"O Tribunal da Inquisição", Pedro
Berruguette. Destinada a julgar casos de heresia, a Inquisição foi ativada pelo
movimento da Contrarreforma, resposta nos países de tradição católica
(principalmente em Portugal e Espanha) às doutrinas expressas pela Reforma
Protestante.
Está claro que na Política e na História muitos tabus
incidem sobre a origem das instituições que exercem uma autoridade sobre a
sociedade, em conveniência ou não com a própria sociedade.
Assim, emana da cristandade um certo número de tabus, e um
dos mais antigos e mais duráveis, relativos à autoridade, que foi atribuído ao
papado.
De uma parte, o papado auto-rotula sua origem como divina,
tendo Jesus Cristo, depois de sua ressurreição, confirmado a Pedro seu encargo
de vigário de Deus sobre a Terra, dando assim ao primeiro bispo de Roma uma
proeminência sobre os outros papas, título este atribuído, à época, a todos os
bispos.
A essa origem foi agregada uma primazia, apoiada na Doação
de Constantino, segundo a qual este imperador, quando de sua conversão ao
cristianismo, teria conferido ao papa de Roma, Silvestre I (314-335), a
primazia sobre os metropolitanos de Jerusalém, Antioquia, Constantinopla e
Alexandria, assim como a posse de Roma e da Itália. O papado inserirá esse
texto nos Decretos - regulamentos eclesiásticos -, destinados a afirmar os
direitos dos papas sobre os soberanos.
Ora, por volta de 1436, ao definir as regras e os métodos da
crítica histórica, Lorenzo Valla demonstra que esta doação era falsa. O
diagnóstico foi público e Lorenzo Valla viu-se obrigado a buscar refúgio em
Nápoles, sob a proteção do rei de Aragão.
Desde essa data, denunciar a ilegitimidade dos poderes
atribuídos aos papas é tabu, e o povo cristão não sabe disso; a historiografia
laica, ela própria, só evoca esses fatos furtivamente, por ocasião de
progressos feitos pelo conhecimento, e da crítica dos textos, na época do
Humanismo e do Renascimento.
Por outro lado, esse povo ignora que, segundo pesquisas mais
recentes, a famosa doação não foi uma maquinação desonesta comandada pelo
papado - como vem acreditando, embora não o diga há cinco séculos -, e sim uma
espécie de tratado ou de manifesto redigido em meados do século VIII, que
enumerava as vantagens e os direitos já adquiridos pelo papado. O texto tinha
certamente uma origem clerical romana, e constituía o relato hagiográfico da
figura de Pedro, o magnificente, como o papa Silvestre I, e valorizava a
basílica de Latran, dedicada a São Salvador. O todo estava apresentado sob
forma jurídica - e sua origem era atribuída ao imperador Constantino, quando na
verdade esse texto emanava de um clérigo de nível inferior que queria
glorificar sua própria Igreja.
Hoje, o papado é uma força moral e política considerável, e
seria levantar um tabu lembrar aos papas de nosso tempo que uma parte de seu
poder, ou de sua autoridade, repousa sobre um erro grosseiro.
Uma espécie de tabu reina igualmente sobre as origens
míticas do Estado e da realeza na França. Redigidas a partir do século XIII,
as Grandes Croniques de France [Grandes crônicas de França]
evocam as origens troianas e cristãs do povo francês, recorrendo a dois
acontecimentos lendários: a queda de Tróia e a conversão de Clóvis. Por ter
demonstrado que os reis de França não descendiam dos príncipes de Tróia, mas
que eram herdeiros de simples guerreiros francos a que Roma dava o nome de
bárbaros, Nicolas Freret, um erudito, foi encarcerado por Luís XIV na Bastilha:
o que prova que este historiador não tinha o senso da História...
Sobre as origens do poder bolchevique, em outubro de 1917,
reina igualmente um verdadeiro tabu, que não se refere, na verdade, à base de
dados que relatam o levante, mas que não é menos revelador, simultaneamente, do
comportamento de Lenin e do comportamento ulterior dos historiadores
soviéticos, ou mesmo dos comunistas de outros países.
E onde se aninha esse silêncio opaco?
Ninguém duvida que, considerada globalmente, a insurreição
de outubro de 1917 foi um movimento de massa insuflado pelas organizações
revolucionárias e por outros soviéticos, majoritários em Petrogrado e na maior
parte das grandes cidades russas. Em sua liderança estava, com frequência, o
partido bolchevique que, desse modo, colocou fim a uma situação onde um governo
sem Estado - Kerensky - deixava uma prova de força para um Estado sem governo -
os comitês e os sovietes. Foi a ação de Lenin que levou o partido bolchevique a
sustentar o princípio de uma insurreição, da qual aparentemente não tinha
necessidade, visto que no II Congresso dos Sovietes seria majoritário; mas esse
movimento permitiu prevenir uma ação que poderia impedir a reunião do
congresso. Aí é que reside o primeiro silêncio da História tradicional, esse
pequeno golpe de Estado cometido por Lenin, que escreveu de próprio punho, sem
consultar ninguém, uma proclamação que anunciava, antes do Congresso, a
derrubada do governo provisório pelo comitê revolucionário provisório, uma
instituição controlada pelo partido que constituía o braço militar do soviete
de Petrogrado. Esse comitê não fora minimamente legitimado para substituir o
soviete de Petrogrado e, menos ainda, o Congresso dos Sovietes. Sua função era
a de "proteger o Congresso", não a de tomar o poder, em seu lugar.
Além disso, Lenin, em uma primeira versão manuscrita da proclamação que figura
nos arquivos oficiais, havia escrito: "O comitê convoca nesse dia, para as
doze horas, o soviete de Petrogrado. Medidas imediatas são necessárias para a
constituição de um poder soviético". Em seguida, Lenin rasurou sua frase.
Este ato falho é significativo: Lenin desconfia da legalidade revolucionária do
soviete de Petrogrado - quer dizer, de Trotski - e do espírito democrático de
alguns de seus amigos bolcheviques do soviete, tal como Kamenev [...]. Lenin
[...] desautoriza o soviete de Petrogrado e o Congresso que não tem mais nada a
homologar. [...]
[...] nenhum historiador soviético, de Trotski a Mints, as
comentou. É bem compreensível o incômodo que teriam sentido os edis do regime
soviético com o reconhecimento de que o poder atribuído ao partido repousava em
parte sobre um erro.
No tempo da cristandade, o exemplo do cemitério de
Auvezines, no Tarn, era edificante. Tal exemplo comprova que negar as crenças
da fé é um tabu, e que o tabu, nesse caso, se junta ao mito.
Em Auvezines, então, há alguns anos, figurava na porta do
cemitério uma placa onde estava escrito: "Em 1211, aqui, foram massacrados
600 cavaleiros teutônicos". Este grande fato, ligado à cruzada dos
Albigenses, faz evidentemente alusão à batalha de Montgey, mas o cemitério em
questão é minúsculo. Encontra-se ali a síndrome histórica do cerco de Alésia,
cujas plantas mostram bem que a praça forte não podia certamente abrigar 80 mil
gauleses. Em Auvezines, se o termo "teutônico" faz referência aos
exércitos do rei Luís VIII, esta denominação representa bem o abismo que separa
os occitânicos dos "bárbaros do norte"; assim o número de mortos
revela um desses milagres que contam os relatos sobre as cruzadas: por exemplo,
na estrada de Jerusalém, o corpo de Castelnau, morto por numerosos golpes de
espada, é reencontrado intacto; na estrada daqueles que vão para Albi, o pão é
semeado, também milagrosamente. Desse modo, apenas os homens de Deus não
morrem!
Em um país comunista, os crentes também julgam sacrilégio
todo questionamento sobre um deus. Uma crença quirguiz, curiosa e irônica,
pergunta ao professor de fé inabalável que anunciava aos alunos que o
capitalismo iria morrer logo:
- E Lenin, vai morrer também?
O mestre a fuzila com o olhar: a criança havia quebrado um tabu.
O tabu exerce muitas vezes uma função de autodefesa. Sempre,
na tradição cristã, essa função aparece na ocasião das guerras religiosas. A
História tradicional evocou essas guerras sob essa denominação, omitindo o fato
de que na época não eram chamadas assim. [...] Porque a tradição quer fazer
crer que os protestantes se sublevaram somente pela liberdade de sua fé, em
nome de um princípio sagrado - o da livre leitura da Bíblia - e de uma melhor
prática religiosa. Os católicos creditam ao rei a ordem de deflagração da noite
de São Bartolomeu - até onde podem provar -, mas não acham que foi
verdadeiramente sua responsabilidade e que ele agira sob a influência de sua
mãe, uma "estrangeira", italiana, ou de um grupo de fanáticos [...].
Tentam deixar passar a ideia de que, certamente, o rei cometera o gesto que
acelerou ou aprofundou o processo dos massacres, mas que, pessoalmente, ele era
inocente. E sua defesa, assim, é assegurada.
Esses dois modos de apresentação são ilusórios. Na verdade,
embora sem dizê-lo, os protestantes desejavam instaurar uma república à
la Calvino: eles não podem admiti-lo porque supostamente se batem pela
liberdade da fé. [...] Os protestantes esconderam suas aspirações por trás da
exigência de uma pureza religiosa que não era necessariamente o caso deles. No
século XVI, o corpo protestante se compõe em geral de pessoas instruídas ou de
nobres e, mesmo nessa época, eles não representavam os grupos sociais mais
inclinados a querer, de fato, ler a Bíblia textualmente. Até mesmo alguns se
manifestaram sinceramente hostis à Igreja por múltiplas razões, entre elas a de
que esta não merecia mais ser o guia dos cristãos. [...] E, quanto aos
católicos, estes criticavam a monarquia, fingindo defender o rei. Na tradição
histórica, eles dizem que o rei não era verdadeiramente culpado das violências
cometidas durante essas guerras, mas, na realidade, eles censuravam sim, há
algum tempo, a monarquia por não ser mais subordinada à Igreja e ao papado
[...]. Existe ainda uma espécie de combinação involuntária entre católicos que
glorificam o rei, enquanto querem diminuir sua autoridade, e protestantes
que, em nome de diversas liberdades, sonham com uma república à moda de
Genebra, quando não há regime mais autoritário do que aquele instaurado
por Calvino. Eis aí o exemplo de um duplo tabu, sutil, do qual a tradição
histórica não se deu conta. É verdade que a plebe, em sua maioria católica,
luta em nome da religião.
Ao lado dos tabus de origem cristã ou monárquica, a
república segrega igualmente os seus. [...]
A tradição histórica faz da Revolução de 1789
a mãe e a matriz do projeto republicano. Mas omite a existência dessas
repúblicas "aristocráticas", como a de Veneza, ou
"patrícias", como a de Genebra. E também relega a revolução
americana, facilmente definida como uma guerra de independência.
[...]
Na França, a tradição republicana faz do país a encarnação
da revolução, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, dos direitos do
homem e da civilização no quadro expansionista colonial. [...] Os diferentes
países da Europa deveriam, por isso, olhar a França com inveja - e o regime
republicano constituiria para os franceses uma espécie de modelo no qual
deveriam necessariamente se inspirar os outros povos. [...]
[...]
Diferente por sua formulação, mas exercendo igualmente uma
função de exorcismo, também há o tabu da historiografia negra no Caribe
anglófono. Não querem saber que o tráfico e a escravatura tiveram por vítimas
essencialmente os negros. No livro Our Heritage [Nossa
herança], destinado aos estudantes, é lembrado que, na cidade de Alger, no
século XVIII, havia escravos brancos e negros, o que é verdade. E que, em algum
momento de suas histórias, todos os povos tiveram de ser escravos, o que
poderia ser verdade. Mas o que há de mais bonito, enunciado a seguir, é que os
ingleses foram, evidentemente, escravos dos romanos, e que de lá vem seu nome:
dos anges. E, além disso, a única ilustração do capítulo sobre
escravidão mostra duas crianças inglesas sendo levadas por um centurião romano.
Dizer que os negros foram as principais vítimas do tráfico e
da escravidão é humilhante, por isso o silêncio, e por isso também é que, na
conferência de Durban (2001), que tratava da questão da indenização dos
descendentes de africanos vítimas do tráfico nos séculos XVII e XVIII - como
foi feito com os judeus no século XX -, houve delegações que se recusaram a
comparecer e associar-se a tal reivindicação.
Entre os armênios, o tabu funciona de modo diverso. Sua
tradição histórica é polarizada pela ideia de que são um povo mártir. Há trinta
anos, eles tomaram o lugar dos judeus, antes que os curdos lhe fizessem
concorrência, assim como os bósnios etc. Hoje, quando a ideologia dos direitos
do homem tomou conta dos estados-nações, cada povo inventaria os crimes de que
foi vítima. Assim, a memória armênia atual faz da história desse povo um longo
martírio do qual o "genocídio" de 1915 foi o apogeu. Lembra, no
entanto, que os armênios constituíram o primeiro estado cristão da História,
antes do Império romano: desse modo, glorificação e martírio fazem dos armênios
um povo maravilhoso.
Os historiadores armênios não insistem, entretanto, na
surpreendente prosperidade das comunidades armênias nos séculos X e XVIII:
Fernand Braudel descreveu-a em seu livro Méditerranée, mas os
armênios se recusam a lembrá-la. Mártires, sim; ricos, não. Esses historiadores
não gostam de lembrar tampouco que no final do século XIX, com os búlgaros,
eles inauguraram a prática do terrorismo, sobretudo contra as instituições do
Estado otomano, como o Banco de Istambul. [...]
[...]
Outro tabu dentro do mundo dos comunistas [...], dos
anticomunistas do Ocidente e dos anti-semitas é a importância do número de
não-russos e de judeus - todos agnósticos, apesar de reconhecidos como judeus -
no movimento revolucionário: dos 264 bolcheviques mais notórios, recenseados
por Granat em 1920-1924, 119 são alógenos, e perto de um sexto deles é
originário do gueto. Mas Zinoniev, Radek, Kamenev ou mesmo o menchevique Martov
não são tidos como judeus. [...]
Quanto a Lenin, um tabu reinava sobre as origens de sua
família, mas havia uma anedota no fim do regime comunista: "Seus
ancestrais? Alemães, judeus, tártaros...". Os três inimigos da Rússia.
[...]
FERRO, Marc. Os tabus da história. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2003. p. 25-40.
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