"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 8 de janeiro de 2017

A agricultura nas sociedades indígenas do Brasil

A maioria dos grupos indígenas do Brasil pratica a agricultura de coivara. Trata-se de uma forma de cultivo presente não apenas entre os aborígines brasileiros, mas também em outros continentes em toda a região tropical. Tal agricultura se realiza somente em terras florestais. Para limpar o terreno necessário a uma lavoura, é preciso derrubar uma porção da floresta, o que se faz na estiagem. Algum tempo depois, estando os troncos e galhos caídos suficientemente secos, lança-lhes fogo. As chamas não consomem totalmente as árvores caídas; os grossos troncos ficam enegrecidos e o terreno continua ainda cheio de garranchos que não se queimaram de modo total. Então os agricultores cortam esses garranchos, juntam-nos em vários montes, o que constitui a coivara, deles fazendo outras tantas fogueiras. Assim o terreno fica pronto para ser semeado. O aspecto do terreno preparado desse modo é bem chocante para aqueles que, não estando familiarizados com esta modalidade agrícola, imaginam o campo a ser semeado como uma área retangular, com a terra toda homogeneamente revolvida, como nas regiões temperadas. Mas não é nada disso: o terreno tem uma forma irregular e nem sempre está todo no mesmo nível; está inteiramente recoberto de cinzas, contrastando com a floresta verdejante que o envolve; o chão aparece por uma intrincada rede de troncos enegrecidos que o fogo não queimou totalmente; a cinza mal esconde as pontas negras que emergem do chão, restos dos caules de vegetais de pequeno porte cortados pelos agricultores, aqui e ali alteia um grande tronco que, tendo oferecido alguma resistência aos trabalhadores, não foi derrubado.

Índio Tapuia, Albert Eckhout


É justamente no espaço disponível entre os troncos caídos que se faz o plantio. Essa tarefa se inicia com as primeiras chuvas. Não há faixas de terra nitidamente demarcadas para cada gênero de planta. Eles crescem mais ou menos misturados, embora não tenham sido plantados na mesma ocasião. Os produtos agrícolas, ao invés de estarem separados em áreas justapostas, mais parecem estar, ao contrário, em camadas superpostas: olhando-se uma dessas roças, destacam-se dos demais vegetais os frutos das bananeiras e dos mamoeiros, que ocupam o estrato superior; numa camada mais baixa estão as espigas de milho; ao rés do chão, as abóboras; na camada mais inferior, dentro da terra, as batatas-doces, os inhames, as raízes de mandioca.

Um pouco mais de atenção sobre as roças indígenas faz perceber uma ordem no seu aspecto inicialmente confuso ao observador estranho. Os caiapós derrubam as árvores de modo que caiam umas sobre as outras em pilhas que deixam entre si espaços vazios. Nesses espaços são plantados os tubérculos antes que se faça a queimada. Isso permite que seu sistema de raízes se forme de modo a aproveitar os nutrientes que se infiltrarão com as primeiras chuvas. A queimada, realizada antes das chuvas, é feita em separado para cada pilha de modo a evitar o calor excessivo, que prejudicaria as raízes em formação. As roças marubos, quanto vistas do alto, de um avião, mostram duas tonalidades de verde: uma da macaxeira, plantada em duas faixas paralelas, uma de cada lado dos caminhos traçados pelo cimo das colinas; outra do milho, plantado nas encostas dessas colinas. Nos corredores de macaxeira se plantam também mamoeiros e pupunheiras. A macaxeira se conserva no solo e vai sendo colhida conforme a necessidade; os mamoeiros produzem por uns poucos anos; e as pupunheiras por muito mais tempo, aí ficando, mesmo depois que a maloca se tenha transferido. Entremeadas ao milho, plantam-se as bananeiras, que se desenvolvem após a colheita do primeiro.

Índia Tupi, Albert Eckhout


[...] Depois de um, dois ou mais anos, o terreno cultivado já não produz satisfatoriamente, o que obriga os agricultores a derrubarem uma outra porção da floresta. Após algum tempo, tendo os agricultores esgotado os terrenos que estão a sua volta, devem migrar para mais longe, a fim de derrubarem outras porções de floresta.

Atualmente, a maior parte dos índios do Brasil se utiliza de facões, machados e enxadas de ferro. Mesmo aqueles grupos indígenas ainda isolados dos brancos recebem esses instrumentos dos postos de atração mantidos pela Funai ou por intermédio de outros indígenas ligados aos brancos. Porém, antes da introdução dos instrumentos de ferro, utilizavam-se de machados de pedra para cortar os troncos vegetais, sendo que as árvores mais grossas eram derrubadas fazendo-se fogueiras em torno delas. O solo era perfurado, para a semeadura, ou para o arrancamento de raízes comestíveis, com ajuda de paus pontudos, que se costuma chamar de “bastões de cavar”. Esses bastões, em certas atividades, resistem à concorrência das ferramentas de metal: os marubos continuam a usar seus cavadores de madeira de tronco de pupunheira para plantar as mudas de bananeira.

Embora as técnicas agrícolas sejam mais ou menos as mesmas entre os vários grupos tribais brasileiros, mesmo assim as sociedades indígenas diferem no que toca à agricultura. Em primeiro lugar, nem todas dão a mesma importância às atividades agrícolas, algumas possuindo roças razoavelmente grandes, como sói ocorrer com os índios do tronco tupi, e outras, plantações bem pequenas, tal como se vê entre os timbiras ou os xavantes. Em segundo lugar, diferem na ênfase que dão a certas espécies cultivadas. Assim, enquanto a agricultura dos tupis dá mais importância ao plantio do milho e da mandioca, os jês setentrionais e centrais cuidaram mais do plantio da batata-doce e do inhame, pelo menos no passado. Os timbiras e os xerentes, para dar mais um exemplo, plantam um vegetal completamente desconhecido aos outros índios: trata-se do cipó comestível denominado kupá. A agricultura dos xavantes anterior à chegada dos brancos só consistia no plantio de três vegetais, a mandioca, tanto a brava quanto a mansa (aipim ou macaxeira), a batata-doce, o milho, a fava, a abóbora, o cará, o ananás, a pimenta; aprenderam também o cultivo da banana, do arroz, da batata-inglesa, da cana-de-açúcar, do algodão.

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 100-103.

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