Festa de beber dos coroados, E. Meyer
Na Europa, as bebidas mais valorizadas foram as fermentadas,
consideradas desde a Antiguidade até a época moderna como superiores à água
pura, uma vez que esta poderia estar contaminada, e os vinhos ou as cervejas
tinham a capacidade de purificá-las, combatendo alguns dos micróbios
transmissores de doenças. Além disso, a fermentação sempre foi vista como um
processo mágico, um cozimento sem fogo, que produz calor, gases, efervescência,
borbulhas. Por isso, certas civilizações, especialmente entre os ameríndios,
relacionam-na ao sêmen humano e à formação da própria humanidade, constituindo,
assim, o alimento cultural por excelência. [...]
No caso dos indígenas do Brasil, havia diversas substâncias
essenciais, entre as quais o tabaco, os rapés alucinógenos (paricá e yopo), as
bebidas enteogênicas, como a ayahuasca, mas, antes de tudo, por sua difusão
extremamente ampla, os diversos líquidos fermentados (pouquíssimos foram os
grupos indígenas amazônicos ou litorâneos que desconheceram-nas, diferentemente
dos norte-americanos ou do extremo sul patagônico).
Um grande cientista brasileiro das drogas e bebidas, o
pernambucano Oswaldo Gonçalves de Lima, cujo reconhecimento de suas
contribuições originais ainda é insuficiente, estudou profundamente todos esses
processos de fermentação tanto no Brasil como em outros países, especialmente o
México. Escreveu, assim, os trabalhos pioneiros da etnozimologia (estudo das
fermentações tradicionais), dando conta das formas antigas e contemporâneas de
produção dessas bebidas como resultado da ação de bactérias e leveduras.
No nível mais simples, encontramos os bebedores de seivas de
palmeiras, muitas vezes por meio de um buraco diretamente no tronco, em que, em
poucas horas, o líquido leitoso e doce fermenta, podendo ser absorvido da
própria planta (tal como faziam os guatós, do Pantanal). O mel também servia
para essa finalidade, misturado com a cera em água, produzindo um hidromel de fraco
teor alcoólico, especialmente utilizado pelos tapuias do sertão, assim como por
outros hábeis colhedores de colmeias, como os kaingang do sul.
A fermentação por “salivação e esputo”, ou seja, por
mascagem da mandioca, feita em geral por mulheres, é um dos métodos mais
conhecidos, mas também se produzem bebidas alcoólicas por meio da fermentação
de beijus, como é o caso do pajauaru, especialmente na região do Rio Negro.
Nessa técnica, a mandioca é mergulhada por alguns dias na água e lama de um
riacho e se torna “puba”, um pouco apodrecida, tornando assim mais fácil a
amilase, ou seja, a quebra dos amidos.
Entre os índios brasileiros, o principal fermentado era o
cauim. Assim eram chamados nas regiões litorâneas habitadas pelos tupinambás
todos os sucos da mandioca e das frutas doces e generosas, como o ananás e o
caju, mas também o cacau, a mangaba, a jabuticaba, entre tantas outras. Outro
método era de frutas liquefeitas e trituradas com água que fermentavam e
precisavam ser rapidamente consumidas antes de se estragar. Fossem fabricadas
com mandioca, milho ou frutas, alcançavam um teor alcoólico máximo de 7%, no
caso do abacaxi (o mais rico em açúcares), variando de acordo com o teor de
açúcares do produto usado, o que é a característica geral de todos os
fermentados.
Índios
preparando e consumindo o cauim, detalhe da "America" de Jodocus
Hondius, ca. 1606
Outros métodos também desenvolvidos, além da insalivação,
eram o da fabricação de beijus, que, deixados embolorar, ficavam sacarificados
pela ação do mofo e depois, misturados à água, fermentavam, constituindo o
caxiri (especialmente nas regiões do Rio Negro, influenciadas pela cultura
aruaque), o mucururú, a caiçuma e o pajauaru, ou então a massa da farinha de
mandioca ou milho era envolta em folhas de bananeira (a técnica da moqueca ou
da pamonha brasileira ou, ainda, da huminta andina) e também deixada embolorar
para depois ser transformada em uma bebida fermentada, tal como o masato
amazônico.
Essa busca, em todos os produtos da natureza, de
matérias-primas transformáveis em bebidas fermentadas, foi uma das
características mais amplamente difundida entre os indígenas americanos que,
com exceção daqueles dos extremos sul e norte, fabricaram em quase todas as
regiões licores alcoólicos, cuja denominação mais geral, além de cauim, foi, a
partir das regiões da colonização espanhola, chicha. O mais provável é que o
termo seja caribenho, como registrou no século XVI o cronista Gonzalo Fernandez
Oviedo. Passou a designar os diversos fermentados americanos, o mais comum
sendo o de milho germinado (maltado), mas podendo ser feito também de mandioca,
batatas, pinhões, cogumelos e todos os tipos de frutas. Essa propensão a também
fazer de todos os produtos comestíveis fontes para a fabricação de bebidas não
escapou aos olhos dos primeiros europeus. O próprio Colombo, ao chegar na Ilha
de La Hispaniola
(atual República Dominicana e Haiti), registrou que “do que fazem pão, fazem
vinho”.
No processo de colonização ocorreu uma contaminação dos
brancos, africanos e mestiços pelos rituais idolátricos indígenas, em que o
consumo sagrado do cauim, do pulque ou da chicha muitas vezes é acompanhado de
outras substâncias psicoativas ainda mais fortes, mais desconhecidas e mais
inquietantes. Isso tornou-se um pesadelo para as autoridades eclesiásticas, que
desencadearam, com seus aparelhos policiais inquisitoriais, inúmeras campanhas
de “extirpação de idolatrias” em que o alvo era sempre a embriaguez,
especialmente no Peru no século XVII, quando as festas (taquis) e bebidas
(chicha) dos índios eram perseguidas como depositárias de antigas tradições
sobreviventes que deveriam, para a boa cristianização, ser completamente
extintas.
Sempre há embriaguez em seus pecados, diziam dos indígenas
as autoridades eclesiásticas. Por isso, buscavam proibir suas festas, rituais e
cerimônias em geral e, especialmente, as que eram alimentadas pelo calor dessas
poções de ebriedade. A embriaguez indígena passou a ser vista por quase todos os
cronistas europeus como a causa principal da idolatria. O padre jesuíta José de
Acosta, por exemplo, afirmará, em relação ao Peru, que tal não só é um pecado,
como também é a causa principal de todos os outros.
Essa embriaguez descontrolada que atingiu os indígenas
americanos, livres dos antigos controles tradicionais, abrangeu ainda os
colonizadores europeus, assim como os escravos trazidos da África, que já
possuíam o domínio das técnicas da fermentação, produzindo o pombe, cerveja de
sorgo, assim como os diversos vinhos da seiva de palmeira, chamados de malafo,
mas só tomaram contato com o vinho de uvas e sobretudo com os destilados, a
partir do contato com os europeus.
O colapso das grandes civilizações ameríndias se deveu, em
grande parte, ao choque biológico com as novas doenças europeias, além da
desarticulação dos sistemas sociais existentes. No entanto, contemporâneos
dessa que talvez tenha sido a mais grave hecatombe demográfica conhecida (morte
de cerca de 90% da população original), buscaram outras explicações para o
enorme despovoamento. Generalizada em toda a América pelos colonizadores
europeus, uma delas culpava os supostos maus hábitos indígenas por essa
catástrofe. No Peru, o padre Lizárraga afirmava que o alcoolismo e a sodomia
foram as causas da despovoação das Índias. O demônio teria estabelecido seu
império sobre aquela gente e todas as suas crenças e devoções foram
identificadas a ele pelos missionários. O próprio conhecimento das plantas
inebriantes teria sido transmitido pelo demônio aos povos originários, enquanto
as consideradas puramente medicinais teriam outra fonte de saber.
Os usos de bebidas fermentadas e outras drogas foram objeto
de grandes discussões teológicas entre vários autores durante o século XVI, com
o dominicano Bartolomé de Las Casas defendendo os indígenas e sendo tolerante
com suas formas de embriaguez e até com suas “superstições”, enquanto outros
teólogos, que predominariam, viam em suas festas, bebedeiras, adivinhações e
cultos de lugares, plantas, animais e coisas manifestações demoníacas que
deveriam ser extirpadas. [...]
O uso em si das bebidas não era condenado, pois os europeus
também o faziam, mas sim a busca deliberada dos “transtornos que afetam a
mente”, dos efeitos psicoativos das diversas manifestações e formas das
ebriedades, consideradas todas, fossem de bebidas fermentadas, fossem de
tabaco, de coca ou de ololiuqui como “borrachez”, sendo assim censuradas como
embriaguez no sentido geral de alteração voluntária do estado mental, que era
exatamente a marca mais característica das formas de beber indígenas, intensas
e extremadas. A perseguição à embriaguez buscada de forma deliberada e
sistemática, em rituais de convívio, com significados de devoção e
hospitalidade, foi uma das grandes obsessões dos colonizadores das Américas.
No âmbito do mundo luso-brasileiro, João Azevedo Fernandes
reuniu boa parte das evidências existentes nas fontes primárias a respeito da
perseguição implacável dos colonizadores, especialmente os clérigos, para com
os ritos da cauinagem, vistos como a verdadeira religião sem templo dos
aborígenes. O antigo “regime etílico” indígena, regrado, ritualizado e servindo
de elemento central das culturas nativas, foi praticamente destruído,
interditado e substituído pelos derivados da cana-de-açúcar, sobretudo a
cachaça.
Henrique Carneiro. O corpo sedento. In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Márcia (Orgs.). História
do Corpo no Brasil. São Paulo: UNESP, 2011.
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