Fiel retrato do interior de uma casa brasileira, Joaquim Cândido Guillobel
Todo mundo tem família e ela é a
mais velha instituição da sociedade. Mas, se formos examinar nossa história,
veremos que, diferentemente de uma família ideal, congelada em padrões,
tivemos, em nosso passado, famílias, no plural. E que diferentes tipos se
constituíram, ao sabor de conjunturas econômicas ou culturais.
O europeu trouxe para o Novo
Mundo uma maneira particular de organizar a família. Esse modelo, constituído
por pai e mãe "casados perante a Igreja", correspondia aos ideais
definidos pelo catolicismo. Apenas dentro desse modelo seria possível educar os
filhos, movimentando uma correia de transmissão pela qual passariam, de geração
em geração, os valores do Ocidente cristão.
Mas será que o europeu conseguiu
impor esse tipo de família ao Novo Mundo? Para Gilberto Freyre, a família rural
foi o mais importante fator de colonização. Ela era a unidade produtiva que
abria espaços na mata, instalava fazendas, comprava escravos, bois e
instrumentos. Agia de forma mais eficiente para o desbravamento da terra do que
qualquer companhia de comércio. Já Sérgio Buarque de Holanda observou que a
família prevalecia como centro de todas as organizações. Os escravos,
juntamente com parentes e empregados, dilatavam o círculo no qual o senhor de
engenho era o todo-poderoso pater familias.
Para os dois autores, a soma da
tradição patriarcal portuguesa com a colonização agrária e escravista resultou
no chamado patriarcalismo brasileiro. Tanto no interior quanto no litoral, ele
garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos e a influência
política de um grupo familiar sobre os demais. Uma grande família impunha sua
lei e ordem nos domínios que lhe pertenciam. O chefe cuidava dos negócios e
tinha absoluta autoridade sobre a mulher, filhos, escravos, empregados e
agregados. Essa autoridade se estendia também a parentes, filhos ilegítimos ou
os de criação, afilhados. Sua influência era enorme e se estendia, muitas
vezes, aos vizinhos. Havia uma relação de dependência e solidariedade entre
seus membros.
Embora se reconheça a importância
desse modelo, outros tipos de família vicejavam na mesma época: famílias
pequenas de solteiros e viúvos, de mães e filhos vivendo sem pais. Entre as
camadas mais pobres, eram comuns as ligações consensuais, sobretudo nas áreas
de passagem, urbanização acelerada ou mineração. Importante: viver numa família
na qual faltava a bênção do padre não queria dizer viver na precariedade. Tais
ligações, então chamadas de concubinárias, podiam ser, e eram, muito estáveis.
Havia consenso entre os companheiros.
Havia divisão de papéis e
partilha de tarefas. O que era precário era sua situação material. Mas a
estima, o respeito e a solidariedade eram características que se encontravam
tanto num tipo de família quanto no outro. Assim como as tensões ou violências,
também presentes em ambas.
Mas vamos ao começo. Quando teve
início a colonização, não havia mulheres européias por aqui. Uma das soluções
foi a de juntar-se às índias. Muitas delas se entregavam aos brancos, pois os
índios consideravam normal a poligamia. Os tupis, por exemplo, tinham o hábito
de oferecer uma mulher a todo o estranho que fosse viver entre eles. Homens como
João Ramalho adotaram muitos dos seus usos e costumes. Aprenderam a plantar
milho, a fazer uso do tabaco de fumo e a dormir em redes fiadas pelas
companheiras. As crianças nascidas desses amancebamentos eram chamadas
curibocas, na língua tupi. Para os brancos, eram mamelucos.
É bom não esquecer alguns
aspectos importantes da vida indígena. O casamento era proibido entre mãe e
filho, filho e irmã, pai e filha. Eles seguiam regras bem simples: desejando se
unir, os homens se dirigiam a uma mulher e perguntavam sobre sua vontade de
casar. Se a resposta fosse positiva, pedia-se permissão do pai ou parente mais
próximo.
Dada a permissão, os
"noivos" se consideravam "casados". Não havia cerimônias e,
se ficassem fartos do convívio, consideravam a relação desfeita. Ambos podiam
procurar novos parceiros. Normalmente, os índios tratavam bem suas
companheiras. Protegiam-nas, andavam junto com elas dentro e fora da aldeia, e,
se o inimigo aparecesse, lutavam, dando chance a elas de escapar. Quando os
casais brigavam, podiam espancar-se mutuamente, sem interferência de terceiros.
O adultério feminino causava grande horror. O homem enganado podia repudiar,
expulsar e mesmo matar a mulher que tivesse cometido essa falta. Quando as
mulheres engravidavam na relação extraconjugal, a criança era enterrada viva e
a adúltera trucidada. Havia uma grande liberdade sexual antes do casamento. As
moças podiam manter relações com rapazes índios ou europeus, sem que isso lhes
provocasse desonra.
Posteriormente, casavam-se sem
nenhum constrangimento. As africanas, por sua vez, vieram engrossar as
"uniões à moda da terra". Os portugueses já estavam familiarizados
com elas, pois, desde o século XV, eram enviadas para Portugal. Trabalhando
como escravas, em serviços domésticos e artesanais, acabavam se amancebando ou
casando com eles. No Brasil, as coisas não foram diferentes. Daí as famílias de
mestiços e mulatos. Da mesma maneira que as uniões de brancos com índias, ou de
brancos pobres, as de brancos, mulatos e negros também não pressupunham o
casamento oficial. As pessoas se escolhiam por que se gostavam, passando a
morar juntas e a ter filhos.
O fato de no Brasil colonial as
cidades serem distantes umas das outras fazia com que a maioria das pessoas
morasse "pelos sertões ou matos". Elas, também, tinham dificuldade em
cumprir os preceitos da religião. Em sua maioria viviam juntas, antes mesmo de
casar. Era o chamado "desponsório de futuro", isto é, uma união tendo
em mente um futuro casamento. Para alguns homens, engravidar a companheira era
importante, pois permitia avaliar se ela lhe daria muitos filhos. Como a
maioria vivia na roça, os filhos ajudavam na lavoura. Mas se eventualmente não
se importavam com a virgindade, os homens ligavam muito para a fidelidade da
companheira.
Quando se sentiam traídos era
comum ameaçar e espancar suas mulheres. Mas elas davam o troco. Abandonadas,
não hesitavam em tentar envenená-los ou pediam ajuda aos irmãos e parentes para
aplicar-lhes uma boa surra.
Graças às grandes ondas
migratórias, alguns centros urbanos ficavam com mais mulheres do que homens.
Elas cuidavam do pequeno comércio, da lavoura, da plantação e dos animais
domésticos. Algumas, mais abastadas, eram fazendeiras, comerciantes de escravos
e de tropas. Enfim, trabalhando em casa ou na rua, ajudavam na sobrevivência de
suas famílias e eram membros destacados da economia informal que existia então.
A vida de mulheres sozinhas com filhos e dependentes se consolidava no que,
hoje, chamamos de lares monoparentais.
Alguns deles incluíam escravos.
Outros, parentes ou "agregados". Longe de serem sinônimos de
fragilidade social, tais famílias permitiam às matriarcas traçar agendas
extremamente positivas: casavam filhos interferindo na escolha do cônjuge,
controlavam o dinheiro com que cada membro colaborava para o domicílio, punham
em funcionamento redes de solidariedade, agiam em grupo, quando tinham seus interesses
contrariados.
E os escravos? A Igreja Católica
não só permitia que se casassem como defendia esse direito, inclusive com
pessoas livres. Os senhores mais ricos costumavam casar seus escravos no mesmo
dia em que batizavam as crianças nascidas no engenho. Assim, chamava-se um
padre que realizava as duas cerimônias e depois havia uma "função":
festa ao som de batuques, violas e atabaques. O trabalho na lavoura, a época de
colheita ou de moagem da cana serviam para que homens e mulheres se encontrassem.
De maneira geral, nas grandes fazendas, havia mais homens do que mulheres nas
senzalas. A escolha da companheira muitas vezes causava disputas violentas,
ameaças e até mortes. Os escravos preferiam unir-se com companheiras da mesma
origem étnica. Chama-se a esse fenômeno endogamia. Escravos de origem nagô se
casavam com nagô; os de origem hauçá, com hauçá, e assim por diante. Essa
escolha, ditada por afinidades culturais e religiosas, permitia ao casal
organizar seu mundo com os mesmos hábitos e tradições da sua região de origem
na África.
Nas cidades, as uniões entre
homens e mulheres escravos, ou entre escravos, alforriados ou livres, também
eram correntes. Aí também prevalecia o padrão endogâmico de casamento. A
família escrava apoiava-se numa forma de solidariedade muito forte: a
espiritual. Escolhendo para padrinhos ou madrinhas de seus filhos amigos ou
companheiros de trabalho ou de etnia, os descendentes de africanos formavam um
tipo de família em que os laços com a tradição africana eram muito importantes.
Os padrinhos e madrinhas ficavam encarregados de proteger e ajudar o afilhado
até o final da vida, servindo para forjar uma rede de informações das diversas
"nações", que fazia circular as notícias sobre os familiares vendidos
a proprietários diferentes. Havia sempre a possibilidade de reencontrar irmãos,
pais e mães ou outros parentes.
A família senhorial apresentava
algumas características também encontradas no restante da sociedade. Elas
podiam ser extensas - englobando familiares e agregados, parentes, filhos
bastardos e concubinas. Ou podiam ser monoparentais.
Essas eram em geral lideradas por
viúvas que viviam com seus filhos e irmãos ou irmãs solteiras. Em ambos os
casos, eram comuns as núpcias entre parentes próximos, primos e até meio-irmãos.
Graças aos casamentos endogâmicos, as famílias senhoriais ampliavam sua área de
influência, aumentando também as terras, escravos e bens. O casamento com
"gente igual" era altamente recomendável e poucos eram os jovens que
rompiam com essa tradição. O dia-a-dia desses grupos transcorria em meio a
grande número de pessoas. As mulheres pouco saíam de suas casas, empregando seu
tempo em bordados e costuras, ou no preparo de doces, bolos e frutas em
conservas. Eram chamadas de "minha senhora", pelos maridos.
Concluindo, não se pode falar em
"família" no Brasil colonial, e sim em "famílias", no
plural. Famílias que se metamorfosearam de acordo com as conjunturas múltiplas
de seu tempo. Famílias que, hoje, ainda despertam grande interesse de
pesquisadores e estudiosos.
Mary Del Priore. Família na colônia, um conceito elástico. In: Revista História Viva. Setembro 2006.
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