"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um olhar para o que passou [150 mil anos de história humana]


Cena do filme 2001 - Uma odisséia no espaço, dir. Stanley Kubrick

Em 1922, o escritor britânico H. G. Wells publicou seu best-seller A Short Story of the World. O livro terminava assim:

No momento, mal atingimos a aurora da grandeza humana. [...] Alguém pode duvidar que em pouco tempo nossa espécie irá mais do que concretizar nossas fantasias mais ousadas, de que ela irá alcançar unidade e paz, que viverá [...] em um mundo tornado mais esplêndido e bonito do que qualquer palácio ou jardim conhecido, avançando com ímpeto crescente em um círculo cada vez mais amplo de aventura e realização?

Wells escreveu essas palavras apenas quatro anos após o desfecho de uma terrível guerra. A lembrança da carnificina obscena nos campos de batalha do mundo continuava fresca na mente de seus leitores. De onde ele tirou tanto otimismo? Ele era um homem altamente inteligente e sensível, com dotes imaginativos excelentes. Compreendia de que coisas terríveis os seres humanos eram capazes em situações de desespero. O problema era o fato de ele ser um cidadão abastado vivendo em um dos países mais ricos do mundo; uma nação cujas classes governantes haviam experimentado uma melhoria ininterrupta em seu conforto e prosperidade pessoal, por mais de dois séculos.

Mesmo que fosse grande escritor e um visionário, Wells era um produto de seu tempo. Foi apenas nos cerca de cem anos precedentes que os cientistas começaram a juntar as peças da história da Terra e das origens da espécie humana. Haviam transcorrido apenas sessenta anos desde que Darwin publicara sua A origem das espécies e nem bem trinta de A descendência do homem, o primeiro estudo coerente das origens humanas. Darwin escolhera o título com cuidado, de modo que as pessoas pudessem entender que estava preocupado somente em elucidar a estrutura da árvore familiar da humanidade, e não em promover qualquer idéia de “progresso”. Na última edição de A origem das espécies que supervisionou pessoalmente, ele usara a palavra evolução pela primeira vez. Mas o que queria dizer com evolução era mudança contínua, não aperfeiçoamento contínuo.

Infelizmente, com Darwin fora do caminho, a porta ficou aberta para qualquer um que não o compreendia ou que quisesse invocar seu nome e obter apoio para as próprias teorias amalucadas. Num piscar de olhos, os países industrializados foram inundados com teorias de “evolução social”, um processo histórico pelo qual a sociedade humana supostamente avança em direção a modos de organização cada vez mais desenvolvidos. [...]

Wells não era cristão, mas nasceu em uma sociedade profundamente imbuída de filosofia cristã. Quando escreveu a História do mundo, sua visão das coisas, como a da maioria das pessoas em volta dele, ainda era moldada por hábitos de pensamento cristãos. O cristianismo é uma religião milenar que tem ensinado por quase 2 mil anos que a história tem um significado: é um processo linear com um fim predeterminado. Esse sentimento foi intensificado nos países cristãos mais prósperos com as revoluções científicas e industriais; mudanças que encorajaram os líderes de inclinação intelectual – por definição saídos da classe que mais se beneficiara com essas revoluções – a acreditar em um futuro dourado.

A crença na “marcha da civilização” deveria ter sido erradicada pelos horrores da Primeira Guerra Mundial, mas para muitas pessoas o efeito foi completamente oposto. O choque foi tão grande que o paciente entrou em negação. O conflito foi encarado em vez disso como um trágico interlúdio, um chamado ao despertar para um mundo que se tornara cada vez mais complacente. Era hora, pensava-se, para os homens e as mulheres de boa vontade criarem novos tipos de instituições internacionais, para assegurar que nada como aquilo pudesse acontecer outra vez. Como consolo pelo pesar com as perdas que haviam sofrido, uma racionalização foi criada: 1914-1918 fora “a guerra para acabar coma guerra”. Hoje ninguém mais engole essa. [...]

Em face da evidência dos últimos cem anos, deveríamos ter abandonado as fantasias sobre a marcha progressiva da civilização. Mas esse tipo de pensamento ainda permanece – apenas a língua muda. Alguns depositam sua fé em algo chamado “projeto iluminista”, uma coleção de idéias e experiências históricas frouxamente ligadas à qual intelectuais de alguns países ricos atribuem grande significado. Nessa variante da visão histórica da “marcha da civilização”, os modos de sociedade organizada desenvolvidos na Europa Ocidental e na América do Norte desde o século XVII são vistos como inerentemente superiores a quaisquer outros, e assim devem prevalecer, contanto apenas que seus praticantes não percam a coragem.

Essa visão linear da história como progressão rumo a um futuro dourado é compartilhada tanto pelo cristianismo como pelo marxismo, e também pelos “liberais iluministas”, alguns dos quais não são nem cristãos nem marxistas. Mas há outras maneiras de interpretar a experiência humana. Certas culturas, por exemplo os maias e a China pré-comunismo, viram a história como um processo “cíclico”, em que sequências de eventos similares continuam a ocorrer por longos períodos e no qual não existe destinação última.

Alguns chegaram até a sugerir que o modo como a sociedade vê a história pode em si mesmo afetar a maneira como a história se desenvolve. Uma sociedade que a vê como processo linear, particularmente se ela encara também uma crença no “progresso”, provavelmente tem maior probabilidade de buscar meios de fazer descobertas e melhorias. Infelizmente, tais sociedades também correm o perigo de acreditar que “a história está do nosso lado”. E é um curto passo que separa isso da crença de que “o fim justifica os meios”, uma atitude que levou a muitas das atrocidades que desfiguraram a história humana.

Mas a visão cíclica da história tem os próprios perigos. Ela pode evitar os horrores que são perpetrados por pessoas que carregam consigo a certeza de que a História, ou Deus, está do seu lado. Mas essa é uma crença que facilmente envereda para o fatalismo: uma aceitação de que o sofrimento (especialmente dos outros) é um fato inescapável da vida e que tentativas de influenciar o curso dos acontecimentos estão fadadas ao fracasso.

Olhando para trás [...] cabe questionar se a história apresenta um padrão, seja linear, cíclico ou qualquer outro. Talvez a história da raça humana seja mais bem compreendida como uma jornada por um terreno particularmente acidentado, no escuro, em um veículo não muito cuidado, com uma sucessão de motoristas de competência variada, em estados variados de embriaguez. Alguns dos passageiros têm uma idéia clara do destino a que se dirigem, mas nem todos possuem uma visão realista de suas chances de chegar nele pela rota que escolheram.

Qualquer estudante de história pode ficar pasmo ao constatar a quantidade de retrocessos sofridos pela espécie humana ao longo dos últimos 150 mil anos, e que criaturas frágeis somos, tanto individualmente como na condição de espécie. Em face das estupendas forças que a natureza tem sob seu comando, um pouco de humildade vem a calhar quando especulamos a cerca do futuro. [...]

[...]

Fomos agraciados com uma ilustração dramática do poder de novas doenças para espalhar o caos entre as populações do mundo com o surgimento do vírus da AIDS em meados do século XX. O HIV já causou uma das pandemias mais mortíferas da história humana, e sua carreira ainda está longe de terminar. [...]

[...]

Outra ameaça que paira sobre a Terra é a mudança climática provocada pela cultura humana. Há apenas uma geração, as evidências disso ainda eram tão incertas que se tornava perfeitamente respeitável, até sensato, questionar suas implicações e opor-se a propostas de mudanças em larga escala nos padrões de produção e consumo no mundo industrializado. Respeitável talvez ainda seja, mas sensato não é mais. [...]

[...]

Infelizmente, enfrentamos dois problemas quando tentamos lidar com questões urgentes como aquecimento global, poluição ou controle de armas. Um deles é tão antigo quanto a humanidade. O outro existe há algum tempo, mas só se tornou sério durante os últimos dois séculos.

Esse problema antiqüíssimo é o equilíbrio entre liberdade pessoal imediata e o bem da comunidade a longo prazo. A maioria de nós está preparada para aceitar algumas restrições em nossa liberdade de ação, reconhecendo que temos a ganhar com a restrição simultânea da liberdade de outras pessoas. Pouca gente perde as estribeiras se é impedida de carregar uma arma a bordo de um avião ou se passa por uma revista para assegurar que não esteja tentando fazê-lo. As pessoas ficam felizes de ter a própria liberdade de portar armas restringida em troca da segurança que usufruem resultante da liberdade de outras pessoas ser similarmente restringidas. [...]

[...]

[...] A história humana conheceu inúmeros triunfos e – para as pessoas de sorte – avanços imensos a riqueza, no bem-estar social e no controle sobre o meio ambiente. [...] Há menos de 100 mil anos, a espécie humana somava apenas cerca de 10 mil pessoas, vagando em pequenos bandos pela savana africana. Hoje existem mais de 6 bilhões de seres humanos, espalhados por cada canto do planeta. A despeito dessa população assombrosa, os mais afortunados – e isso corresponde a muita gente – estão razoavelmente bem alimentados e gozam de uma vida confortável quanto a moradia, saúde, alimentação e água potável, viagens e entretenimento com que nossos tataravós mal poderiam ter sonhado.

[...]

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 387-395.

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