Salão na Rue des Moulins, Toulose-Lautrec
Que a prostituição é popularmente conhecida como a profissão
"mais antiga do mundo", todos sabem. E, desde que o mundo é dito
civilizado, sempre houve prostitutas pobres e prostitutas de elite. O lado
desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a
que temos atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e
cultura, e também já foram associadas a deusas - manter relações sexuais com
elas era necessário para conseguir poder e respeito. As "mulheres da
vida" sempre tiveram um lugar na História, mas, ao longo dos anos, seu
status passou de respeitável à condenável.
Maria Regina Cândido, professora de graduação e de
pós-graduação em História, e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade
(NEA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a
conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo
sobre as prostitutas. "Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem
definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava
cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função", diz Maria
Regina.
Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada
à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades
sociais, explica Nickie Roberts, no livro As Prostitutas na História. Com tal
poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas,
cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande
Deusa, conhecida inicialmente como Inanna e mais tarde como Ishtar. Os homens,
ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade.
Foi essa preocupação com a prole que, mais tarde, levou ao surgimento das
sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.
Por volta de 3.000
a .C., tribos nômades passaram a criar gado e tornaram-se
conscientes do papel masculino na reprodução. As sociedades matriarcais da
deusa começaram a ser subjugadas. As primeiras civilizações da era histórica
desenvolveram-se na Mesopotâmia e no Egito, e nasceram desse levante. Novas
formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar
a sexualidade das mulheres, afirma a escritora. "Foi nesse momento da
história humana, em torno do segundo milênio a.C., que a instituição da
prostituição sagrada tornou-se visível e foi registrada pela primeira vez na
escrita", explica Nickie.
As grandes cidades da Mesopotâmia e do Egito continuaram
centralizadas nos templos da Grande Deusa. As sacerdotisas dos templos, que
participavam de rituais sexuais religiosos, ao mesmo tempo mulheres sagradas e
meretrizes, foram as primeiras prostitutas da História, conta Nickie Roberts. O
status dessas mulheres era elevado. Os reis precisavam buscar a benção da
deusa, por meio do sexo ritual com as sacerdotisas, para legitimar seu poder.
"Nessa época, as prostitutas do mais alto escalão do templo eram, por
direito nato, agentes poderosas e prestigiadas; não eram as meras vítimas
oprimidas dos homens, tão protegidas pelas feministas modernas", escreve
Nickie Roberts.
Foi nesse período, quando os homens começaram a tomar o
poder, que também surgiu a hierarquia entre as mulheres do templo, com um
escalão de prostitutas de classe alta, que mantiveram seus antigos poderes e
privilégios. As harimtu, que trabalhavam fora dos templos, foram as primeiras
prostitutas de rua. Ainda assim, a conexão entre sexo e religião persistia,
pois as meretrizes da rua continuavam a ser vistas como sagradas, protegidas de
Ishtar.
A divisão das mulheres em prostitutas e esposas vem desse
início da história patriarcal. Foi na antiga Suméria, por volta de 2.000 a .C., que surgiram as
primeiras leis segregando as duas. "Nessa época, já começava a ampliar a
lacuna entre as 'boas'- dóceis e obedientes - esposas e as 'más' - sexualmente
autônomas - prostitutas", diz Nickie.
A autora explica que a forma patriarcal de casamento, em que
o marido literalmente é dono da esposa e dos filhos, aprofundou mais ainda o
abismo entre a esposa e a prostituta, na medida em que as instituições
religiosas e políticas masculinas foram crescendo. "Ao mesmo tempo, as leis
que cercavam as prostitutas e o seu trabalho tornaram- se mais
opressivas", conta Nickie. Segundo ela, durante toda a história da
Mesopotâmia e do Egito, o sexo era ainda considerado sagrado e, apesar das
leis, não havia uma moralidade puritana a estigmatizar as mulheres que se
sustentavam vendendo sexo.
Julio Gralha, professor do NEA/UERJ, lembra que a visão
sobre as prostitutas da época é pouco documentada de forma escrita, mas pode
ser inferida pelas imagens das iconografias. "Pela análise da iconografia,
a prostituta existia no Egito e atuava de forma remunerada. Há contos
iconográficos, cômicos, em que a prostituta é vista como poderosa, o homem não
agüenta. Como aparecem o colar e outros símbolos ligados à deusa, elas são
vistas como protegidas. A prostituição não era algo repulsivo ou condenado pela
religião", diz Gralha.
Com o passar do tempo, a independência sexual e econômica da
prostituta tornou-se uma ameaça à autoridade patriarcal. Por isso, a religião
da deusa foi combatida pelos sacerdotes hebreus e, aos poucos, suprimida. Os
rituais sexuais viraram pecados graves e as sacerdotisas, pecadoras. "As
principais religiões patriarcais que se seguiram - o cristianismo e o islamismo
- reconheceram o impacto devastador do estigma da prostituta na divisão e
regulamentação das mulheres", explica Nickie Roberts.
A Grécia antiga foi uma típica sociedade patriarcal. As
mulheres não podiam participar da vida política e social. No entanto, como
aconteceu a todas as sociedades antigas, os primeiros habitantes da Grécia
foram povos adoradores da deusa, afirma Nickie. Os deuses masculinos só vieram
mais tarde, por volta de 2.000
a .C., com os invasores indo-europeus. As duas culturas
fundiram-se e produziram o híbrido que chegou até nós. Basta lembrar que Zeus,
divindade suprema indo-européia, casou-se com Hera, poderosa deusa sobrevivente
do culto anterior.
A negação total do poder da mulher na sociedade grega é
decorrente do governo de uma série de ditadores homens. Sólon, que governou
Atenas na virada do século VI a. C., foi o principal deles, tendo
institucionalizado os papéis das mulheres na sociedade grega. Passaram a
existir as "boas mulheres", submissas, e as outras.
Foi também Sólon quem, percebendo os lucros obtidos pelas
prostitutas - tanto as comerciais quanto as sagradas -, organizou o negócio,
criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado. Neles, havia grande
exploração das mulheres, que eram praticamente escravas. Junto com os bordéis
oficiais, muitas meretrizes independentes exerciam o seu comércio, apesar da
legislação de Sólon. "Pela primeira vez na História, as mulheres estavam sendo
cafetinadas - oficialmente. (...) Assim, de mãos dadas, nasceram a cafetinagem
estatal e privada", afirma Nickie.
Maria Regina Cândido, historiadora da UERJ, lembra que foi a
pressão sobre a terra, com o grande aumento da população grega, que levou Sólon
a criar os primeiros bordéis. Isso porque ele trouxe para a região estrangeiros
ceramistas, com o intuito de ensinar à população excedente uma nova atividade,
já que a agricultura não absorvia mais a todos. "Para que os estrangeiros
não molestassem as esposas e filhas de cidadãos gregos, ele criou um espaço de
prostituição oficial na periferia da cidade, os bordéis", explica a
coordenadora do NEA. Segundo Maria Regina, as prostitutas ficavam em frente ao
cemitério, na região do cerâmico, onde estavam instaladas as oficinas dos
ceramistas, e também na região do Porto do Pireu, onde eram chamadas de pornes,
daí vem a palavra pornografia.
As prostitutas dos bordéis eram estrangeiras, trazidas para
a Grécia exclusivamente para cumprir esse papel. Mas muitas mulheres gregas,
depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de
comportamento, não viam outro caminho a não ser prostituir-se. Essas,
estigmatizadas, juntavam-se às estrangeiras nos bordéis oficiais.
Muitas prostitutas eram cultas e instruídas, e cumpriam o
papel de entreter os líderes daquela sociedade. Cobravam alto preço por sua
companhia e podiam ou não ceder aos desejos sexuais do cliente. São as
hetairae, amantes e musas dos maiores poetas, artistas e estadistas gregos, explica
Maria Regina. "As hetairae conduziam seus negócios abertamente em Atenas,
trabalhando independentemente tanto dos bordéis do Estado quanto dos
templos", diz Nickie.
A prostituição sagrada também sobreviveu, embora
timidamente, durante o período da Grécia clássica. Havia templos em toda a
Grécia, especialmente em Corinto - dedicado à deusa Afrodite. As prostitutas do
templo não mais eram vistas como sacerdotisas, eram tecnicamente escravas. Mas,
por serem consideradas criadas da deusa, mantinham a aura de sacralidade e eram
homenageadas pelos clientes. [...]
Roma foi diferente da Grécia. Até o início da República, a
prostituição não era tão disseminada no território romano. "Roma ainda era
muito provinciana, fechada", explica Ronald Wilson Marques Rosa,
historiador e pesquisador do NEA/UERJ. A prostituição apenas se difundiu com a
expansão militar do império romano e a conquista de escravos. Antes desta
expansão, há indícios de que entre os primeiros romanos, que eram povos
agrícolas, existia a antiga religião da deusa, diz Nickie Roberts. Ela também
afirma que, em tempos posteriores, a prostituição religiosa estava ligada à
adoração da deusa Vênus, que era considerada protetora das prostitutas.
Após a expansão militar e territorial, "os escravos
eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização,
não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a
prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a
liberdade", diz Ronald Rosa.
De acordo com Nickie, Roma foi uma sociedade sexualmente
muito permissiva. "Eles escarneciam de qualquer noção de convenção moral
ou sexual e desviavam-se de toda norma que houvesse sido inventada até
então", afirma. A grande expansão urbana favoreceu o crescimento da
prostituição. A vida era barata, e o sexo, mais barato ainda, diz a autora.
Prostituição, adultério e incesto permearam a vida de muitos imperadores
romanos.
"Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma
era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas
mulheres trabalhadoras", comenta Nickie. A vida permissiva levava mulheres
a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para
as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram
como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério,
proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.
Diferente da Grécia, os romanos não possuíam e nem operavam
bordéis estatais, mas foram os primeiros a criar um sistema de registro estatal
das prostitutas de classe baixa. Isso resultou na divisão das prostitutas em
duas classes, explica Nickie: as meretrices, registradas, e as prostibulae
(fonte da palavra prostituta), não registradas. A maior parte não se
registrava, preferia correr o risco de ser pega pela fiscalização, que era
escassa.
Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os
invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e
sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana.
"As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento - o erótico e
os demais - desapareceram durante a Idade das Trevas. (...) a antiga tradição
de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para
sempre", afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprimi a
sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.
Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela
igreja, que a considerou "uma espécie de dreno, existindo para eliminar o
efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu
Deus", explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas
aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com
Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, "pode-se
afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem
bordel".
Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também
casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as
prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos
públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios
de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais
na cidade, mas desempenhavam uma função. Nem eram objeto de repulsão social,
podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a
vida de prostituta.
A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As
mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de
acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à "crise do
Renascimento". Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que
revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina.
"Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma
identidade própria, tornou-se menos vulnerável", explica Rossiaud. E houve
uma revalorização do casal.
Prostituição e violência aparecem pela primeira vez
associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos.
Autoridades municipais, apoiadas pela igreja, passaram a coibir a prostituição
que, a partir de então, "aparecia como um flagelo social gerador de
problemas e de punições divinas", afirma Rossiaud. Um após outro, os
bordéis públicos foram desaparecendo. "A prostituição não desapareceu com
eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações
vergonhosas", diz Rossiaud. Para o autor, foi o "duplo espelho
deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma" que fizeram
parecer "decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental
da sociedade medieval."
Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular
do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
autora de Os Prazeres da Noite, a prostituição ganhou feições diferenciadas.
Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade.
Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação
de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. "Foram outros modos de
vida, nos quais a mulher vai ter maior participação", diz Margareth.
Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o
direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte
nesse período e virou debate médico e jurista. "Há um uso, não consciente,
da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa
sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem
muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso,
precisa da prostituta", afirma Margareth.
De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas
passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça
incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas.
"O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos
misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o
preconceito contra a prostituta", explica Margareth. "Diz que a
prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São
pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais
curtos. Criam toda uma tipologia", diz Margareth.
Para a autora de Os Prazeres da Noite, podemos diferenciar a
imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos
dela hoje em dia: "Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando
de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se
acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. A revolução
sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte
preconceito contra essas mulheres", diz Margareth.
Patricia Pereira. As prostitutas na História - De deusas à escória da humanidade. In: Revista Leituras da História.
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