Soldados mortos, László Mednyánszky
A guerra, seus problemas e suas conseqüências também produziram efeitos sobre o espírito público, conseqüências de ordem intelectual, moral, psicológica e ideológica. Talvez sejam até as mais profundas e duradouras; algumas ainda se fazem sentir na véspera do segundo conflito mundial. [...]
A guerra abalou o respeito aos
valores tradicionais. A Europa liberal, a Europa democrática, repousava num
pequeno número de postulados fundamentais, admitidos universalmente, que foram,
de repente, reexaminados. O espetáculo da matança prolongada e generalizada
projeta uma sombra sobre o otimismo do século XIX, sobre a confiança das
gerações precedentes na próxima instauração de uma sociedade melhor, mais livre
e mais justa.
Em segundo lugar, os sacrifícios
suportados, a tensão imposta e o esforço de guerra provocam uma reação de
compensação, o desejo de recuperar os anos perdidos, de tomar uma desforra
contra tantos sofrimentos. É o apetite de gozo que os escritores concordam em
descrever como característico da década de 1920. Não nos deixemos, contudo,
iludir por testemunhos parciais e não generalizemos indevidamente. Tendemos
amiúde a extrapolar a partir de situações muito localizadas: o mesmo erro nos
apresenta toda a França do Diretório entregue aos prazeres das “merveilleuses” e dos “muscadins”, ou a Europa depois de 1945
adotando o existencialismo de Saint-Germain-des-Prés. A descrição não se aplica
às aldeias nem aos burgos. Em compensação, o apetite de gozo, a busca do prazer
e do luxo, que se estadeiam nas capitais, contribuíram para a desmoralização do
país.
A provação da guerra desenvolve
efeitos de sentidos contrários. É o que se constata em dois exemplos: a
religião e o patriotismo.
No tocante à religião, a provação
despertou com freqüência o sentimento religioso ou a inquietação metafísica
sobre o sentido do destino humano; a guerra provocou inúmeros retornos à
prática, foi causa de uma onda de conversões. Ao mesmo tempo, porém, pelo escândalo
que representa, pelo desmedido permanente da fraternidade do Evangelho e por se
haverem deixado as Igrejas, em todos os países, envolver no esforço da guerra,
esta divorciou da fé um sem-número de espíritos.
No tocante à ideia nacional,
idêntica dualidade de conseqüências psicológicas e ideológicas. De um lado, a
guerra e seus malefícios estimularam o pacifismo: parte da opinião pública
consagra-lhe um horror instintivo, insuperável; a literatura do após-guerra é
pacifista, numa reação contra a publicidade mentirosa e a propaganda bélica, e
descreve os horrores, as atrocidades ou a monotonia das trincheiras. A guerra
estimulou o internacionalismo: para impedir-lhe o retorno, todos estão prontos
para todas as experiências, para todas as soluções. O exemplo dado pelos
bolchevistas e o derrotismo revolucionário comunicam ao antimilitarismo, ao
pacifismo e ao internacionalismo tradicional uma intensidade sem precedentes. A
aspiração à paz, talvez a aspiração fundamental da Europa do após-guerra, explica
as negociações para o desarmamento, a confiança nas instituições
internacionais, a simpatia pela Sociedade das Nações, o Pacto Briand-Kellog,
que, em 1928, colocará a guerra fora da lei, e o que o nome de Briand
simbolizará para a opinião pública francesa.
Por outro lado, todavia, as
lembranças de guerra, a decepção gerada pela derrota ou, entre os vencedores,
por resultados considerados inferiores aos sacrifícios aceitos, exasperam o
amor próprio e o orgulho nacional. É um dos componentes do espírito do
“ex-combatente”: dele procederão os regimes totalitários. Uma das razões de
queixa articuladas contra a democracia pelo fascismo na Itália, pelo
nacionalismo na Alemanha e pelos regimes congêneres é que ela sacrificou a
honra e o interesse nacionais, permitiu que se dilapidassem as conquistas do
esforço de guerra ou até, no caso da Alemanha, apunhalou o exército pelas
costas.
Em toda a parte, a guerra
engendra reações contraditórias: aspiração à ultrapassagem dos particularismos
nacionais e exasperação desses mesmos particularismos. Em 1920, nos Estados
Unidos, o redespertar do isolacionismo leva os republicanos à Casa Branca. O
Congresso põe em vigor uma legislação neutralista e adota leis que restringem a
imigração.
RÉMOND,
René. O Século XX. De 1914 aos nossos
dias. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 42-43. (Introdução à história de nosso
tempo 3).
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