repressiva por
parte do governo republicano. Um verdadeiro massacre.
Nos
sertões nordestinos surgiram grupos armados que assaltavam viajantes, fazendas,
vilas e cidades. Eram os bandos de cangaceiros. Esses bandidos sociais
costumavam saquear os armazéns e distribuir os alimentos para os mais pobres.
Muitos cangaceiros também eram contratados pelos coronéis para eliminar
adversários políticos ou como milícias contra os coronéis rivais.
"Pra havê paz no
sertão
E as moças pudê prosá
E os rapaz pudê casá
E o povo pudê se ri
E os menino diverti
É preciso uma inleição
Pra fazê de Lampião
Gunvernador do Brasil”.
(Literatura de cordel)
No
Rio de Janeiro, em 1904, a
população levanta a bandeira contra a modernização imposta. Além de se
revoltarem contra a vacina obrigatória, a população revoltou-se contra o alto
custo de vida. Em 1910 foi a vez dos marinheiros se revoltarem contra os
castigos físicos impostos pela Marinha: era a Revolta da Chibata.
Na
região amazônica ocorreu o renascimento da escravização indígena. No
Centro-Sul, a ampliação da malha ferroviária incorporou as terras interioranas.
No estado de São Paulo ocorreram sucessivos massacres de caingangues. Em Santa Catarina os
xoklengs são exterminados. Era a República da “belle époque” das elites
racistas que viam nos negros, mestiços, pobres e índios seres inferiores.
Nos
centros urbanos os anarquistas deram dor de cabeça às elites. Eram, em sua
grande maioria, imigrantes italianos. A vida dos operários brasileiros nessa
época era desumana. Mulheres e crianças trabalhavam jornadas extensas – de 12 a 15 horas diárias -, ganhavam
salários menores do que os homens e não tinham qualquer direito trabalhista.
Greves, piquetes, sabotagens, manifestações foram formas de resistência dos
operários no início do processo de industrialização.
“Ali,
nesses caixotins humanos [dos subúrbios], é que se encontra a fauna menos
observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor londrino.
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que
habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de
escritórios, podemos deparar velhas fabricantes de rendas de bilros,
compradores de garrafas vazias, castradores de gatos, cães e galos,
mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de
profissões miseráveis que as nossas pequena e grande burguesias não podem
advinhar.” BARRETO,
Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma.
São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 107.
Além
dos anarquistas, os socialistas procuraram organizar a classe operária em
crescimento através de sindicatos. Uma greve geral eclodiu em 1917 na cidade de
São Paulo: foram 70 mil grevistas. As oligarquias foram obrigadas a dar 20% de
aumento salarial e sem demitir os grevistas.
O
coronelismo, as fraudes eleitorais – voto de cabresto, voto de bico-de-pena -,
os jagunços, a violência, a miséria de uma parcela considerável de excluídos,
os massacres das populações nativas, os estigmas contra os ex-escravos
caracterizaram as quatro décadas iniciais da República, sob a hegemonia dos dos
grandes proprietários de terras – a política do café-com-leite das oligarquias
paulista e mineira – e do capital norte-americano.
Em
1930 eclode uma revolução liderada pelas oligarquias dissidentes que leva ao
poder Getúlio Vargas, pondo fim à hegemonia da burguesia do café. A Era Vargas
(1930-1945) caracterizou-se por avanços na legislação trabalhista. Foi uma
época de modernizações conservadoras. Todavia, Vargas governou o Brasil como
ditador no período do Estado Novo (1937-1945). Nessa época aliou-se aos países
do Eixo. Olga Benário e Luís Carlos Prestes, lideranças comunistas, foram
presos. Havia uma intensa censura aos meios de comunicação. O grande escritor
Graciliano Ramos conheceu as masmorras. Lá, ele escreveu a grande obra
“Memórias do Cárcere”.
“[...]
foi em meio a um ambiente cultural pró-fascista que abriu caminho uma arte que
procurava exprimir a diversidade das vivências populares e os contrastes entre
riqueza e miséria. Com o rádio, a música popular brasileira ganhou cidadania.
Seus ritmos variados conquistaram as classes médias e penetraram nos salões
burgueses. O samba, substituto do maxixe, considerado marginal e próprio dos
malandros, legalizou-se e transformou-se na mais popular das expressões
musicais. O choro, as marchinhas, o baião e outros ritmos concorreram com as músicas
marciais e com o swing importado dos
Estados Unidos”. POMAR,
Wladimir. Era Vargas: a modernização
conservadora. São Paulo: Ática, 2008. p. 52.
O
fim da Segunda Guerra Mundial na Europa fez com que a sociedade brasileira
retornasse às ruas exigindo a redemocratização do país. Entre 1946 a 1964 a sociedade brasileira
retorna à normalidade “democrática”, com eleições periódicas, sem, no entanto,
conseguir consolidar a democracia, haja vista as tentativas golpistas em 1954 –
quando do suicídio de Vargas em seu segundo mandato – e, em 1961, quando da
renúncia de Jânio Quadros.
“Bossa nova mesmo é ser presidente
Desta terra descoberta por Cabral.
Para tanto basta ser, tão simplesmente,
Simpático, risonho, original.”
(Juca Chaves, Presidente bossa nova)
Em
1964, finalmente, lideranças políticas conservadoras da UDN, aliados às forças
militares e com o apoio dos Estados Unidos dão um golpe político-militar no
governo Jango em nome da liberdade, da ordem e da segurança nacional.
“[...]
em 1964 a
Nação recebeu um tiro no peito. Um tiro que matou a alma nacional [...]. Os
personagens que pareciam fazer parte da história brasileira, ou da História do
Brasil como nós imaginávamos, esses personagens de repente sumiram. Ou fora do
poder, ou presos ou mortos. E em seu lugar surgiram outros, que eu nunca sequer
percebera existir. Atos bárbaros que eu nunca tinha visto. Idiotas que nem
mereciam ser notados. [...] Aí me veio a percepção clara de que o Brasil tinha
mudado para sempre. [...] Havia sido cometido um assassinato político. Ali
morreu um país, morreu uma liderança popular, morreu um processo. Uma derrota
política da qual você jamais vai se recuperar nos mesmos termos. [...] Não se
matam somente pessoas, também se matam os países, os processos históricos.” SOUZA, Herbert de – o
Betinho. In: BARROS, Edgard Luiz de. Os
governos militares. São Paulo: Contexto, 1994. p. 13.
Instala-se
no país uma longa ditadura militar (1964-1985), com um cotidiano pautado pela
violência, prisões arbitrárias, repressão ao movimento estudantil, trabalhista
e movimentos populares, além de forte censura à imprensa e às artes. Há
resistências por parte de grupos ligados ao Partido Comunista: são as
guerrilhas urbanas e rurais. O regime militar exilou, prendeu, torturou e matou
centenas de brasileiros que lutaram pela liberdade. Ainda hoje há centenas de
desaparecidos políticos.
“Depoimento
(em 1970) de Maria Mendes Barbosa, 28
anos, professora presa em
Minas Gerais : [...] nua, foi obrigada a desfilar na presença
de todos, desta ou daquela forma, havendo, ao mesmo tempo, o capitão Portela,
nessa oportunidade, beliscando os mamilos da interrogada até quase produzir
sangue; que, além disso, [...] foi, através de um cacetete, tentada a violação
de seu órgão genital; que ainda, naquela oportunidade, os seus torturadores
faziam a autopromoção de suas possibilidades na satisfação de uma mulher, para
a interrogada, e depois fizeram uma espécie de sorteio para que ela,
interrogada, escolhesse um deles”. ARNS, P. Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 48.
No
início da década de 80 o regime entra em colapso. Movimentos
populares tomam as ruas na campanha das Diretas
Já.
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de "desinventar"
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal
("Apesar de você", Chico Buarque)
Em
1984 tem início o processo de redemocratização da sociedade brasileira,
processo esse que está em andamento, entre avanços e recuos. Nossa democracia é
recente e as instituições políticas ainda são frágeis, haja vista a falta de
ligação com a memória histórica de nosso passado recente.
“O
homo brasiliensis reproduzido pela
máquina modernizadora do governo pós-1964 ficou vazio de interesses culturais.
Bibliotecas, exposições de arte, espetáculos de dança e música, teatros,
produção massiva de livros e revistas, enfim, todas as formas de refinamento da
expressão artística não foram mantidas no horizonte de aspirações públicas como
prioritárias, segundo o planejamento socioeconômico posto em execução. Na verdade,
sequer constaram como atividades suplementares. Foram deslocadas para
significar meramente formas ornamentais da vida.
Extraída
a dimensão política do cidadão, pouco restou para a área estética da cultura.
Retirado do cidadão o acesso à consciência de si, ele ficou encarcerado, sem
força objetiva para se libertar, pois somente na prática política a sua
consciência se desdobraria em ação libertadora.” LUCAS, Fábio. A crise da cultura literária
no Brasil pós-1964. In: SOSNOWSKI, S.; SCHARTZ, I. (Orgs.) Brasil: o Trânsito da Memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 135-136.
© 2015 by Orides Maurer Jr.
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