Coito, Giovannino de' Grassi
Em uma sociedade tão fortemente penetrada pelos valores da
Igreja, quer dizer, da comunidade cristã, muitas atividades anteriormente
consideradas de foro pessoal passaram, pelo menos até o século XIII, a ser
vistas como de interesse comunitário. Nesse processo de levar para a esfera
pública as coisas privadas, o sexo foi talvez o mais atingido. Essa mudança de
comportamento começara na verdade antes do cristianismo, com certas correntes
filosóficas pagãs defendendo uma vida mais regrada, mais afastada dos prazeres
materiais considerados animalizadores do ser humano. Como em vários outros
aspectos, o surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psicológica e
comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso. Tornado religião oficial
em 392 e cada vez mais institucionalizado pela Igreja, já na primeira Idade
Média o cristianismo pôde impor seus valores.
A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade
tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua mãe. Vinha
depois a castidade: quem já havia pecado podia em parte compensar essa falta
abstendo-se de sexo pelo restante da vida. Os relatos hagiográficos de toda a
Idade Média, sobretudo de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de
santas que morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao se
converter ao cristianismo abandonaram a vida conjugal. No entanto, esse
desprendimento não podia ser adotado pela maioria das pessoas. Era mesmo
perigoso que gente sem o suficiente autocontrole tentasse levar uma vida de
abstinência sexual. São Paulo já definira a questão no século I: "É melhor
casar do que abrasar" (1 Coríntios 7,9). A vida sexual
era possível para o cristão médio, desde que ocorresse nos quadros de uma
relação definida e supervisionada pela Igreja, o matrimônio.
Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos
fiéis não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais
afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado, mosteiros), mais os
medievos puderam viver de forma "pagã", no dizer da Igreja. Os
camponeses, em especial, superficialmente cristianizados até fins da Idade
Média em várias regiões, quase sempre escapavam aquele controle. Os
aristocratas, interessados em casamentos que garantissem bons dotes e grande
prole para dar continuidade à linhagem e herdar o patrimônio fundiário da
família, resistiram por muito tempo ao modelo de união sexual que a Igreja
determinava. Mesmo os clérigos não aderiram de bom gosto ao celibato
obrigatório imposto pela Reforma Gregoriana.
Assim, apenas ao longo do século XII, a Igreja pôde, com
dificuldade, completar a definição da única modalidade aceitável de vida sexual
cristã - o matrimônio, tornado um dos sacramentos. Ou seja, em primeiro lugar,
uma relação heterossexual. Combatia-se. assim, a prática da bestialidade (sexo
entre humano e animal), frequente no mundo antigo e no campesinato medieval.
Uma tradição mítica interpretava o versículo bíblico no qual Adão, ao ver Eva,
diz "desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (Gênesis,
2, 23), como prova de que ele anteriormente fazia sexo com animais. as únicas
companhias que tivera até então no Éden. O casamento cristão combatia
especialmente a homossexualidade, o pior pecado sexual possível, por visar
apenas ao prazer e não à procriação, como Deus determinara ao primeiro casal:
"Sejam fecundos e multipliquem-se" (Gênesis, 1, 28).
Outra passagem bíblica, muito citada pelo clero medieval, comprovava o horror
ao homossexualismo, difundido em Sodoma e Gomorra, cidades por essa razão
destruídas por Deus com enxofre e fogo (Gênesis, 18, 20-21; 19, 1-29).
Em segundo lugar, o matrimônio é uma relação monogâmica. Por
um lado, isso atendia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unidade
cosmológica, talvez como forma compensatória à grande diversidade da realidade
concreta do Ocidente, dividido em vários reinos, milhares de feudos, dezenas de
línguas e dialetos, diferentes liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana
tentou-se impor o rito galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se
concretizar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma só
Igreja, uma só fé, um Só governante secular. Por outro lado, a monogamia
respondia a uma lenta, mas inegável transformação na sensibilidade coletiva -
que a Igreja soube reconhecer e tornar lei - pela qual se passava a ver a
essência do casamento no consentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união
deveria ser construída a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses
políticos ou patrimoniais. Ora, com base no afeto conjugal, que é único (como o
dirigido aos pais e a Deus), concluiu-se pela exigência de um único parceiro.
FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do
ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 126-128.
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