Casamento de D. João I e Filipa de Lencastre. Chronique de
France et d' Angleterre, Jean Wavrin, século XV
Em terceiro lugar, trata-se de união indissolúvel. Ao
contrário dos vários tipos de aliança conjugal na Roma antiga, onde a separação
do casal podia ocorrer sem maiores formalidades, o casamento cristão em tese só
se desfaz com a morte de uma das partes ("não separe o homem o que Deus
uniu", Mateus 19, 6). A Igreja medieval aceitava, no
entanto, a anulação do casamento quando ele não era fisicamente consumado por
incapacidade de um dos cônjuges. Ou quando ele unira pessoas aparentadas (por
sangue ou por afinidade, como padrinhos e madrinhas), o que feria o grande tabu
do incesto, já presente no Antigo Testamento e que ganharia peso ainda maior na
Idade Média. A literatura expressou esse forte sentimento contrário ao incesto,
por exemplo, no relato de Filipe de Beaumanoir, por volta de 1230, La
manekine, cuja heroína amputa a própria mão para afastar o desejo proibido
de seu pai. Um casamento podia ainda ser desfeito por outros motivos (bigamia,
traição feminina etc), dependendo da influência da parte interessada nisso.
Em quarto lugar, o casamento é exogâmico. Na tentativa de
dificultar o incesto e de estimular a circulação das riquezas, impedindo sua
excessiva concentração em poucas famílias, a Igreja determinou que os noivos
não tivessem parentesco abaixo do sétimo grau. De fato, na aristocracia o
casamento era um importante negócio, que afetava não apenas as pessoas
diretamente envolvidas, mas todo o clã. Se a mulher era a herdeira dos bens
patrimoniais de sua família, precisava de um marido para administrar o senhorio
e ser responsável pelas relações feudo-vassálicas relativas àquela terra. Se
ela não era a herdeira principal, ao se casar (geralmente aos 13 ou 14 anos)
entrava para a família do marido e levava um dote que era uma antecipação de
sua parte na herança. Na burguesia, muitos empreendimentos comerciais ou
artesanais eram ampliados por meio de alianças matrimoniais entre duas
famílias. No campesinato, um servo que se casava com mulher de outro senhorio
devia determinada taxa por tirar mão de obra de seu senhor.
Qualquer que fosse a categoria social das pessoas, desde
fins do século XI ou princípios do XII surgiu o ritual eclesiástico do
casamento. Ele tornou-se obrigatório apenas no século XVI, com o Concílio de
Trento, porém difundia-se cada vez mais desde a Idade Média Central. Seus
componentes já então estavam bastante uniformizados. Sob o pórtico da igreja
ocorriam os esponsais, uma troca de juramentos assistida pelo padre. Vinha a
seguir o período dos banhos (geralmente de 40 dias), isto é, da publicação da
intenção de casamento para que se verificassem eventuais impedimentos.
A cerimônia que selava o casamento dava-se no pórtico da
igreja, com os noivos quase sempre vestidos de vermelho, coroados de flores, a
moça com os cabelos soltos em sinal de virgindade ou com um véu ligeiro.
Novamente se trocavam juramentos - prática presente em todos os aspectos da
vida social medieval -, seguia-se a bênção do casal e a troca de anéis.
Entrava-se depois na igreja para a bênção nupcial e a missa, a que os esposos
assistiam cobertos por um mesmo véu. Iam depois até o altar da Virgem, ao qual
ofereciam uma vela e onde, em algumas regiões, a noiva fiava por alguns
instantes. Tudo era acompanhado por muitos padrinhos e madrinhas, testemunhos
indispensáveis para uma época pouco ou nada acostumada ao registro escrito e
oficial de atos importantes da vida social.
Saindo da igreja, os recém-casados e seus parentes iam até o
cemitério rezar sobre os túmulos dos antepassados, que não podiam ficar
excluídos de uma cerimônia central para a solidariedade familiar e o espírito
do clã. Finalmente, os novos esposos iam para casa, onde os amigos jogavam
sobre eles punhados de trigo, rito propiciatório que deveria estimular a
fertilidade material e física do casal. Começava então a festa. No caso dos
nobres, ela era suntuosa. mesmo porque o casamento da filha mais velha de um
senhor feudal era um dos quatro momentos em que os vassalos deviam ajudá-la
financeiramente. No caso dos burgueses, sempre desejosos de imitar o padrão de
vida nobiliárquico, a festa também tendia a ser farta, dependendo, é claro, dos
recursos das famílias. No caso dos camponeses, toda a aldeia, inclusive o
senhor, participava das bodas.
O reconhecimento social de que aquelas duas pessoas formavam
um casal e poderiam manter relações sexuais não lhes dava, porém, liberdade
total para tanto. Determinados dias da semana (em especial o sagrado domingo) e
certos períodos do ano (festas religiosas, sobretudo a Quaresma) estavam
interditados ao sexo. Jean Louis Flandrin calculou que na Alta Idade Média
cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relações sexuais,
sem contar os dias de menstruação, gravidez e amamentação, igualmente de
abstinência. A transgressão era punida de forma variável conforme os locais e
as épocas. mas a média girava em torno de 20 a 40 dias de penitência, jejum alimentar
e/ou continência sexual. Ademais, o sexo deveria ser apenas vaginal, visando à
procriação, a mulher colocada debaixo do homem e no escuro, para se evitar a
visão da nudez. O sexo oral e sodomita, a magia para atrair o desejo de alguém,
as práticas anticoncepcionais e abortivas, as relações incestuosas e adúlteras
eram pecados duramente castigados: de seis a 15 anos de jejum e de excomunhão,
geralmente acompanhados de interdição perpétua de qualquer relação sexual e de
casamento.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do
ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 128-130.
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