"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 18 de novembro de 2012

Amor entre iguais no Brasil: dos anos 30 à década de 70

As duas irmãs ou no verão, Eliseu Visconti


E os homens que amavam homens e mulheres que amavam mulheres? Discretos, quando não perseguidos, e vítimas de toda a sorte de preconceitos, esses grupos tiveram de viver seu amor nas sombras, pelo menos até os anos 60. Não faltaram tratamentos médico-pedagógicos sugeridos - agregados à religião -, como remédios para a "inversão sexual". O transplante de testículos, por exemplo, era uma dessas receitas "científicas" para o "problema". Outra era a convulsoterapia, ou injeção de insulina para "curar" o que se considerava, então, um comportamento esquizofrênico. Outra opção era o confinamento em hospícios psiquiátricos. A despeito do sofrimento e da incompreensão a que eram submetidos, homossexuais buscaram espaço para seus relacionamentos e, na medida do possível, para viver seus amores. Ouçamos o depoimento de Zazá, "pederasta", como se dizia na década de 1930, que, menino, vai morar em São Paulo:

"Começei a amar um rapaz moreno, de olhos negros, gracioso! E a minha paixão foi crescendo! Eu ia morrendo de amor. Que coisa sublime o amor! Mais que amor, mais que loucura, eu tinha por ele! Quantos ciúmes!´Até da sua sombra! Se eu brigava e me separava dele, era por umas horas apenas, porque eu não resistia à separação e logo corria a implorar-lhe que não me deixasse. Eu morreria se ele abandonasse a mim".

O interessante, sublinha o historiador James Green, é que entre a década de 1930 e a de 1960, houve alterações significativas na composição e no desenvolvimento das subculturas homossexuais em grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, centros que acabavam por atrair migrantes homossexuais de todo o Brasil. A pressão que sofriam em suas localidades de origem, para arrumar namoradas ou casar, levava muitos homossexuais a profundas crises familiares ou de saúde, obrigando-os a partir rumo à cidade grande. Ir para os centros em busca de trabalho, mas, sobretudo, para escapar à pressão familiar, era a meta para muitos.

Em Frederico Paciência, escrito em 1924 e revisto várias vezes antes de sua publicação póstuma em 1947, Mário de Andrade narra a história romântica de dois estudantes que se separaram sem consumar seus desejos, exceto por alguns beijos e abraços furtivos. A distância geográfica porá um fim na relação, permitindo ao autor expressar, em um dos personagens, o alívio diante da possibilidade de ter de se assumir como homossexual. Alívio de muitos que se viam constrangidos por seu meio familiar e social. Alívio, segundo vários autores, autobiográfico.

Nos anos 40, multiplicaram-se as opções de vida noturna, com bares e pontos de encontros exclusivos. No Rio, a chamada Bolsa de Valores, em um trecho da praia de Copacabana em frente ao hotel Copacabana Palace, ou o Alcazar, agrupavam-se os jovens que se exibiam, escolhiam, conversavam e namoravam. Em São Paulo, o Paribar e o Barba-Azul, agregavam jornalistas, intelectuais e estudantes, em uma fauna animada e sem preconceitos. Cinemas, como o Art-Palácio, ofereciam um espaço onde homossexuais podiam encontrar um parceiro para encontro furtivo ou iam "à caça", em territórios como o largo do Arouche e do Paiçandu ou na avenida Nossa Senhora de Copacabana, onde os banheiros públicos abrigavam amores rápidos. Fã-clubes de cantores de rádio e de artistas de cinema aproximavam os casais que iam torcer por Marlene, Nora Ney ou Emilinha Borba. Travestis glamurosos encantavam a imprensa e o público nos bailes de Carnaval. Apesar de poder circular livremente e de desenvolverem uma rede de sociabilidades bastante animada, a "fechação" ou qualquer manifestação de afeto era reprimida em público. Sobravam os pequenos apartamentos onde se recebiam amigos, namorados ou casos.

No verão ou menina com ventarola, Eliseu Visconti


No cenário urbano encontrava-se todo o tipo de parceiro. A preferência pelo bofe ou "homem verdadeiro" que não assumia a identidade homossexual era marcante. "Gosto ainda da praia do Flamengo. Mais bofe, mais homem do que em Copacabana, mais humilde, mais gostoso" - já dizia um homossexual a um pesquisador, nos anos 50. Para muitos, o alvo era o tal "homem verdadeiro", "quente" e o desafio consistia em tentar seduzi-los, com drinques ou dinheiro. Invertendo o papel tradicional de passivos, os homossexuais iam à luta para conquistar sua presa, investindo todo seu potencial sedutor.

Convencer uma pessoa a fazer sexo era apenas uma etapa do processo de sedução. Depois, era preciso encontrar um lugar para ir. Os que não tinham um teto, eram obrigados a usar os espaços públicos. "Não havia hotéis específicos para gays como agora. Transava-se em hotéis improvisados, mas também frequentados por heterossexuais. Hotéis mais baratos sempre permitiam hospedar dois caras por uma noite, às vezes passava-se o fim de semana. Na rua 7 de setembro, lembro, havia um hotelzinho chamado São Tião, a gente ia com muita discrição e ficava hospedado com um cara", narrou um depoente.

Casamentos, nessa época? Em uma obra publicada em 1947, Homossexualismo masculino, texto apresentado em um seminário sobre Medicina Legal, o autor Jorge Jaime, apesar do caráter preconceituoso - "Coitados" Infelizes, só adoram machos e por eles se apaixonam" - propõe algo inédito: os homossexuais deveriam ter o direito de se casar.

"Existem milhares de invertidos que vivem maritalmente com indivíduos do seu próprio sexo. Se fosse concedido o casamento entre homens não se criaria nenhuma monstruosidade: apenas, se reconheceria por um estado de direito, um estado de fato [...]. A união legal entre doentes é um direito que só os países ditatoriais negam. Se os leprosos podem casar entre si, porque devemos negar esse direito aos pederastas? Só porque aos normais repugna um ato de tal natureza?"

Tinha uma lógica curiosa, Jorge Jaime. O casamento entre homossexuais teria outras vantagens, além de sinalizar a anormalidade do casal: evitaria a prostituição masculina, impedindo, ao mesmo tempo, que jovens inocentes se casassem com "invertidos". Em tom liberal, Jaime defende:

"Um uranista só é feliz na convivência dos homens que lhes saciam os instintos. E muitos homens sentem-se mais felizes quando têm relações com uranistas do que com mulheres. Então, por que não os proteger legalmente? O Direito foi posto na Terra para regular interesses recíprocos. Hoje mais do que em época alguma, tem evoluído muito o conceito de família e já se acha mais importante a felicidade que a moral".

Mas a pá de cal não tarda. Jaime prossegue implacável, "Mas haverá realmente felicidade onde existem fissuras anais e líquidos gonococos?". Seus argumentos são os mesmos de seus colegas, da geração anterior. Homossexualismo é doença.

Os rígidos códigos morais da época acentuavam, entre casais e pelo menos até os Anos Dourados, a dupla bofe e boneca. As bonecas estavam em busca de bofes, ou rapazes como parceiros e companheiros, sabendo que a maioria de seus "maridos" acabaria por deixá-los em troca de casamentos e filho. Agildo Guimarães, editor do jornal O Snob, relembra que os bofes não se consideravam homossexuais, e as bonecas estavam interessadas em "homens verdadeiros":

"Em algumas relações de bichas e bofes, o casal se juntava só nos fins de semana, ou se reunia à noite na casa de um amigo ou num hotel para ter relações sexuais. O bofe fazia coisas de homens, consertos. A bicha não fazia porque não sabia ou porque deixava ele fazer. A bicha cozinhava, arrumava a casa. Alguns bofes não eram tão bofes assim e ficaram junto com bichas durante muitos anos. Outros bofes se casaram e mantiveram relações sexuais eventualmente porque eram casados, Gostavam ou da pessoa ou da relação homossexual. Eu acho que eles tinham uma tendência homossexual, só, mas devido à sociedade tinham medo de se declarar".

Nesse mundo de bonecas e bofes a ideia de dois bichas praticando sexo era tão repugnante para as bonecas quanto para a população heterossexual a ideia de casais homossexuais. Era incompreensível para as bonecas que dois homens quisessem se amar. "Bicha era bicha. Bofe era bofe. Bicha não podia ser bofe e bofe não podia ser bicha, Mas conhecemos um casal, onde os dois eram bofes. Era um escândalo, um absurdo. A bicha sempre tinha que ficar passiva", explicava Guimarães sem, aparentemente, se dar conta de que a rigidez dos papéis vigorava, também, no mundo dos amantes heterossexuais. [...]

Ao fim da década de 1960, o binômio bicha e bofe começa a dar lugar a papéis mais complexos. Surge a palavra "entendido" para designar o homossexual que não assumia nem um nem outro papel de gênero, mas que transitava bem de um para o outro. Entendidas eram também como se autodenominavam as tríbades. Cenas de homossexualismo feminino já tinham sido sugeridas em Melle Cinema, romance dos Anos Loucos [...]. Para além da literatura, pouco se sabe sobre o universo amoroso das homossexuais femininas [...]. O preconceito contra a mulher homossexual era brutal: perda dos filhos, no caso das casadas; insegurança econômica, no caso das remediadas, brutal pressão familiar para que arranjassem namorados, noivos e maridos. Mulheres brilhantes, como a arquiteta Lota Macedo Soares e a poetisa americana Elizabeth Bishop, tiveram de viver sua relação às escondidas. Muitas burguesas fugiram para o interior. Petrópolis, no Rio de Janeiro, acolheu alguns casais. Não foram poucas as espancadas por pais, maridos ou filhos revoltados com a situação. Não foram poucos os suicídios em que um bilhete deixado aos parentes revela o desespero de jovens, massacradas com a intransigência familiar. É preciso esperar o fim da década de 1970 para as "enrustidas" começarem a atuar politicamente e a falar de seus amores.

PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 296-300.


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