"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 9 de dezembro de 2012

A visão de mundo medieval

Uma visão de mundo característica, baseada essencialmente no cristianismo, evoluiu durante a Idade Média. Ela diferia tanto da perspectiva greco-romana como da visão científica da época moderna. Na visão cristã, não era o indivíduo, mas o Criador que determinava o que constituía a felicidade. Assim, a razão que não fosse iluminada pela revelação era errada ou inadequada, pois Deus havia revelado as regras da vida individual e social. Em última análise, a felicidade não era deste mundo; vinha da união com Deus num mundo superior. Essa crença cristã, tal como formulada pela Igreja, dava sentido e lógica à vida e à morte. Foi essa perspectiva que dominou o pensamento da Idade Média.

O universo: os mundos superior e inferior. Os pensadores distinguiam nitidamente o reino da graça do reino mundano, o mundo superior de perfeição do mundo inferior de imperfeição. Os valores morais vinham do mundo superior, que era também o destino final dos fiéis. Dois conjuntos de leis operavam no universo medieval, um para os céus e outro para a terra. O cosmos era uma escada gigantesca, tendo no alto Deus; a Terra, formada de matéria vil, ficava embaixo, pouco acima do inferno.

De Aristóteles e Ptolomeu, os pensadores medievais herdaram a teoria de um universo centrado na Terra - o geocentrismo -, que impregnaram de simbolismo cristão. Essa teoria sustentava que giravam em torno da Terra imóvel, em velocidade uniforme, sete esferas transparentes, nas quais estavam presos os sete "planetas": Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Uma esfera de estrelas fixas envolvia o sistema planetário. Acima do firmamento de estrelas estavam as três esferas celestiais. A mais distante, o Empíreo, era a morada de Deus e dos eleitos através do Primeiro Motor; a esfera abaixo, Deus imprimia movimento às esferas planetárias; a esfera inferior era o invisível Céu Cristalino.

Um universo que tinha a Terra como centro estava de acordo com a ideia cristã de que Deus criara o mundo para homens e mulheres e que a salvação era o objetivo essencial da vida. Como Deus criara a humanidade à sua imagem, ela merecia tal posição central no universo. Embora vivessem no último degrau da escala cósmica, só os humanos, entre todas as coisas vivas, tinham a capacidade de ascender aos céus, ao reino da perfeição.

Também era aceitável à mentalidade cristã a nítida distinção estabelecida por Aristóteles entre o mundo além da Lua e o mundo abaixo dela. Aristóteles sustentava que os corpos terrestres eram formados por quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Os corpos celestiais, que ocupavam a região além da Lua, eram compostos de um quinto elemento, o éter, demasiado claro, puro e perfeito para ser encontrado na Terra. Os planetas e as estrelas existiam num mundo à parte; eram feitos do éter divino e seguiam leis celestiais que não se aplicavam aos objetos terrenos. Enquanto estes sofriam modificações - o gelo se transformava em água, um tronco de árvore em chamas se convertia em cinzas - os objetos celestiais eram incorruptíveis e imunes a qualquer mudança. Ao contrário dos objetos terrenos, eram indestrutíveis.

Os corpos celestes também seguiam leis de movimento diferentes dos corpos terrestres. Aristóteles dizia ser natural aos corpos celestes mover-se eternamente em círculos uniformes, sendo esse movimento considerado um sinal de perfeição. Segundo ele, era natural também que os corpos pesados (pedras) caíssem verticalmente em direção à Terra, e que os objetos leves (fogo, fumaça) se movessem para cima em direção do mundo celeste. A pedra ao cair e a fumaça ao subir estavam em busca de seu lugar natural no universo.

O indivíduo: pecador mas redimível. No centro da crença medieval estava a ideia de um Deus perfeito e de um ser humano desgraçado e pecador. Deus tinha dado a Adão e Eva a liberdade de escolher; rebeldes e presunçosos, eles haviam usado sua liberdade para desafiar a Deus. Com isso, fizeram do mal uma parte intrínseca da personalidade humana. Mas Deus, que não deixou de amar os seres humanos, mostrou-lhes a saída do pecado, tornou-se homem e morreu para que os seres humanos pudessem ser salvos. Os homens e as mulheres eram fracos, egocêntricos e pecadores. Com a graça de Deus, contudo, podiam superar sua natureza pecaminosa e obter salvação; sem a graça, eram totalmente impotentes.

A cidade divina e a cidade terrestre. Castidade versus sensualidade representadas pelo contraste entre frades que rezam, e homens que abraçam e cortejam as mulheres. Iluminura medieval, século XV. Maître François


A compreensão que o homem medieval tinha de si mesmo estava relacionada com seu entendimento do universo como uma hierarquia que culminava em Deus. Na Terra, os objetos mais inferiores eram as pedras, destituídas de almas; acima delas estavam as plantas, que tinham um tipo primitivo de alma que lhes permitia reproduzir e crescer. Mais acima situavam-se os animais, que tinham capacidade de movimentar-se e sentir. O mais elevado dos animais era o homem, que, ao contrário dos demais, podia ter algum entendimento da verdade universal. Muito superiores aos homens eram os anjos, que compreendiam sem dificuldade a verdade de Deus, o Ser puro, sem limitações, fonte de toda existência. A revelação de Deus descia até a humanidade através da ordem hierárquica. Partindo de Deus, a revelação passava aos anjos, também dispostos hierarquicamente. Delas a verdade chegava aos homens, percebida primeiro pelos profetas e apóstolos e depois pela humanidade em geral. Assim, todas as coisas no universo, desde Deus até o mais baixo dos objetos terrenos, ocupavam o lugar que lhes cabia por natureza e estavam ligadas a Deus por uma enorme e ininterrupta cadeia.

Esse universo hierárquico, no qual a posição humana estava claramente definida, dava uma sensação de segurança ao homem medieval. É certo que a humanidade era pecadora e vivia num mundo corruptível, no degrau mais baixo da hierarquia cósmica. Mas ela podia ascender até o mundo superior da perfeição, além da Lua. Como filho de Deus, cada ser humano desfrutava o privilégio excepcional de ter uma alma preciosa e digna de respeito.

Os pensadores medievais também dispuseram o conhecimento numa ordem hierárquica. O conhecimento das coisas espirituais superava todo o conhecimento mundano, todas as ciências humanas. Saber o que Deus queria do homem era o auge do autoconhecimento e franqueava o ingresso nos céus. Assim, Deus era ao mesmo tempo a fonte e o fim do conhecimento. A capacidade humana de pensar e agir livremente refletia a imagem de Deus dentro de cada indivíduo; enobrecia homens e mulheres e lhe oferecia a possibilidade de reunir-se a Deus no paraíso. A nobreza humana vinha da inteligência e do livre arbítrio, mas se os homens usassem esses atributos para desobedecer a Deus, atraíam a infelicidade para si mesmos.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 187-190.

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