A
maioria dos grupos indígenas do Brasil pratica a agricultura de coivara.
Trata-se de uma forma de cultivo presente não apenas entre os aborígines
brasileiros, mas também em outros continentes em toda a região tropical. Tal
agricultura se realiza somente em terras florestais. Para limpar o terreno
necessário a uma lavoura, é preciso derrubar uma porção da floresta, o que se
faz na estiagem. Algum tempo depois, estando os troncos e galhos caídos
suficientemente secos, lança-lhes fogo. As chamas não consomem totalmente as
árvores caídas; os grossos troncos ficam enegrecidos e o terreno continua ainda
cheio de garranchos que não se queimaram de modo total. Então os agricultores
cortam esses garranchos, juntam-nos em vários montes, o que constitui a coivara,
deles fazendo outras tantas fogueiras. Assim o terreno fica pronto para ser
semeado. O aspecto do terreno preparado desse modo é bem chocante para aqueles
que, não estando familiarizados com esta modalidade agrícola, imaginam o campo
a ser semeado como uma área retangular, com a terra toda homogeneamente
revolvida, como nas regiões temperadas. Mas não é nada disso: o terreno tem uma
forma irregular e nem sempre está todo no mesmo nível; está inteiramente
recoberto de cinzas, contrastando com a floresta verdejante que o envolve; o
chão aparece por uma intrincada rede de troncos enegrecidos que o fogo não
queimou totalmente; a cinza mal esconde as pontas negras que emergem do chão,
restos dos caules de vegetais de pequeno porte cortados pelos agricultores,
aqui e ali alteia um grande tronco que, tendo oferecido alguma resistência aos
trabalhadores, não foi derrubado.
Índio Tapuia, Albert Eckhout
É
justamente no espaço disponível entre os troncos caídos que se faz o plantio.
Essa tarefa se inicia com as primeiras chuvas. Não há faixas de terra
nitidamente demarcadas para cada gênero de planta. Eles crescem mais ou menos
misturados, embora não tenham sido plantados na mesma ocasião. Os produtos
agrícolas, ao invés de estarem separados em áreas justapostas, mais parecem
estar, ao contrário, em camadas superpostas: olhando-se uma dessas roças,
destacam-se dos demais vegetais os frutos das bananeiras e dos mamoeiros, que
ocupam o estrato superior; numa camada mais baixa estão as espigas de milho; ao
rés do chão, as abóboras; na camada mais inferior, dentro da terra, as
batatas-doces, os inhames, as raízes de mandioca.
Um
pouco mais de atenção sobre as roças indígenas faz perceber uma ordem no seu
aspecto inicialmente confuso ao observador estranho. Os caiapós derrubam as
árvores de modo que caiam umas sobre as outras em pilhas que deixam entre si
espaços vazios. Nesses espaços são plantados os tubérculos antes que se faça a
queimada. Isso permite que seu sistema de raízes se forme de modo a aproveitar
os nutrientes que se infiltrarão com as primeiras chuvas. A queimada, realizada
antes das chuvas, é feita em separado para cada pilha de modo a evitar o calor
excessivo, que prejudicaria as raízes em formação. As roças
marubos, quanto vistas do alto, de um avião, mostram duas tonalidades de verde:
uma da macaxeira, plantada em duas faixas paralelas, uma de cada lado dos
caminhos traçados pelo cimo das colinas; outra do milho, plantado nas encostas
dessas colinas. Nos corredores de macaxeira se plantam também mamoeiros e
pupunheiras. A macaxeira se conserva no solo e vai sendo colhida conforme a
necessidade; os mamoeiros produzem por uns poucos anos; e as pupunheiras por
muito mais tempo, aí ficando, mesmo depois que a maloca se tenha transferido.
Entremeadas ao milho, plantam-se as bananeiras, que se desenvolvem após a
colheita do primeiro.
Índia Tupi, Albert Eckhout
[...]
Depois de um, dois ou mais anos, o terreno cultivado já não produz
satisfatoriamente, o que obriga os agricultores a derrubarem uma outra porção
da floresta. Após algum tempo, tendo os agricultores esgotado os terrenos que
estão a sua volta, devem migrar para mais longe, a fim de derrubarem outras
porções de floresta.
Atualmente,
a maior parte dos índios do Brasil se utiliza de facões, machados e enxadas de
ferro. Mesmo aqueles grupos indígenas ainda isolados dos brancos recebem esses
instrumentos dos postos de atração mantidos pela Funai ou por intermédio de
outros indígenas ligados aos brancos. Porém, antes da introdução dos
instrumentos de ferro, utilizavam-se de machados de pedra para cortar os troncos
vegetais, sendo que as árvores mais grossas eram derrubadas fazendo-se
fogueiras em torno delas. O solo era perfurado, para a semeadura, ou para o
arrancamento de raízes comestíveis, com ajuda de paus pontudos, que se costuma
chamar de “bastões de cavar”. Esses bastões, em certas atividades, resistem à
concorrência das ferramentas de metal: os marubos continuam a usar seus
cavadores de madeira de tronco de pupunheira para plantar as mudas de
bananeira.
Embora
as técnicas agrícolas sejam mais ou menos as mesmas entre os vários grupos
tribais brasileiros, mesmo assim as sociedades indígenas diferem no que toca à
agricultura. Em primeiro lugar, nem todas dão a mesma importância às atividades
agrícolas, algumas possuindo roças razoavelmente grandes, como sói ocorrer com
os índios do tronco tupi, e outras, plantações bem pequenas, tal como se vê
entre os timbiras ou os xavantes. Em segundo lugar, diferem na ênfase que dão a
certas espécies cultivadas. Assim, enquanto a agricultura dos tupis dá mais
importância ao plantio do milho e da mandioca, os jês setentrionais e centrais
cuidaram mais do plantio da batata-doce e do inhame, pelo menos no passado. Os
timbiras e os xerentes, para dar mais um exemplo, plantam um vegetal
completamente desconhecido aos outros índios: trata-se do cipó comestível
denominado kupá. A agricultura dos
xavantes anterior à chegada dos brancos só consistia no plantio de três
vegetais, a mandioca, tanto a brava quanto a mansa (aipim ou macaxeira), a
batata-doce, o milho, a fava, a abóbora, o cará, o ananás, a pimenta;
aprenderam também o cultivo da banana, do arroz, da batata-inglesa, da
cana-de-açúcar, do algodão.
MELATTI,
Julio Cezar. Índios do Brasil. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 100-103.
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