"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

A vida cotidiana na República


“O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, 
surpreso, sem conhecer o que significava”. 
(Aristides Lobo, sobre a Proclamação da República)


Os anos seguintes à Proclamação da República foram pautados por uma avalanche de transformações. O processo de europeização, antes restrito ao ambiente doméstico, transforma-se agora em obsessão de políticas públicas. Os centros urbanos, as escolas, os hospitais e as prisões sofrem mudanças radicais em nome do progresso científico.

O período que se estende de fins do século XIX e inícios do século XX é chamado de “belle époque”, pois apresentava uma visão progressista da sociedade. Todavia, uma face não tão “belle” pontuou a realidade. Inflação, desemprego, concentração de riquezas, falta de escolarização levaram os ex-escravos a uma situação de penúria, além de sofrerem os estigmas e preconceitos da sociedade. O racismo das elites brasileiras era uma forma de controlar os negros e deixá-los como cidadãos de segunda categoria. Os ideólogos viam os negros e os mestiços como criminosos, isto é, “classes perigosas”.

Essa política racista foi aplicada nos espaços urbanos ligados ao sistema político e econômico. O Rio de Janeiro colonial veio abaixo. A reurbanização – conhecida popularmente como “bota-abaixo” – caracterizou-se pela abertura de avenidas e construção de edifícios em estilo europeu. Isso implicou em desalojar as famílias pobres que habitavam os inúmeros cortiços – negros, mulatos, imigrantes. A cidade que se embelezava era a cidade que criava as favelas.

“Abriu-se espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se exprimia na rua do Ouvidor. O footing passou a ser feito nos 33 metros de largura da avenida Central, quando não se preferia um passeio de carro pela avenida Beira-Mar.” CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 40.

Do ponto de vista cultural, o racismo atuou no combate às tradições religiosas afro (candomblés, capoeira, batuques, entrudo, culinária), que passaram a ser práticas criminosas e colocados na ilegalidade.

No limiar do século XX, nas principais cidades brasileiras, os mercados vendiam peixes, carnes, galinhas, ovos, frutas e verduras. Vendedores ambulantes, de casa em casa, vendiam tecidos, fitas, rendas. Nas ruas discutia-se política e fazia-se negócios. Fábricas se instalaram. Estradas de ferro ligavam o interior das cidades aos portos. As paisagens urbanas se transformavam: praças, ruas pavimentadas e arborizadas iam surgindo. A entrada em larga de escala de imigrantes trouxe novos hábitos: italianos e alemães modificaram o gosto alimentar dos brasileiros, principalmente no Sul; os ingleses difundiram o gosto pelos esportes; os norte-americanos influenciaram com sua música e o cinema. Surgiram palacetes italianos, chalés alemães e suíços; as residências passaram a ter jardins. A vida social ganhava novos ares: reuniões dançantes em clubes recreativos, concertos de bandas nos coretos das praças, piqueniques, jogos e competições, sessões de circo, espetáculos de teatro e ópera, regatas, footing... À noite, após os espetáculos teatrais, as pessoas freqüentavam os restaurantes e os cafés. Livrarias tornaram-se ponto de encontro de escritores, estudantes, jornalistas. No século XX ocorrem mudanças consideráveis. Jornais, revistas, rádio, cinema, televisão permitem contatos internos e externos entre pessoas, povos e culturas.

Todavia, essas transformações de reurbanização e embelezamento das cidades, não ocorreram de forma pacífica. Levantes coletivos ocorreram por toda a parte, como o Quebra-Quilos (contra a adoção do novo sistema métrico francês). Foi uma revolta social contra a europeização. O povo atacou os comerciantes e os fazendeiros, queimando documentos das câmaras e dos cartórios. Nas feiras, os pesos e medidas foram destruídos.

No campo eclodem movimentos messiânicos, como Canudos (Bahia) e Contestado (Santa Catarina/Paraná). Eram movimentos que lutavam pela terra, contra a República e contra a hegemonia de empresas estrangeiras, notadamente as inglesas e norte-americanas. Ambos foram alvos de implacável violência repressiva por parte do governo republicano. Um verdadeiro massacre.

Nos sertões nordestinos surgiram grupos armados que assaltavam viajantes, fazendas, vilas e cidades. Eram os bandos de cangaceiros. Esses bandidos sociais costumavam saquear os armazéns e distribuir os alimentos para os mais pobres. Muitos cangaceiros também eram contratados pelos coronéis para eliminar adversários políticos ou como milícias contra os coronéis rivais.

"Pra havê paz no sertão
E as moças pudê prosá
E os rapaz pudê casá
E o povo pudê se ri
E os menino diverti
É preciso uma inleição
Pra fazê de Lampião
Gunvernador do Brasil”.
(Literatura de cordel)

No Rio de Janeiro, em 1904, a população levanta a bandeira contra a modernização imposta. Além de se revoltarem contra a vacina obrigatória, a população revoltou-se contra o alto custo de vida. Em 1910 foi a vez dos marinheiros se revoltarem contra os castigos físicos impostos pela Marinha: era a Revolta da Chibata.

Na região amazônica ocorreu o renascimento da escravização indígena. No Centro-Sul, a ampliação da malha ferroviária incorporou as terras interioranas. No estado de São Paulo ocorreram sucessivos massacres de caingangues. Em Santa Catarina os xoklengs são exterminados. Era a República da “belle époque” das elites racistas que viam nos negros, mestiços, pobres e índios seres inferiores.

Nos centros urbanos os anarquistas deram dor de cabeça às elites. Eram, em sua grande maioria, imigrantes italianos. A vida dos operários brasileiros nessa época era desumana. Mulheres e crianças trabalhavam jornadas extensas – de 12 a 15 horas diárias -, ganhavam salários menores do que os homens e não tinham qualquer direito trabalhista. Greves, piquetes, sabotagens, manifestações foram formas de resistência dos operários no início do processo de industrialização.

“Ali, nesses caixotins humanos [dos subúrbios], é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor londrino. Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de escritórios, podemos deparar velhas fabricantes de rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de gatos, cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de profissões miseráveis que as nossas pequena e grande burguesias não podem advinhar.” BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 107.

Além dos anarquistas, os socialistas procuraram organizar a classe operária em crescimento através de sindicatos. Uma greve geral eclodiu em 1917 na cidade de São Paulo: foram 70 mil grevistas. As oligarquias foram obrigadas a dar 20% de aumento salarial e sem demitir os grevistas.

O coronelismo, as fraudes eleitorais – voto de cabresto, voto de bico-de-pena -, os jagunços, a violência, a miséria de uma parcela considerável de excluídos, os massacres das populações nativas, os estigmas contra os ex-escravos caracterizaram as quatro décadas iniciais da República, sob a hegemonia dos dos grandes proprietários de terras – a política do café-com-leite das oligarquias paulista e mineira – e do capital norte-americano.

Em 1930 eclode uma revolução liderada pelas oligarquias dissidentes que leva ao poder Getúlio Vargas, pondo fim à hegemonia da burguesia do café. A Era Vargas (1930-1945) caracterizou-se por avanços na legislação trabalhista. Foi uma época de modernizações conservadoras. Todavia, Vargas governou o Brasil como ditador no período do Estado Novo (1937-1945). Nessa época aliou-se aos países do Eixo. Olga Benário e Luís Carlos Prestes, lideranças comunistas, foram presos. Havia uma intensa censura aos meios de comunicação. O grande escritor Graciliano Ramos conheceu as masmorras. Lá, ele escreveu a grande obra “Memórias do Cárcere”.

“[...] foi em meio a um ambiente cultural pró-fascista que abriu caminho uma arte que procurava exprimir a diversidade das vivências populares e os contrastes entre riqueza e miséria. Com o rádio, a música popular brasileira ganhou cidadania. Seus ritmos variados conquistaram as classes médias e penetraram nos salões burgueses. O samba, substituto do maxixe, considerado marginal e próprio dos malandros, legalizou-se e transformou-se na mais popular das expressões musicais. O choro, as marchinhas, o baião e outros ritmos concorreram com as músicas marciais e com o swing importado dos Estados Unidos”. POMAR, Wladimir. Era Vargas: a modernização conservadora. São Paulo: Ática, 2008. p. 52.

O fim da Segunda Guerra Mundial na Europa fez com que a sociedade brasileira retornasse às ruas exigindo a redemocratização do país. Entre 1946 a 1964 a sociedade brasileira retorna à normalidade “democrática”, com eleições periódicas, sem, no entanto, conseguir consolidar a democracia, haja vista as tentativas golpistas em 1954 – quando do suicídio de Vargas em seu segundo mandato – e, em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros.

“Bossa nova mesmo é ser presidente
Desta terra descoberta por Cabral.
Para tanto basta ser, tão simplesmente,
Simpático, risonho, original.”
(Juca Chaves, Presidente bossa nova)

Em 1964, finalmente, lideranças políticas conservadoras da UDN, aliados às forças militares e com o apoio dos Estados Unidos dão um golpe político-militar no governo Jango em nome da liberdade, da ordem e da segurança nacional.

“[...] em 1964 a Nação recebeu um tiro no peito. Um tiro que matou a alma nacional [...]. Os personagens que pareciam fazer parte da história brasileira, ou da História do Brasil como nós imaginávamos, esses personagens de repente sumiram. Ou fora do poder, ou presos ou mortos. E em seu lugar surgiram outros, que eu nunca sequer percebera existir. Atos bárbaros que eu nunca tinha visto. Idiotas que nem mereciam ser notados. [...] Aí me veio a percepção clara de que o Brasil tinha mudado para sempre. [...] Havia sido cometido um assassinato político. Ali morreu um país, morreu uma liderança popular, morreu um processo. Uma derrota política da qual você jamais vai se recuperar nos mesmos termos. [...] Não se matam somente pessoas, também se matam os países, os processos históricos.” SOUZA, Herbert de – o Betinho. In: BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo: Contexto, 1994. p. 13.

Instala-se no país uma longa ditadura militar (1964-1985), com um cotidiano pautado pela violência, prisões arbitrárias, repressão ao movimento estudantil, trabalhista e movimentos populares, além de forte censura à imprensa e às artes. Há resistências por parte de grupos ligados ao Partido Comunista: são as guerrilhas urbanas e rurais. O regime militar exilou, prendeu, torturou e matou centenas de brasileiros que lutaram pela liberdade. Ainda hoje há centenas de desaparecidos políticos.

“Depoimento (em 1970) de Maria Mendes Barbosa, 28 anos, professora presa em Minas Gerais: [...] nua, foi obrigada a desfilar na presença de todos, desta ou daquela forma, havendo, ao mesmo tempo, o capitão Portela, nessa oportunidade, beliscando os mamilos da interrogada até quase produzir sangue; que, além disso, [...] foi, através de um cacetete, tentada a violação de seu órgão genital; que ainda, naquela oportunidade, os seus torturadores faziam a autopromoção de suas possibilidades na satisfação de uma mulher, para a interrogada, e depois fizeram uma espécie de sorteio para que ela, interrogada, escolhesse um deles”. ARNS, P. Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 48.

No início da década de 80 o regime entra em colapso. Movimentos populares tomam as ruas na campanha das Diretas Já.

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão

Apesar de você
amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro

Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de "desinventar"
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria

Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia

Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal
("Apesar de você", Chico Buarque)

Em 1984 tem início o processo de redemocratização da sociedade brasileira, processo esse que está em andamento, entre avanços e recuos. Nossa democracia é recente e as instituições políticas ainda são frágeis, haja vista a falta de ligação com a memória histórica de nosso passado recente.

O homo brasiliensis reproduzido pela máquina modernizadora do governo pós-1964 ficou vazio de interesses culturais. Bibliotecas, exposições de arte, espetáculos de dança e música, teatros, produção massiva de livros e revistas, enfim, todas as formas de refinamento da expressão artística não foram mantidas no horizonte de aspirações públicas como prioritárias, segundo o planejamento socioeconômico posto em execução. Na verdade, sequer constaram como atividades suplementares. Foram deslocadas para significar meramente formas ornamentais da vida.



Extraída a dimensão política do cidadão, pouco restou para a área estética da cultura. Retirado do cidadão o acesso à consciência de si, ele ficou encarcerado, sem força objetiva para se libertar, pois somente na prática política a sua consciência se desdobraria em ação libertadora.” LUCAS, Fábio. A crise da cultura literária no Brasil pós-1964. In: SOSNOWSKI, S.; SCHARTZ, I. (Orgs.) Brasil: o Trânsito da Memória. São Paulo: Edusp, 1994. p. 135-136.

© 2015 by Orides Maurer Jr.

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