A cidade de Quíloa no século XVI
O comércio na costa do Índico, conhecida como Azânia, data
de antes dos primeiros séculos da nossa era e tinha a participação de árabes,
persas e romanos, que traziam machados e lanças de ferro, tecidos, cerâmicas e
açúcar, e levavam marfim, peles de pantera, tartarugas, incenso e chifres de
rinocerontes.
No século VI, nas terras próximas ao rio Juba ou a Lamu,
existia o reino Xunguaia, que talvez tenha originado a cultura suaíli. Seus
habitantes eram caçadores e agricultores bantos e pastores cuxitas. Outros
afirmam que os suaílis seriam agricultores bantos, vindos dos Grandes Lagos e
das montanhas de Kwale, que desde o ano 500 se expandiram pela costa.
Em várias cidades-estado da África Oriental, como Quíloa,
Mogadixo, Mombaça, Moçambique, Zanzibar, Máfia, Melinde, a organização política
concentrava-se na figura de um sultão ou xeque, que governava com o apoio de um
conselho, aparentemente com base nas leis islâmicas.
Os negros eram a maioria dos habitantes nessa região, mas já
havia muitos mestiços. João de Barros descreve as impressões da frota de Vasco
da Gama ao chegar ao rio Quelimane:
O gentio que habitava à borda dele, deu grande ânimo a toda
a gente, para quão quebrado levava, tendo tanto navegado, sem achar mais que
negros bárbaros como os de Guiné, vizinhos de Portugal. A gente deste rio peró
que também fosse da cor e cabelo como eles eram, havia entre eles homens fulos
que pareciam mestiços de negros e mouros, e alguns entendiam palavras de
arávico.
Nessas cidades-estado os exércitos não eram fortes, nem
muito grandes. Tinham como armas lanças, arco e flecha. As cidades não
apresentavam muralhas, levando a crer que não precisassem ou evitassem entrar
em guerra com os povos vizinhos, preferindo as alianças. Seus habitantes
dedicavam-se, essencialmente, às atividades mercantis. Comercializavam com
várias localidades do interior e as mercadorias eram levadas pelos vários
pontos da costa, embarcadas em zambucos ou pangaios (embarcações feitas com
pedaços de madeira presos por cordas). O comércio era realizado da seguinte
forma: do interior vinha o marfim, as peles e o ouro, em troca as cidades
localizadas próximas ao litoral ofereciam o ferro, contas, panos e cauris. Os
escravos também eram trocados, raramente obtidos em ataques às aldeias
vizinhas.
De fora do continente africano chegavam, sobretudo em
grandes navios árabes e indianos, mercadorias de luxo, entre elas contas de
vidro e cauris das Maldivas. Os mais abastados faziam suas refeições em tigelas
de louça chinesa ou persa. Já os mais pobres comiam em torno de uma grande
panela comunitária, em geral, de cerâmica.
Já no século IX, a cidade de Quíloa tinha um comércio
significativo, apesar do aspecto rústico de suas moradias de barro e telhados
de folhas de palmeiras. Sobre essa cidade há uma das mais antigas narrativas
escritas sobre a África Oriental: A crônica de Quíloa, da primeira metade do
século XVI. Seus habitantes eram pescadores bantos, conhecedores da metalurgia
do ferro e do cobre e produziam objetos de cerâmica vermelha. Estabeleceram o
comércio de peixe seco, frutas, cereais, sal e gado com os povos do interior e
com outros pontos do litoral, utilizando cauris como moeda. Mais tarde, talvez
por influência dos contatos com mercadores muçulmanos, o comércio em Quíloa
tenha incluído outros produtos, como marfim e peles destinadas à Arábia, Índia,
Pérsia e China.
Existiam, na cidade, vários prédios de três ou quatro
andares, construídos uns juntos aos outros, e casas, em geral com duas salas
seguidas de quartos. As portas eram trabalhadas em pedra-coral, com desenhos
que simbolizavam espinhas de peixe. Havia quase sempre um pátio abaixo do nível
principal, uma sala e uma varanda entre esses dois ambientes. Nas paredes
colocavam-se vasos e até os muros eram trabalhados em madeira. A maior parte
dos habitantes era negra e possuía escarificações no rosto. Cultivavam algodão,
legumes, cebolas, milhetes, laranjas, limões, coco, feijões, pimentas, jambos,
bananas, romãs e cana-de-açúcar. Completavam a alimentação com peixes,
galinhas, cabras, bois e carneiros.
A partir dos séculos XII ou XIII, Quíloa desenvolveu-se
ainda mais e se firmou como ponto comercial. Mercadores de Mogadixo, uma outra
cidade mercantil, estabeleceram-se em Quíloa. Os habitantes de Mogadixo viviam
sobretudo do cultivo do arroz, legumes e da criação de gado. Faziam pratos abundantes,
como o purê de bananas verdes com leite ou coalhada com limão, pimenta,
gengibre e manga. Vestiam túnica e manto e usavam turbante na cabeça. Mogadixo
produzia tecidos em algodão, muito requisitados e exportados para o Egito.
Escravos e marfim eram para lá exportados.
As influências da Arábia, da Pérsia e da Índia,
proporcionadas, em grande medida, pelas relações comerciais no Índico podem ser
notadas em vários aspectos, na arquitetura das construções, das fachadas, dos
túmulos etc. Desse período são as construções em pedra unidas por massa de cal,
características dos templos religiosos com tetos planos e de pilares de madeira
em Máfia, e da grande mesquita de Quíloa.
Na segunda metade do século XIV, Quíloa sofreu um pequeno
declínio, talvez por conta da concorrência e da consequente perda do monopólio
do comércio de ouro com Sofala. Mas, já no início do século XV, com um novo
crescimento do comércio a distância, a partir das navegações no Índico, Quíloa
voltou a progredir.
Depois dessa retomada de força, o poder em Quíloa passou a
se concentrar no conselho dos notáveis, gerando problemas na sucessão dos
sultões e, consequentemente, acarretando crises políticas. Por outro lado,
muitas outras cidades desenvolveram-se, como Mombaça, Zanzibar, Melinde. Já no
início do século XV, Monbaça teve um nítido crescimento econômico. Desde o
século XII, Melinde e Monbaça eram conhecidas por conta de suas minas de ferro,
cuja produção era exportada para a Índia.
MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira.
São Paulo: Contexto, 2008. p. 44-46.
Nenhum comentário:
Postar um comentário