"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Nas origens dos tabus


"O Tribunal da Inquisição", Pedro Berruguette. Destinada a julgar casos de heresia, a Inquisição foi ativada pelo movimento da Contrarreforma, resposta nos países de tradição católica (principalmente em Portugal e Espanha) às doutrinas expressas pela Reforma Protestante.


Está claro que na Política e na História muitos tabus incidem sobre a origem das instituições que exercem uma autoridade sobre a sociedade, em conveniência ou não com a própria sociedade.

Assim, emana da cristandade um certo número de tabus, e um dos mais antigos e mais duráveis, relativos à autoridade, que foi atribuído ao papado.

De uma parte, o papado auto-rotula sua origem como divina, tendo Jesus Cristo, depois de sua ressurreição, confirmado a Pedro seu encargo de vigário de Deus sobre a Terra, dando assim ao primeiro bispo de Roma uma proeminência sobre os outros papas, título este atribuído, à época, a todos os bispos.

A essa origem foi agregada uma primazia, apoiada na Doação de Constantino, segundo a qual este imperador, quando de sua conversão ao cristianismo, teria conferido ao papa de Roma, Silvestre I (314-335), a primazia sobre os metropolitanos de Jerusalém, Antioquia, Constantinopla e Alexandria, assim como a posse de Roma e da Itália. O papado inserirá esse texto nos Decretos - regulamentos eclesiásticos -, destinados a afirmar os direitos dos papas sobre os soberanos.

Ora, por volta de 1436, ao definir as regras e os métodos da crítica histórica, Lorenzo Valla demonstra que esta doação era falsa. O diagnóstico foi público e Lorenzo Valla viu-se obrigado a buscar refúgio em Nápoles, sob a proteção do rei de Aragão.

Desde essa data, denunciar a ilegitimidade dos poderes atribuídos aos papas é tabu, e o povo cristão não sabe disso; a historiografia laica, ela própria, só evoca esses fatos furtivamente, por ocasião de progressos feitos pelo conhecimento, e da crítica dos textos, na época do Humanismo e do Renascimento.

Por outro lado, esse povo ignora que, segundo pesquisas mais recentes, a famosa doação não foi uma maquinação desonesta comandada pelo papado - como vem acreditando, embora não o diga há cinco séculos -, e sim uma espécie de tratado ou de manifesto redigido em meados do século VIII, que enumerava as vantagens e os direitos já adquiridos pelo papado. O texto tinha certamente uma origem clerical romana, e constituía o relato hagiográfico da figura de Pedro, o magnificente, como o papa Silvestre I, e valorizava a basílica de Latran, dedicada a São Salvador. O todo estava apresentado sob forma jurídica - e sua origem era atribuída ao imperador Constantino, quando na verdade esse texto emanava de um clérigo de nível inferior que queria glorificar sua própria Igreja.

Hoje, o papado é uma força moral e política considerável, e seria levantar um tabu lembrar aos papas de nosso tempo que uma parte de seu poder, ou de sua autoridade, repousa sobre um erro grosseiro.

Uma espécie de tabu reina igualmente sobre as origens míticas do Estado e da realeza na França. Redigidas a partir do século XIII, as Grandes Croniques de France [Grandes crônicas de França] evocam as origens troianas e cristãs do povo francês, recorrendo a dois acontecimentos lendários: a queda de Tróia e a conversão de Clóvis. Por ter demonstrado que os reis de França não descendiam dos príncipes de Tróia, mas que eram herdeiros de simples guerreiros francos a que Roma dava o nome de bárbaros, Nicolas Freret, um erudito, foi encarcerado por Luís XIV na Bastilha: o que prova que este historiador não tinha o senso da História...

Sobre as origens do poder bolchevique, em outubro de 1917, reina igualmente um verdadeiro tabu, que não se refere, na verdade, à base de dados que relatam o levante, mas que não é menos revelador, simultaneamente, do comportamento de Lenin e do comportamento ulterior dos historiadores soviéticos, ou mesmo dos comunistas de outros países.

E onde se aninha esse silêncio opaco?

Ninguém duvida que, considerada globalmente, a insurreição de outubro de 1917 foi um movimento de massa insuflado pelas organizações revolucionárias e por outros soviéticos, majoritários em Petrogrado e na maior parte das grandes cidades russas. Em sua liderança estava, com frequência, o partido bolchevique que, desse modo, colocou fim a uma situação onde um governo sem Estado - Kerensky - deixava uma prova de força para um Estado sem governo - os comitês e os sovietes. Foi a ação de Lenin que levou o partido bolchevique a sustentar o princípio de uma insurreição, da qual aparentemente não tinha necessidade, visto que no II Congresso dos Sovietes seria majoritário; mas esse movimento permitiu prevenir uma ação que poderia impedir a reunião do congresso. Aí é que reside o primeiro silêncio da História tradicional, esse pequeno golpe de Estado cometido por Lenin, que escreveu de próprio punho, sem consultar ninguém, uma proclamação que anunciava, antes do Congresso, a derrubada do governo provisório pelo comitê revolucionário provisório, uma instituição controlada pelo partido que constituía o braço militar do soviete de Petrogrado. Esse comitê não fora minimamente legitimado para substituir o soviete de Petrogrado e, menos ainda, o Congresso dos Sovietes. Sua função era a de "proteger o Congresso", não a de tomar o poder, em seu lugar. Além disso, Lenin, em uma primeira versão manuscrita da proclamação que figura nos arquivos oficiais, havia escrito: "O comitê convoca nesse dia, para as doze horas, o soviete de Petrogrado. Medidas imediatas são necessárias para a constituição de um poder soviético". Em seguida, Lenin rasurou sua frase. Este ato falho é significativo: Lenin desconfia da legalidade revolucionária do soviete de Petrogrado - quer dizer, de Trotski - e do espírito democrático de alguns de seus amigos bolcheviques do soviete, tal como Kamenev [...]. Lenin [...] desautoriza o soviete de Petrogrado e o Congresso que não tem mais nada a homologar. [...]

[...] nenhum historiador soviético, de Trotski a Mints, as comentou. É bem compreensível o incômodo que teriam sentido os edis do regime soviético com o reconhecimento de que o poder atribuído ao partido repousava em parte sobre um erro.

No tempo da cristandade, o exemplo do cemitério de Auvezines, no Tarn, era edificante. Tal exemplo comprova que negar as crenças da fé é um tabu, e que o tabu, nesse caso, se junta ao mito.

Em Auvezines, então, há alguns anos, figurava na porta do cemitério uma placa onde estava escrito: "Em 1211, aqui, foram massacrados 600 cavaleiros teutônicos". Este grande fato, ligado à cruzada dos Albigenses, faz evidentemente alusão à batalha de Montgey, mas o cemitério em questão é minúsculo. Encontra-se ali a síndrome histórica do cerco de Alésia, cujas plantas mostram bem que a praça forte não podia certamente abrigar 80 mil gauleses. Em Auvezines, se o termo "teutônico" faz referência aos exércitos do rei Luís VIII, esta denominação representa bem o abismo que separa os occitânicos dos "bárbaros do norte"; assim o número de mortos revela um desses milagres que contam os relatos sobre as cruzadas: por exemplo, na estrada de Jerusalém, o corpo de Castelnau, morto por numerosos golpes de espada, é reencontrado intacto; na estrada daqueles que vão para Albi, o pão é semeado, também milagrosamente. Desse modo, apenas os homens de Deus não morrem!

Em um país comunista, os crentes também julgam sacrilégio todo questionamento sobre um deus. Uma crença quirguiz, curiosa e irônica, pergunta ao professor de fé inabalável que anunciava aos alunos que o capitalismo iria morrer logo:

- E Lenin, vai morrer também?

O mestre a fuzila com o olhar: a criança havia quebrado um tabu.

O tabu exerce muitas vezes uma função de autodefesa. Sempre, na tradição cristã, essa função aparece na ocasião das guerras religiosas. A História tradicional evocou essas guerras sob essa denominação, omitindo o fato de que na época não eram chamadas assim. [...] Porque a tradição quer fazer crer que os protestantes se sublevaram somente pela liberdade de sua fé, em nome de um princípio sagrado - o da livre leitura da Bíblia - e de uma melhor prática religiosa. Os católicos creditam ao rei a ordem de deflagração da noite de São Bartolomeu - até onde podem provar -, mas não acham que foi verdadeiramente sua responsabilidade e que ele agira sob a influência de sua mãe, uma "estrangeira", italiana, ou de um grupo de fanáticos [...]. Tentam deixar passar a ideia de que, certamente, o rei cometera o gesto que acelerou ou aprofundou o processo dos massacres, mas que, pessoalmente, ele era inocente. E sua defesa, assim, é assegurada.

Esses dois modos de apresentação são ilusórios. Na verdade, embora sem dizê-lo, os protestantes desejavam instaurar uma república à la Calvino: eles não podem admiti-lo porque supostamente se batem pela liberdade da fé. [...] Os protestantes esconderam suas aspirações por trás da exigência de uma pureza religiosa que não era necessariamente o caso deles. No século XVI, o corpo protestante se compõe em geral de pessoas instruídas ou de nobres e, mesmo nessa época, eles não representavam os grupos sociais mais inclinados a querer, de fato, ler a Bíblia textualmente. Até mesmo alguns se manifestaram sinceramente hostis à Igreja por múltiplas razões, entre elas a de que esta não merecia mais ser o guia dos cristãos. [...] E, quanto aos católicos, estes criticavam a monarquia, fingindo defender o rei. Na tradição histórica, eles dizem que o rei não era verdadeiramente culpado das violências cometidas durante essas guerras, mas, na realidade, eles censuravam sim, há algum tempo, a monarquia por não ser mais subordinada à Igreja e ao papado [...]. Existe ainda uma espécie de combinação involuntária entre católicos que glorificam  o rei, enquanto querem diminuir sua autoridade, e protestantes que, em nome de diversas liberdades, sonham com uma república à moda de  Genebra, quando não há regime mais autoritário do que aquele instaurado por Calvino. Eis aí o exemplo de um duplo tabu, sutil, do qual a tradição histórica não se deu conta. É verdade que a plebe, em sua maioria católica, luta em nome da religião.

Ao lado dos tabus de origem cristã ou monárquica, a república segrega igualmente os seus. [...]

A tradição histórica faz da Revolução de 1789 a mãe e a matriz do projeto republicano. Mas omite a existência dessas repúblicas "aristocráticas", como a de Veneza, ou "patrícias", como a de Genebra. E também relega a revolução americana, facilmente definida como uma guerra de independência.

[...]

Na França, a tradição republicana faz do país a encarnação da revolução, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, dos direitos do homem e da civilização no quadro expansionista colonial. [...] Os diferentes países da Europa deveriam, por isso, olhar a França com inveja - e o regime republicano constituiria para os franceses uma espécie de modelo no qual deveriam necessariamente se inspirar os outros povos. [...]

[...]

Diferente por sua formulação, mas exercendo igualmente uma função de exorcismo, também há o tabu da historiografia negra no Caribe anglófono. Não querem saber que o tráfico e a escravatura tiveram por vítimas essencialmente os negros. No livro Our Heritage [Nossa herança], destinado aos estudantes, é lembrado que, na cidade de Alger, no século XVIII, havia escravos brancos e negros, o que é verdade. E que, em algum momento de suas histórias, todos os povos tiveram de ser escravos, o que poderia ser verdade. Mas o que há de mais bonito, enunciado a seguir, é que os ingleses foram, evidentemente, escravos dos romanos, e que de lá vem seu nome: dos anges. E, além disso, a única ilustração do capítulo sobre escravidão mostra duas crianças inglesas sendo levadas por um centurião romano.

Dizer que os negros foram as principais vítimas do tráfico e da escravidão é humilhante, por isso o silêncio, e por isso também é que, na conferência de Durban (2001), que tratava da questão da indenização dos descendentes de africanos vítimas do tráfico nos séculos XVII e XVIII - como foi feito com os judeus no século XX -, houve delegações que se recusaram a comparecer e associar-se a tal reivindicação.

Entre os armênios, o tabu funciona de modo diverso. Sua tradição histórica é polarizada pela ideia de que são um povo mártir. Há trinta anos, eles tomaram o lugar dos judeus, antes que os curdos lhe fizessem concorrência, assim como os bósnios etc. Hoje, quando a ideologia dos direitos do homem tomou conta dos estados-nações, cada povo inventaria os crimes de que foi vítima. Assim, a memória armênia atual faz da história desse povo um longo martírio do qual o "genocídio" de 1915 foi o apogeu. Lembra, no entanto, que os armênios constituíram o primeiro estado cristão da História, antes do Império romano: desse modo, glorificação e martírio fazem dos armênios um povo maravilhoso.

Os historiadores armênios não insistem, entretanto, na surpreendente prosperidade das comunidades armênias nos séculos X e XVIII: Fernand Braudel descreveu-a em seu livro Méditerranée, mas os armênios se recusam a lembrá-la. Mártires, sim; ricos, não. Esses historiadores não gostam de lembrar tampouco que no final do século XIX, com os búlgaros, eles inauguraram a prática do terrorismo, sobretudo contra as instituições do Estado otomano, como o Banco de Istambul. [...]

[...]

Outro tabu dentro do mundo dos comunistas [...], dos anticomunistas do Ocidente e dos anti-semitas é a importância do número de não-russos e de judeus - todos agnósticos, apesar de reconhecidos como judeus - no movimento revolucionário: dos 264 bolcheviques mais notórios, recenseados por Granat em 1920-1924, 119 são alógenos, e perto de um sexto deles é originário do gueto. Mas Zinoniev, Radek, Kamenev ou mesmo o menchevique Martov não são tidos como judeus. [...]

Quanto a Lenin, um tabu reinava sobre as origens de sua família, mas havia uma anedota no fim do regime comunista: "Seus ancestrais? Alemães, judeus, tártaros...". Os três inimigos da Rússia.

[...]

FERRO, Marc. Os tabus da história. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 25-40.

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