Cena do filme 2001 - Uma odisséia no espaço, dir. Stanley Kubrick
Em 1922, o
escritor britânico H. G. Wells publicou seu best-seller A Short Story of the
World. O livro terminava assim:
No momento, mal atingimos a aurora da grandeza humana. [...]
Alguém pode duvidar que em pouco tempo nossa espécie irá mais do que
concretizar nossas fantasias mais ousadas, de que ela irá alcançar unidade e
paz, que viverá [...] em um mundo tornado mais esplêndido e bonito do que
qualquer palácio ou jardim conhecido, avançando com ímpeto crescente em um
círculo cada vez mais amplo de aventura e realização?
Wells escreveu essas palavras apenas quatro anos após o
desfecho de uma terrível guerra. A lembrança da carnificina obscena nos campos
de batalha do mundo continuava fresca na mente de seus leitores. De onde ele
tirou tanto otimismo? Ele era um homem altamente inteligente e sensível, com
dotes imaginativos excelentes. Compreendia de que coisas terríveis os seres
humanos eram capazes em situações de desespero. O problema era o fato de ele
ser um cidadão abastado vivendo em um dos países mais ricos do mundo; uma nação
cujas classes governantes haviam experimentado uma melhoria ininterrupta em seu
conforto e prosperidade pessoal, por mais de dois séculos.
Mesmo que fosse grande escritor e um visionário, Wells era
um produto de seu tempo. Foi apenas nos cerca de cem anos precedentes que os
cientistas começaram a juntar as peças da história da Terra e das origens da
espécie humana. Haviam transcorrido apenas sessenta anos desde que Darwin
publicara sua A origem das espécies e nem bem trinta de A descendência do
homem, o primeiro estudo coerente das origens humanas. Darwin escolhera o
título com cuidado, de modo que as pessoas pudessem entender que estava
preocupado somente em elucidar a estrutura da árvore familiar da humanidade, e
não em promover qualquer idéia de “progresso”. Na última edição de A origem das
espécies que supervisionou pessoalmente, ele usara a palavra evolução pela
primeira vez. Mas o que queria dizer com evolução era mudança contínua, não
aperfeiçoamento contínuo.
Infelizmente, com Darwin fora do caminho, a porta ficou
aberta para qualquer um que não o compreendia ou que quisesse invocar seu nome
e obter apoio para as próprias teorias amalucadas. Num piscar de olhos, os
países industrializados foram inundados com teorias de “evolução social”, um
processo histórico pelo qual a sociedade humana supostamente avança em direção
a modos de organização cada vez mais desenvolvidos. [...]
Wells não era cristão, mas nasceu em uma sociedade
profundamente imbuída de filosofia cristã. Quando escreveu a História do mundo,
sua visão das coisas, como a da maioria das pessoas em volta dele, ainda era
moldada por hábitos de pensamento cristãos. O cristianismo é uma religião
milenar que tem ensinado por quase 2 mil anos que a história tem um
significado: é um processo linear com um fim predeterminado. Esse sentimento
foi intensificado nos países cristãos mais prósperos com as revoluções
científicas e industriais; mudanças que encorajaram os líderes de inclinação
intelectual – por definição saídos da classe que mais se beneficiara com essas
revoluções – a acreditar em um futuro dourado.
A crença na “marcha da civilização” deveria ter sido
erradicada pelos horrores da Primeira Guerra Mundial, mas para muitas pessoas o
efeito foi completamente oposto. O choque foi tão grande que o paciente entrou
em negação. O conflito foi encarado em vez disso como um trágico interlúdio, um
chamado ao despertar para um mundo que se tornara cada vez mais complacente.
Era hora, pensava-se, para os homens e as mulheres de boa vontade criarem novos
tipos de instituições internacionais, para assegurar que nada como aquilo
pudesse acontecer outra vez. Como consolo pelo pesar com as perdas que haviam
sofrido, uma racionalização foi criada: 1914-1918 fora “a guerra para acabar
coma guerra”. Hoje ninguém mais engole essa. [...]
Em face da evidência dos últimos cem anos, deveríamos ter
abandonado as fantasias sobre a marcha progressiva da civilização. Mas esse
tipo de pensamento ainda permanece – apenas a língua muda. Alguns depositam sua
fé em algo chamado “projeto iluminista”, uma coleção de idéias e experiências
históricas frouxamente ligadas à qual intelectuais de alguns países ricos
atribuem grande significado. Nessa variante da visão histórica da “marcha da
civilização”, os modos de sociedade organizada desenvolvidos na Europa
Ocidental e na América do Norte desde o século XVII são vistos como
inerentemente superiores a quaisquer outros, e assim devem prevalecer, contanto
apenas que seus praticantes não percam a coragem.
Essa visão linear da história como progressão rumo a um
futuro dourado é compartilhada tanto pelo cristianismo como pelo marxismo, e
também pelos “liberais iluministas”, alguns dos quais não são nem cristãos nem
marxistas. Mas há outras maneiras de interpretar a experiência humana. Certas
culturas, por exemplo os maias e a China pré-comunismo, viram a história como
um processo “cíclico”, em que sequências de eventos similares continuam a
ocorrer por longos períodos e no qual não existe destinação última.
Alguns chegaram até a sugerir que o modo como a sociedade vê
a história pode em si mesmo afetar a maneira como a história se desenvolve. Uma
sociedade que a vê como processo linear, particularmente se ela encara também
uma crença no “progresso”, provavelmente tem maior probabilidade de buscar
meios de fazer descobertas e melhorias. Infelizmente, tais sociedades também
correm o perigo de acreditar que “a história está do nosso lado”. E é um curto
passo que separa isso da crença de que “o fim justifica os meios”, uma atitude
que levou a muitas das atrocidades que desfiguraram a história humana.
Mas a visão cíclica da história tem os próprios perigos. Ela
pode evitar os horrores que são perpetrados por pessoas que carregam consigo a certeza
de que a História, ou Deus, está do seu lado. Mas essa é uma crença que
facilmente envereda para o fatalismo: uma aceitação de que o sofrimento
(especialmente dos outros) é um fato inescapável da vida e que tentativas de
influenciar o curso dos acontecimentos estão fadadas ao fracasso.
Olhando para trás [...] cabe questionar se a história
apresenta um padrão, seja linear, cíclico ou qualquer outro. Talvez a história
da raça humana seja mais bem compreendida como uma jornada por um terreno
particularmente acidentado, no escuro, em um veículo não muito cuidado, com uma
sucessão de motoristas de competência variada, em estados variados de
embriaguez. Alguns dos passageiros têm uma idéia clara do destino a que se
dirigem, mas nem todos possuem uma visão realista de suas chances de chegar
nele pela rota que escolheram.
Qualquer estudante de história pode ficar pasmo ao constatar
a quantidade de retrocessos sofridos pela espécie humana ao longo dos últimos
150 mil anos, e que criaturas frágeis somos, tanto individualmente como na
condição de espécie. Em face das estupendas forças que a natureza tem sob seu
comando, um pouco de humildade vem a calhar quando especulamos a cerca do
futuro. [...]
[...]
Fomos agraciados com uma ilustração dramática do poder de
novas doenças para espalhar o caos entre as populações do mundo com o
surgimento do vírus da AIDS em meados do século XX. O HIV já causou uma das
pandemias mais mortíferas da história humana, e sua carreira ainda está longe
de terminar. [...]
[...]
Outra ameaça que paira sobre a Terra é a mudança climática
provocada pela cultura humana. Há apenas uma geração, as evidências disso ainda
eram tão incertas que se tornava perfeitamente respeitável, até sensato,
questionar suas implicações e opor-se a propostas de mudanças em larga escala
nos padrões de produção e consumo no mundo industrializado. Respeitável talvez
ainda seja, mas sensato não é mais. [...]
[...]
Infelizmente, enfrentamos dois problemas quando tentamos
lidar com questões urgentes como aquecimento global, poluição ou controle de
armas. Um deles é tão antigo quanto a humanidade. O outro existe há algum
tempo, mas só se tornou sério durante os últimos dois séculos.
Esse problema antiqüíssimo é o equilíbrio entre liberdade
pessoal imediata e o bem da comunidade a longo prazo. A maioria de nós está
preparada para aceitar algumas restrições em nossa liberdade de ação,
reconhecendo que temos a ganhar com a restrição simultânea da liberdade de
outras pessoas. Pouca gente perde as estribeiras se é impedida de carregar uma
arma a bordo de um avião ou se passa por uma revista para assegurar que não
esteja tentando fazê-lo. As pessoas ficam felizes de ter a própria liberdade de
portar armas restringida em troca da segurança que usufruem resultante da liberdade
de outras pessoas ser similarmente restringidas. [...]
[...]
[...] A história humana conheceu inúmeros triunfos e – para
as pessoas de sorte – avanços imensos a riqueza, no bem-estar social e no
controle sobre o meio ambiente. [...] Há menos de 100 mil anos, a espécie
humana somava apenas cerca de 10 mil pessoas, vagando em pequenos bandos pela
savana africana. Hoje existem mais de 6 bilhões de seres humanos, espalhados
por cada canto do planeta. A despeito dessa população assombrosa, os mais afortunados
– e isso corresponde a muita gente – estão razoavelmente bem alimentados e
gozam de uma vida confortável quanto a moradia, saúde, alimentação e água
potável, viagens e entretenimento com que nossos tataravós mal poderiam ter
sonhado.
[...]
AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil
anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 387-395.
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