"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A caça nas sociedades indígenas do Brasil

Em todas as sociedades indígenas, a caça é uma atividade masculina. Pode ser realizada individual ou coletivamente. Naturalmente, nem todos os grupos indígenas dão a mesma importância à caça. Os índios do alto Xingu, por exemplo, dedicam-se muito mais à pesca. Eles não fazem caçadas coletivas; praticam a caça de aves e, ocasionalmente, de pequenos mamíferos; não se nota, no alto Xingu, o consumo de caça de pêlo (veado, porco, capivara etc.) e um grande número de tabus desestimulam o consumo de carne [...].

Outros grupos, como os timbiras, dão uma importância muito grande à carne de caça. Entre eles, nos meados do século XX, além das caçadas individuais, eram freqüentes as caçadas coletivas, não raro destinadas a obter carne a ser consumida nos ritos. Hoje provavelmente elas já não são tão produtivas, dado o aumento da população não indígena na região em que vivem. Já para os índios maués, a caça é sempre uma atividade individual.

Família de botocudos em marcha, Jean-Baptiste Debret


As técnicas utilizadas na caçada variam de sociedade para sociedade. Elas variam também segundo a espécie de animal procurada. Os xoclengues de Santa Catarina, por exemplo, por volta de 1930, caçavam a anta perseguindo-a em suas carreiras, com ou sem ajuda de cachorros; o caititu, caçavam-no esperando-o sair da toca ou obrigando-o a sair dela com ajuda de fogo. Os teneteharas costumavam construir abrigos no chão ou no alto das árvores, nos locais freqüentados por cada espécie de animal, onde o caçador os espera, sobretudo à noite; na estação chuvosa, o terreno se alaga, e a caça se refugia nas partes mais altas, onde é fácil capturá-la. [...] Uma das técnicas dos índios xavantes é atear fogo em círculo num local do cerrado, deixando uma abertura por onde os animais fogem espavoridos, sendo aí abatidos.

As atividades de caça obrigam os índios a conhecerem os hábitos dos animais para melhor poder procurá-los ou esperá-los. Desse modo, dos representantes de cada espécie, sabem se andam de dia ou de noite, de que frutas gostam, onde costumam se esconder. Também dispõem de uma série de recursos mágicos para caçar: os índios craôs, por exemplo, usam determinados vegetais para esfregar no corpo ou para fazer infusões que ingerem, segundo a espécie de animal que desejam caçar; os índios teneteharas tomam muito cuidado para não ofenderem seres sobrenaturais, a fim de não ficarem “panema”, isto é, sem sorte na caça. Alguns grupos indígenas acreditam que os sonhos possam predizer o sucesso das caçadas, como os maués e os craôs.

Tipos diferentes de flechas de indígenas brasileiros, Jean-Baptiste Debret


Após o contato com os civilizados, as técnicas indígenas de caça se alteram devido à introdução de itens importantes, como as armas de fogo, a lanterna de pilha e o cão. As armas de fogo são logo adotadas, por permitirem alcançar alvos a maior distância que as flechas lançadas pelo arco. Mas, em certas situações, uma arma indígena como a zarabatana, que lança projetis com ponta embebida em curare, de uso entre os matis do sudoeste do Amazonas, mostra-se mais adequada que a espingarda: por ser silenciosa, permite vários tiros às aves ou macacos nas árvores, sem espantá-los. A lanterna abriu a possibilidade da caçada de espera noturna. Os cães se tornaram auxiliares tão preciosos que chegam a ter até mito de origem entre os marubos, vizinhos dos matis, mito este que não alude aos brancos, talvez por não terem sido recebidos destes diretamente, mas chegado por intermédio de uma série de outras sociedades indígenas. Malgrado proporcionarem mais eficiência na atividade de caça, essas contribuições dos civilizados trazem também a desvantagem de tornar os índios dependentes de artigos que eles próprios não podem fabricar: balas, cartuchos, pólvora, chumbo, pilhas. Além disso, os vizinhos sertanejos passaram a ser concorrentes dos índios na procura da caça, não somente para sua alimentação, mas também para a obtenção de produtos comerciais, tais como couros de diversas espécies e penas de ema.

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 95-7.

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